segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Monstro

A mala pesava muