sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Por culpa de sua ausência

Quero ir para onde o meu coração está batendo.
Não é aqui. É logo ali onde passei rapidamente.
Minha primogenita sendo entrevistada para uma revista.
ResultsOn - negócios inteligentes.
Uma revista como ela, pequena no tamanho, rica no conteúdo.
Ela se diz encabulada e revela coisas me olhando de lado e rindo:
- já escondi pastel embaixo do travesseiro
Mas a entrevista é para falar de business.
Meu Deus, ela tem 10 anos!
A filha dela talvez dê um entrevista sobre esse tema quando tiver cinco.
As coisas estão ficando very fast.
Será que eu gosto?
Encontramos uma amiga querida, Aline.
Participante ativa nos negócios da minha pequena, contribui com o bate papo.
É multimidia a pequena, enquanto responde as perguntas, cria uma história, come um cook e escolhe um livro na livraria que está há alguns passos.
Eu estou aqui.
Caixa de emails pipocando enlouquecidamente.
Planejamento 2010. Insano. Se depois tudo muda...
Não tive tempo de escrever longo email para uma de minhas leitoras mais queridas, distante que está, na terra em que tanto adoro, Espanha. Ro, escreverei quando estiver menos consumida pelo dia a dia.
Véspera de feriado, me anima.
Um filme, muita pipoca. Sol, piscina.
Vou deixar o meu carro aqui e voltar com a minha família toda.
Depois pensamos nessas questões operacionais do dia a dia, da hora a hora, do minuto a minuto.
A ausência pesa em mim quando não dou conta e depois lembro da frase de um amigo querido que porque era um anjo já se foi:
- eu estou aqui com os braços bem abertos, a não ser que este ser se tenha perdido por culpa de sua ausência

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Melhor pedir antes que seja tarde

Queria uma flor: margarida
Queria uma música: ?
Queria um animal: gato
Queria uma comida: pipoca
Queria uma diversão: balançar
Queria um passeio: caminho na mata
Queria um passarinho: bem-te-vi
Queria uma bebida: água com gás
Queria um descanso: rede
Queria um brinquedo: carrinho de rolemã
Queria um doce: quindim
Queria um momento de meditação: livro, livros, todos os livros
Queria uma língua: espanhol
Queria um país: Itália

Se tivesse que ter um último desejo agora diria: quero segurar uma foto bem linda das pessoinhas que amo, doar todos os órgãos possíveis, pessoas tranquilas sabendo que fui feliz e fazendo piadas e nada de flores... cubram-me com milho de pipoca para que durante a cremação as palomitas se pareçam com margaridas brotando no modo acelerado do vídeo.
É, de vez em quando temos que pensar em certos detalhes.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O que era e o que se pensava que era

Nunca batera o carro.
Nem nunca ninguém batera com qualquer coisa no carro dela.
Um tesouro.
Mas naquele dia, tudo ia mudar.
Dia comprido, reuniões longas, infindáveis filas de carro. Marginal anda e para, anda e para. Música lenta, melhor mudar isso!
Em um segundo, entre apertar um botãozinho do celular para uma música mais agradável começar, BUM!
Digamos um bum, mas um bum. Batera na traseira do carro da frente.
Tão leve que nada poderia ter acontecido. Mas como saber se o carro da frente era tão velho, tão amassado que olhando rapidamente não podia dizer se estava de frente ou de ré e tão pouco dizer que marca e modelo era?
Parada estava, parada ficou.
O cara do carro da frente desceu para olhar.
Ela não, abriu o vidro e sugeriu avançarem alguns metros mais para chegar em um recuo e não atrapalhar ainda mais o trânsito.
Antes mesmo de dizer isso e dele ter concordado, o tempo que ele levou para chegar nela pareceu uma eternidade em camara lenta e ela pensou:
- meu deus, que tipo, estou perdida, o mínimo que ele fará será dizer: desce do seu carro, segue no meu que eu fico com o seu...
Mas ele disse qualquer coisa de atenção e concordou em ir até o recuo.
Cara de bandido. Mas quem disse que bandido tem cara? Que pré conceito absurdo ronda nossas vidas, nossas obscuras faláceas de que não somos assim, de que abraçamos todo mundo!
Era grande, mal encarado e a única coisa que parecia ser um alento é que estava acompanhado de uma mulher.
Quando abriu a boca era um doce.
Quase pediu desculpas por estar em posição tão incômoda, bem na frente do carro dela, justo no momento em que ela precisava trocar a música.
Ela deu um cartão, se desculpou. Ele alegou avarias além da conta daquele toquezinho, mas tudo bem.
Dias depois telefonou.
- desculpa mas vai ficar em duzentos reais
Óbvio que o dinheiro não faria diferença nenhuma em qualquer ajuste que ele quisesse fazer naquele veículo, mas por que discutir?
- Ok, posso fazer um depósito?
- não, eu não tenho conta em banco não, minha noiva pode buscar um cheque?
- claro, pode vir amanhã, estou...
Ele mereceu meus duzentos reais pelo que era e pelo que eu pensei que fosse do alto de minha arrogância em revisão desde então!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Reflexo

Chove muito, todo mundo comenta.
Árvores caem, rios alagam e inundam ruas e avenidas.
As pistas ficam molhadas e os congestionamentos aumentam.
Nada a fazer. Alguns falam no celular, outros ajustam as músicas nos infindáveis aparelhos.
Alguns ajustam inúteis GPs.
Eu gosto de olhar as pessoas mas em noite de chuva eu não as vejo em seus carros herméticos.
Então, eu olho os carros.
E ouço rádio, mas isso já é lugar comum.
Ontem à noite aprendi um jeito novo de ver os carros.
No reflexo do asfalto molhado.
O Ka cinza de placa DSK 8742 cortou a minha frente.
Não sei se era homem ou mulher, mais provável que fosse uma mulher.
Uma necessidade absurda de ficar 18 centímetros à minha frente.
Uma pena.
Mas foi então que eu vi toda a intimidade do carro dela.
Sem protetor de cárter ele parecia tão frágil. Tudo exposto como um corpo que se prepara para uma cirurgia.
O escapamento, outras peças inomináveis, tudo à mostra, tudo aparente, tudo exposto.
No chão molhado, negro, brilhante, parecia uma foto do sistema digestivo em um livro escolar qualquer.
Depois ela se foi, precisava ganhar rapidamente mais 18, 20 centímetros.
E fui descobrindo outras intimidades.
Fotos lindas impossíveis de serem fotografadas.
Imagens em movimento de uma intimidade quase invasiva.
Quando o ócio não gera o óbvio eu fico mais feliz, mesmo num congestionamento quase histórico.
Reflexo de reflexões.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O caso da neosaldina

Tive uma sexta-feira cheia.
Cheia de contratempos. A Rodovia dos Bandeirantes um verdadeiro tapete, de carros, todos parados.
Horas para chegar
Usar o celular para avisar no escritório que não chegaria para a reunião das 10h00, que na verdade era a 14h00!
Compromisso do almoço desmarcado no último minuto.
Aproveitar para ir a manicure, aproveitar e cuidar do pé, aí o que era facilidade começa a se complicar, o ponteiro do relógio de uma hora pra outra começa a andar mais rápido, mas deu pra comprar a bolsa...
Reuniões produtivas. Uma atrás da outra, muitas idéias, muita coisa pra fazer no pós-reunião, emails jorrando na caixa de entrada.
Pensar no Buda sentadinho embaixo de uma árvore, recebendo oferendas, calçar as sandálias dele e por um momento, minimizar a confusão.
Em casa, as crianças me esperando para uma festa infantil.
...o papai pode levar, mas o convite diz Valentina e família!
Trânsito devolta, obra em todas as marginais, quando há farol, há esperança, porque em algum momento ele abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha, mas você vai, sem farol, você simplesmente está parado, sem qualquer esperança.
Em casa, quase a tempo, tomar um banho rapidinho, trocar de bolsa, grandona por uma pequenininha, separar uma roupinha para as meninas, desembaraçar esses cabelos (ninguém merece essa parte!)
E o presente, e o convite com o endereço.
E lá vamos nós fechar a semana com uma noite de sexta-feira em festa de sete anos.
Minha cabeça quase explodindo. Ao parar em frente ao local, vejo uma farmácia, penso em uma neosaldina, mas a farmácia está fechada.
Abro um sorriso, deixa prá lá.

Não tem jeito mais feliz de terminar uma semana, cheia de sorte, com ânimo para curtir a criançada!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Vera

Uma das brincadeiras mais divertidas da minha infância chamava-se Vera.
Não sei como o nome surgiu, mas eu me chamava Vera e, minha irmã caçula, que na brincadeira continuava sendo minha irmã, também se chamava Vera.
Não desgosto do nome, mas naquela ocasião era um nome comum. Será que era uma catarse porque eu não gostava de me chamar Lusia e achava o nome de minha irmã caçula, Laís, o nome mais lindo do mundo?
Será que era uma maneira de igualar essa desvantagem?
Não sei. Mas também, nem quero saber. O que era divertido é que Veras podiam ser qualquer coisa.
Vamos brincar de Vera loja? Sim!!!
E, rapidamente, montávamos uma loja tirando roupas, bolsas e sapatos de seus abrigos e uma de nós era a vendedora e outra a compradora.
Feita a compra:
- tchau Vera, tchau, obrigada, ah, foi um prazer Vera
Outro dia, tarde chuvosa: vamos brincar de Vera viagem? Vamos!!!
Arrumávamos umas cadeiras em forma de trem no meio da sala e nos sentávamos para conversar como quem teria um longo trajeto pela frente. Em dado momento:
- Vera, vou ao vagão restaurante, quer alguma coisa?
- Ah Vera, traz um suco, umas bolachas...

E lá ia eu para a cozinha arrumar um lanchinho.
E Vera noiva? Usávamos pedaços do véu do berço da pequena, uma relíquia que minha mãe nos deu e desfilávamos pelo quintal. Ora entrando na igreja, ora na passarela, e ora entrando correndo, envergonhadas do vizinho bonitinho estar espiando a brincadeira.
A única lembrança triste que tenho da nossa singela brincadeira de Vera é que um dia, meu tio Delfino tinha chegado para passar uma temporada conosco e não conhecia a brincadeira.
Ao ouvir minha mãe chamando por mim e por minha irmã ele respondeu:

- acho que elas estão brincando com uma amiguinha, a Vera...

Meu tio Delfino não podia ver, nunca pode, não com os olhos.
Contamos a ele sobre a brincadeira e ele se divertiu, balançou a cabeça, as mãos. Eu me balanço como ele até hoje, quando resgato meu tempo, quando morro de saudades dele.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Desprendimento

Será que quando começamos ter a sensação de que todas as nossas histórias foram há muito tempo é porque estamos nos sentindo velhos?
Estou com essa sensação. Lembrei de uma história bonita e mesmo antes de começar a coreografar as palavras no balé da narrativa eu me surpreendi pensando: nossa, mas eu nem tinha filhos quando isso se deu... E pensar que minha primogênita recém completou dez, não é tanto tempo assim.

Bom, mas essa é outra história. As minhas histórias disputam, todas querem ser a primeira bailarina do municipal.
Certa noite, após um dia cumprido de trabalho, atirei-me no sofá, pés para o alto, não me lembro mas certamente um gato no colo e vi uma cena de novela na TV.
Não sei que novela, não sei quem era a atriz, mas o fato é que ela usava um cordão com um coração vermelho e eu tive certeza absoluta de que aquele coração já tinha sido meu.

Eu conhecia aquele objeto, eu já usara aquele coração, aquela peça já tinha andado em meu pescoço, sem nenhuma sombra de dúvida.
Era como se eu tivesse vivido uma outra vida, como se uma recordação distante, meio amarelada, se intrometesse em uma vida nova e dissesse: lembra que me esqueceu?
Jantei, fui dormir, não sei se sonhei, não comentei com ninguém, mas desenvolvi o hábito de levar a mão ao colo em busca de um cordão com um coração inexistente.
Dois ou três dias depois em uma reunião, uma amiga perguntou:
- esqueceu o colar e está sentindo falta? você não pára de passar a mão no pescoço...
Resolvi contar a ela. Inclinou a cabeça, me olhou demoradamente. O cabelo bem curtinho escondeu o que ia na cabeça mas os olhos castanhos não esconderam o que ia na alma.
No dia seguinte na minha mesa...
- trouxe um presente!
Abri um pacotinho e lá estava um coração de ouro.
- não é o mesmo, mas ganhei da minha mãe, que ganhou da minha avó e acho que você é a melhor pessoa para cuidar dele
Como pode ter esse desprendimento? Pensei, perguntei, olhei curiosa.
- acho que os objetos escolhem as pessoas e nos enviam alguns sinais
Saudades Malu.



quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Onde andará Davi?

De Castro. Era esse o nome dele. Por quatro anos estudamos juntos em Tupã.
Correção: por quatro anos disputamos atenção e performance.
Da primeira a quarta série primária. Excluindo Dona Terezinha, minha primeira professora, que era alheia a essa disputa todos acompanharam.
Eu não me lembro que nota o Davi tirou quanto eu me acabei de chorar, sozinha, no caminho de volta para casa, com o meu 98 vergonhosamente ajeitado dentro da pasta escolar.
Mais que eu não foi porque essa foi a maior nota da classe, a professora deu parabéns, mas se valia 100, como me contentar com 98?
No segundo ano a disputa acirrou-se. Ele era o preferido da professora e não importava por quanto tempo eu ficasse com o braço levantado para responder uma questão, ela sempre me ignorava e perguntava a qualquer outro. Mas de cinco vezes, em quatro era o Davi que respondia, de pé, imponente, para depois me olhar de rabo de olho.
Era o mais velho de quatro irmãos ou três? Depois, já no quarto ano, a mãe teve uma menina, felicidade geral. Mas não importa, me lembro bem dos meninos, tão iguais, apenas menores em sequência, poderiam passar por um conjunto de bonecas russas. Matrioska, matriosca, matrioshka, matriochka, matrioschka ou matryoshka, nossa! Um brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas feitas de diversos materiais, ainda que o mais frequente seja a madeira, que são colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor, a única que não é oca! Apesar de ser o maior, ele não era oco, nenhum deles era.
No terceiro ano disputávamos a leitura das composições e a batalha ficou mais equilibrada. A professora entendia nossa aflição e depois fizemos um acordo, ela nos pediu que incentivássemos os outros alunos a ler os seus trabalhos, porque nosso comportamento acabava inibindo os outros e isso nos uniu.
Ele era bom. Ele era muito bom e isso me estimulava a ser melhor.
Além do mais ele era bem parecido comigo, magrinho, de canelas finas, e em boa parte do tempo, banguela e sardento como eu, menos que eu, mas sardentinho... Eu me lembro! Onde andará Davi de Castro e seus irmãos?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Casa de Boneca


Quando minha irmã Lucinete se casou a casa dela me encantava!
Tudo era novo e limpo e organizado. Para mim era uma grande casa de boneca.
O que eu nunca tive porque me interessava mais o carrinho de rolemã do meu irmão, um pneu rodado no asfalto (quando meu pai não estava!) e caminhos de terra com piche, que pedíamos aos homens que asfaltavam a rua de cima.
Era uma casa silenciosa, cheirosa, não que a minha não cheirasse bem, mas era um cheiro conhecido demais e silenciosa, bem, isso nunca foi. Por minha culpa, minha tão grande culpa.
Eu olhava, admirava e achava ainda mais bonita a minha irmã dona daquela casa toda.
Preparando coisas, arrumando coisas, casa dela, só dela.
Sem contar que eu adorava visitá-la porque era meu primeiro "parente" na cidade a quem eu podia visitar. Apesar de sermos parte de uma grande familia com muitos tios e primos, nunca moramos muito perto e eu admirava meus amigos que vez ou outra estavam na casa dos primos, na casa da avó, na casa da madrinha e então, chegou a minha vez, eu estava na casa da minha irmã.
O pão fresco, casca morena e crocante, com excesso de amendocrem era um lanche de sonhos!
Na despedida, minha irmã ficava no portão, me dava um beijo no rosto, despenteava meu cabelo e, talvez sem saber, com esses gestos simples me preparava para entender que a vida é feita de pessoas que vivem perto e outras que vivem distante, mas que o amor não conhece esses limites.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Cultivar o silêncio

O que ela gostava nele era a capacidade de cultivar o silêncio.
Como quem planta e rega uma sementinha, que cresce, que dá flor.
Olhos postos nesse vaso de boca fechada. Bonito, cor viva, balançando ao vento leve, em paz.
O que ele não entendia nela era aquela incontinência verbal.
E tanto que não sabia sinônimos. E tanto que sinceridade passava por brutalidade, que novidades pareciam milho em óleo quente. Pipoca a toda instante.
Segredos não, que esses usavam um código que não lhe escapavam de maneira nenhuma, nem quando ele alegava falta de amor, falta de confiança.
Na verdade, não era o conteúdo do segredo que lhe interessava, mas o mecanismo que a fazia contê-los.
Se descobrisse esse mínimo detalhe, chegaria a um método didático de lhe ensinar a cultivar o silêncio.
Não sabiam nada um do outro além do amor que sentiam.
Descobriam as palavras ausentes de um e o excesso delas do outro entre um café, um cinema, uma tarde na livraria.
Com o tempo ela foi aprendendo. Cultivou o silêncio do seu modo, mas logrou.
Ele se questionou se era isso mesmo que esperava e temeu sentir saudades de outros tempos e até perguntou, mas ela já estava bem adiantada nas lições e não respondeu. Ambos agora cultivam o silêncio e ainda não sabem onde vão chegar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Paçoquinha

Quando eu tinha 4 anos morava em Osvaldo Cruz.
Em uma casa com varanda, com um caminho que dava para um portão pouco depois de alguns degraus.
Havia uma árvore com flores pequenas e rosas, lindas, que não sei como se chama e que era a alegria das formigas saúvas e essas, o desespero da minha mãe.
Eu adorava vê-las em fila, disputando forças pelo tamanho dos pedaços de folhas que conseguiam carregar.
Em noites de verão nos sentávamos na varanda para conversar.
Nem sempre meu pai estava porque viajava muito mas, em casa, poucos sempre pareceram muitos porque sempre tínhamos muitas histórias para contar.
E, pouco antes delas começarem, eu atravessa a rua, dobrava a esquina e comprava, no armazém, uma paçoquinha.
Hum... minha boca enche d´água até hoje.
O dono do armazém, de quem já não me lembro o nome, apelidou-me paçoquinha e por muito tempo eu cumpri esse ritual.
Até que um dia eu tive um sonho. Um sonho não, um pesadelo.
Sonhei que o dono do armazém estava sentado em nossa varanda, em nosso banco e pasmem, minha mãe estava sentada no colo dele, apenas de saiote e sutiã. Saiote naquela época fazia parte das roupas íntimas.
Acordei assustada, preocupada, olhava desconfiada para minha mãe e nunca mais, sozinha ou acompanhada, eu entrei naquele armazém.
Logo nos mudamos de cidade e voltei a comer paçoquinhas, compradas no armazém do Seu Toninho, que merece um post qualquer dia desses, até porque, nunca, nunquinha invadiu os meus sonhos com essas perturbações!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Dia de quarta-feira

Chegou em casa tão cansado que os pés mal saíam do chão.
Dia cheio, trem cheio, marmita quase vazia, mestre com saco cheio, faltou pedra, o cigarro acabou, banheiro ruim, nossa, a lista era grande demais, melhor nem continuar pensando.
E o sujeito do ônibus que não contente em sentar sozinho em um banco ainda esticava o pé no corredor fazendo todo mundo tropeçar? E brigar com um tipo daqueles? Quem? Ele que não, com menino pra sustentar, mas que dá vontade de falar umas bem boas ah isso lá dá.
Estava tão cansado que se jogou no sofá e fez uma carinha de quem pede sem palavras um prato com tudo que tem, que hoje o dia foi brabo!
A estratégia é sempre a mesma, o texto é sempre o mesmo, ninguém esquece, ninguém põe um caco sequer, é quase uma cena de novela. Bom, aí também não que casa de pobre em televisão é bemm mais bonita que a dele. Na televisão não tem sofá das Casas Bahia, o que tem é abajur pra todo lado. É tanto canto pra ter mesinha com abajur em casa de pobre de novela que bem caberiam mais umas duas ou três famílias lá.
Mas o fato é que, enquanto a mulher prepara o prato, ele pode mudar o canal da televisão.
Dia de quarta-feira é dia de jogo, ah que ele não ia perder mesmo, de quarta-feira já sabe, é jogo porque novela tem todo dia. Ele mesmo que não vê quase nunca consegue acompanhar! Um dia só não faz diferença e nem é bom pro moleque.
Estava tão cansado que não se levantou quando ouviu a primeira pessoa gritar.
O prato chegou, deu a primeira garfada. Ai se tivesse uma cerveja gelada ela ia descer rasgando de delícia. Mas isso é só de sábado, quando tem pagamento, que pobre tem que juízo.
A mulher já foi logo espiar pela janela, ô bicho curioso, mas também, não foi uma nem duas pessoas que gritaram, começou uma correria que ninguém fazia idéia.
A mulher na janela, ele com o prato na mão, quando viu o moleque escapando pela porta já era tarde!
Se não é festa de são joão isso não pode ser rojão. Se tudo ficou em silêncio de repente isso não pode ser nada bom. Se a Dirce perdeu a cor, perdeu a fala e gesticula em câmara lenta... será que o jogo acabou?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Em tempos modernos...
















Semanas atrás, já tinhamos preparado a primeira sacola para doação de brinquedos por conta do Dia das Crianças, quando anunciou-se que teríamos uma feirinha de troca de brinquedos no condomínio.
Sábado de sol, lá fui eu e minhas pequenas para o salão de festas, uma expectativa só, velhos brinquedos novos e adeus ao Xanti, um tigre de pelúcia muito estimado por meses a fio e a muitos outros bichos de pelúcia.
No meio do caminho uma chuva nos lavou a alma. Dessas bem atrevidas, que não respeitam o sol e desaguam como quem faz o que quer, na hora em que quer! Minha pequena teve receio de raios, a outra corria feliz e eu, carregada de bichos, ria a valer.
As crianças são rápidas. Mal chegavam já agrupavam suas relíquias e postavam-se de lado, espiando os outros montes. Hum, aquilo me interessa, aquilo ali também. E conversa vai conversa vem iniciaram as trocas.
Uma pequetucha que mal falava ficou com o Xanti. Minha primogenita trocou-o por um outro bicho de pelúcia que nem recebeu nome, mas ficou encantada com a alegria com que a pequenininha lhe apontava o Xanti e o queria a qualquer custo.
Minha caçula logo encontrou um urso segurando uma coca-cola e iniciou uma negociação.
Imagina, um tipo do qual já doamos alguns, mas enfim, quem sou eu para interferir nos negócios.
Fui encarregada de voltar para casa e levar objetos menores, carrinhos, robos, bolinhas e etc, porque os meninos tinham muitas miudezas interessantes.
Minha pequena criteriosa conseguiu um livro e ambas se encantaram com uma lousa. Uma pequena lousa e alguns cacos de giz.
Preparei-me para interferir mas depois pensei melhor e resolvi não estragar a festa.
Dois lindos e fofos bichos de pelúcia por aquilo? Um trambolho pensei comigo, mais coisa inútil para guardar. E elas: ah, que linda, sempre quis uma lousinha assim...
Mas, essa lousinha não sai da minha sala. Já vi desenhos vários de uma e de outra e, nesse final de semana, encontrei alguns recados que podem ser vistos nas fotos.
Eu me emociono com pouco, e de pouco em pouco, reconheço o muito que tenho e me aflige o quão rápido o tempo passa nesses tempos modernos em que estamos ocupados com SMSs.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eu recebi uma carta


As histórias me fazem felizes.
As dos livros, as dos outros e as minhas.
Muitas vezes conto as minhas histórias para lembrar, para de novo viver aquela emoção, para matar saudades, para perpetuar a alegria de ter nascido onde e quando nasci, o meio em que cresci!
Conto histórias para compartilhar a vida.
E na semana que passou eu recebi uma carta. Cartas me emocionam.
Uma carta cheirosa, uma carta carinhosa, uma carta delicada, uma carta que conta parte da minha história. Uma carta da minha irmã!
Já é uma benção ter uma irmã, eu tenho 3 e mais um irmão!
Receber uma carta então... Uma carta para contar uma passagem da minha infância que mais emoção não teria do que sua própria reprodução:
...vou falar (ou melhor escrever) sobre nossas visitas ao Museu. Pois desde que você o descobriu queria ir todos os domingos e era eu que te levava. Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuire. Nos anos 70 era localizado na esquina das ruas Aimorés com Avenida Tamoios, no 1o. e no 2o. andar. Você, entre seus sete e oito anos e uma curiosidade que lhe era peculiar olhava tudo com tanta atenção, lia nas plaquinhas o que era e o que significava. Fazia comentários interessantes pela sua pouca idade. Olhava a foto e roupas do Fundador da cidade Luiz de Souza Leão, do que tinha sobre a índia Vanuire e muitas coisas mais, pois a variedade de coisas era grande. No domingo seguinte lá voltávamos, você tão entusiasmada como se fosse a primeira vez. A recepcionista já devia saber nossos nomes e endereço, pois lá estávamos todos os domingos...


Depois eu cresci, o Museu mudou de lugar, mas está mapeado em nossos corações.
Aquela mocinha, Lucinete, tão linda com seus cabelos negros e seus olhos verdes, que pacientemente esperava uma magrelinha, canela fina, sem dente, ler todas as plaquinhas, casou-se e teve 3 lindos filhos que também foram frequentadores do Museu.
Nem tanto pela mão da mãe, mas pela mão da tia, que em toda visita à cidade, gostava de passear com aquele trio! Visitar o Museu..., tomar sorvete de cabo, andar de bicicleta, fazer banda com bacias e baldes, entrar na piscina, cantar músicas, ir na saída, girar o caçula nos pés como acrobata de circo, tirar fotos.
Renata, Roberta e Neto. Ramon Neto. De cada um deles deliciosas histórias para contar, mas não hoje, hoje a mamãe deles me presenteou com uma carta que me fez esquecer que nada do que é moderno resiste ao que é eterno!

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Visualmente não, mas sim no coração. Que Graça!

Algumas pessoas surgem. Aparecem do nada e tomam conta do ambiente como se o ambiente se alterasse imediatamente para aquele acontecimento.
Algumas porque são muito, mas muito bonitas.
Outras simplesmente porque tem uma aura que mesmo que quase ninguém consiga enxergar iluminam o ambiente e faz uma diferença incrível, mesmo sendo uma pessoa comum. Uma pessoa comum. O que é uma pessoa comum? O que define uma pessoa comum?
Algumas porque são muito, mas muito espalhafatosas em sua maneira de vestir ou de usar o cabelo ou de se comportar e abrem uma clareira em volta de si para que possam ser vistos e analisados por todos aqueles que se acham invisíveis.
Pessoas são itens delicados da vida. Há que se ter cuidado mas não se tem muito tempo para esse tipo de avaliação.
Antes mesmo de pensar que a moça apressada tropeçou em nós porque está com os olhos rasos d´água por ter brigado com o namorado, por não estar bem no trabalho, por não ter dinheiro para comprar aquela bolsa linda, já olhamos feio e lhe dizemos impropérios. Não eu, hoje, e eu muitas vezes.
Outro dia um carro bonito pilotado não sei por quem buzinou para mim. Não vi a pessoa mas tive certeza de que conhecia e de que era uma pessoa do bem. Acenei e sorri.
No dia seguinte uma amiga querida por e-mail... lusia, você me reconheu?!?


Visualmente não, mas sim no coração.
E nos divertimos com a história e combinamos um almoço para os próximos dias e eu espero imensamente que ela seja muito, mas muito feliz. Que Graça!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

We need to be able to forgive

Eu sei. Muita gente sabe. Alguns conseguem com muito sucesso, outros nem tanto. E imagino que a maioria concorda que é muito difícil.
So we can move on and be happy.
Às vezes nos magoamos com coisas pequenas que nos parecem grandes - deformadas pelo nosso estado de espírito.
Às vezes pessoas não se importam com coisas grandes que lhes parecem pequenas, protegidas que estão por sua invejável capacidade de rir da vida, de abstrair, de ser feliz sem obstáculos.
O motorista de táxi narra que, provocado durante todo o trajeto, ainda ouve do passageiro:
- você não reage? não reage nunca? eu o provoquei o caminho todo e...
Ao que respondeu:
- sabe qual é o seu nome aqui dentro do meu táxi? P A S S A G E I R O você é apenas mais uma pessoa que passou por aqui e talvez eu nunca mais o veja
E ainda conclui:
- é por isso que eu digo, nessa vida tudo é passageiro, menos o motorista...
Simples assim!
E eu? Eu fico com a perna trêmula de raiva quando um motorista qualquer me corta sem a menor educação, sem o menor respeito, e fico com os olhos cheios de lágrimas, emocionada quando um motoboy me agradece porque facilitei sua passagem.
É ridículo, eu tenho consciência de que é ridículo.
Não controlamos as ações dos outros, mas podemos controlar as nossas. Será?
We are not victms but participants in life!

referências: zen habits (leo barbanta); histórias inusitadas de 101 taxistas (lion andreassa)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Trovões e Relâmpagos

Trovões e relâmpagos assustam muita gente e fascinam muita gente.
Faço parte do segundo grupo. Eu sei que a tempestade que está por trás ou na frente deles causam danos, tragédias, entristece muita gente. Mas o mesmo acontece com a linda exibição de um vulcão em erupção, com as ondas indomáveis de um tsunami.
Bandeirantes ontem a noite. Além da luz dos meus faróis e dos outros apressados, raios rasgavam o céu.
Um espetáculo maravilhoso. Pedaços de luz iluminando objetos que nunca observo.
Um cone. Um pedaço da murada de concreto iluminada por segundos como na montagem de um filme.
Uma sacola perdida de seu dono, esperando o moço de laranja na manhã seguinte com seu esquisito objeto de madeira e ponta de metal. Voava desesperada prevendo seu futuro sendo rasgado pelo moço da limpeza.
Meu pai tinha medo de trovões e relâmpagos. Mas eu só soube disso quando já era adulta, confidenciado por minha mãe em um sussurro como quem não quer manter o segredo, mas também não quer dividir com ninguém. Afinal, como é que o meu herói podia ter medo de alguma coisa?
Entre uma rajada e outra, a lembrança mais doce é a da minha tia que já está por lá, acalmando a sua pequena assustada:
- não precisa ter medo dos relâmpagos, é papai do céu tirando fotos com flash dos anjinhos dele que estão aqui na terra...

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O topo do mundo

O topo do mundo pode estar bem embaixo dos nossos pés.
Mas às vezes não conseguimos ver porque estamos ocupados em observar os outros.
E mais não posso dizer.
Há os que são felizes em suas casas de alvenaria sem pintura alguma. Mas há churrasco no final de semana, a música alta assusta e incomoda os incautos.
Há os que são felizes em seus quartos protegidos da luz por pesadas cortinas sem um único grão de poeira.
Há os que viveram aqui e lá e não sabem muito bem o que aprenderam de um contexto e outro.
O almoço foi em um restaurante muito simples, daqueles que nos obriga a desfilar uma bandeja em frente de pratos que se oferecem sem marketing algum.
As mesas apertadas, as meninas do atendimento simpáticas, a comida gostosa, nada de especial.
Mas não vejo alguns amigos dispostos a entender esse universo.
Brinco com a convidada a respeito do glamour que inexiste. Menciono que dispensei meus seguranças porque, afinal, foi só atravessar a rua.
Seus olhos azuis, lindos em seu rosto de boneca, me fitam com simpatia.
E falamos de trabalho, de comida, de crianças, de bichos de pelúcia e de repente ela comenta:
- meus pais tiveram momentos de extrema dificuldade financeira e minha mãe brinca, dizendo que eu só sabia o que era fralda descartável e papinha de potinho quando fazíamos a longa viagem do Mato Grosso do Sul, onde nasci, até São Paulo.

O topo do mundo estava bem embaixo dos pés dela, que não renega a sua história e deve ser feliz, tamanha a leveza com que narrava o que foi pesado mas que, definitivamente, não deformou os pés na caminhada.
Tudo se aprende com a história das gentes!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O que pode estar escondido no quarto de brinquedos?

Minhas meninas estão crescendo.
Não é uma medida de pés descalços, coluna alinhada e olhos firmes para marcar a parede.
Não, é o desprendimento que me surpreende na seleção dos brinquedos que vão para a doação.
Em alguns momentos, agora entendo, foi o destempero que nos fez comprar tantos e tantos, mas tantos brinquedos!
Ninguém precisa de tanta coisa assim.
Barbies intocadas em seus vestidos de modelo e cabelos impecáveis! Minhas bonecas não são de bonecas e só dessa turminha, lá se foram umas dez!
Gostam quando são personagens. Uma Barbie fada tem uma história para contar...
Jogos. Coleções de robôs da revista Recreio. Alguns eletrônicos.
Não aos dinossauros, impávidos em seu cesto. Mas sim para alguns animais desgarrados de suas manadas e muitas vezes, repetidos.
Pelúcias, que carinhosamente chamo de porta pó, umas trinta, dessa vez, e já é a terceira vez esse ano.
E coisas miúdas que vão surgindo. E brinquedos de quando eram bebês.
Estão crescendo porque em outros momentos se agarravam ao brinquedo há meses abandonado dizendo: não, eu amo esse...
Para devolvê-lo ao baú minutos depois.
E dessa vez, para tudo que eu mostrava: sim, pode ir, sinal de positivo.
Fiquei aflita. Eu mesma queria me agarrar a alguns deles. Lembrando de quando os comprei.
Sempre levo para as caixas de coleta que a Drogaria São Paulo do Cenu disponibiliza. Eles levam para uma instituição e depois vemos fotos das crianças recebendo os presentes.
Ninguém precisa de tanta coisa. E brinquedos novos chegaram por conta de aniversários, vem aí o dia das crianças. É bom ser generoso. É bom movimentar. É bom passar uma tarde de sábado ensolarado, rindo, dando bronca, quebrando a unha, procurando sacolas gigantes.
Mas as meninas estão crescendo. Bem rápido do que eu planejei.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ponto de ônibus

Ajeitou a saia com cara de quem está preocupada com a aparência e os bons modos.
Mas os olhos baixos não escondiam a vontade de levantar a saia, de arrancar a saia, de mudar de vida.
Queria mesmo era uma daquelas calças de marca, rasgadas mas novas, desbotadas mas novas, com uma etiqueta grande, de preferência de couro, de preferência no bolso de trás, indicando a direção de todos os olhares.
Ele apenas olhou de relance.
E então ela fingiu abotoar o botão da camisa, como se tivesse sido surpreendida por esse atrevimento de um botão que resolve deixar sua casa e escancara novos horizontes.
Mas ninguém olhou para esse novo horizonte.
Queria mesmo era comprar uma blusa listrada, de preferência branca e roxa, com uma fita amarrando na cintura que assim podia disfarçar que não era lá tão bem desenhada.
Ele nem notou.
Estava tão nervosa que acenou para um ônibus mas não era um ônibus circular, um fretado, um ônibus de turismo que a ignorou completamente e seguiu seu caminho.
Mas não o táxi. Não, o táxi não hesitou e ao ver o aceno da mão freou bruscamente diante dela.
Compreendeu rapidamente a situação e a confusão em que se metera.
Não, não ia dispensar o táxi na frente dele, não travaria um diálogo sem sentido, não conseguiria explicar a situação ao motorista curvada sobre a janela aberta do passageiro e com os olhos dele tentanto ouvir o que ela dizia.
Simplesmente embarcou.
Para onde?
De pensamento rápido, fingiu não ouvir e começou a remexer a bolsa desesperadamente, para ganhar tempo e assim que avançaram alguns metros:

- oh não, preciso descer, saí tão apressada que a carteira ficou em casa, pare moço, por favor, e mil desculpas pelo inconveniente
Ele freou de mau humor. Ela desceu aliviada.
Agora era caminhar porque não podia correr o risco de pegar, no próximo ponto, o ônibus com o seu príncipe dentro.
Era a sapa da história e não tinha esperanças de virar princesa!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O Porto não era exatamente Seguro

Quando morávamos em São Paulo minha primogênita estudava no Porto Seguro.
A caçula, em casa, ainda não sonhava com seu destino escolar.
Há umas diferenças, umas nomenclaturas... enquanto estudava no Portinho, para alunos de até 4 anos, tudo ia muito bem.
Areia do playground azul, cozinha industrial encantadora, piscina aquecida, caminho de água, professora, auxiliar da professora e babá. Poucos alunos por sala.
Depois ela cresceu. Puxa, completou 4 anos! E lá se foi para o Portão. Edifício em frente ao Portinho.
Duas salas do Portinho compunham uma do Portão. E aí a coisa não foi muito bem.
Um dia o papai foi buscar porque havia quebrado o dedo, que ficou preso em uma porta de correr. Claro, ela era uma hiena fugindo de um caçador e calculou mal o tempo para fechar a porta.
Acontece, não vamos falar de segurança nesse contexto. Vamos ao dia em que fui chamada para uma reunião com a professora, agora já sem auxiliar e sem babá para uma reunião extraordinária.
Fui.
Dona ... Sim, lá as professoras são chamadas de Dona, porque não são parentes de ninguém para serem chamadas de tia, no que eu concordo absolutamente, e porque é preciso ensinar respeito e hierarquia.
Pois bem, a Dona Professora me relatou que minha primogênita tinha problemas de relacionamento com a turma e não conseguia participar da roda.
A roda era uma atividade diária, um dia um jogo, noutro dia uma leitura, e, para comprovar o fato relatou a seguinte situação vivida na roda:

- crianças, vocês dizem o nome de um bicho e os amiguinhos vão falar o que sabem sobre ele, qualquer informação vale

Na vez da minha pequena, interessadíssima por animais, por dinossauros, por detalhes:
- ornitorrinco

Silêncio na roda. E a Dona Professora:
- outro meu bem, esse os amiguinhos ainda não conhecem

- ouriço do mar

Silêncio na roda. E a Dona Professora:
- ah, vamos lá, diga algo como gato, cachorro, cavalo

E minha pequena indignada:
- o quê? esses bichos que todo mundo conhece? esses eu não falo, quer saber? eu nem quero ficar nessa roda de bobos

E eu para a Dona Professora:
- e por que não inverteu a brincadeira no segundo animal? poderia ter dito: olha que legal, se você conhece e os amiguinhos não, conte para eles como é esse bichinho aí, esse tal de ouriço do mar!

Silêncio na roda. Quer dizer, na reunião.
Não era seguro no que nos é mais precioso: criatividade, perspicácia, pensamento rápido.
Embarcamos em outra viagem, ancoramos em outro porto, que não tem areia azul, mas a roda recebeu bem os espinhos que carregamos.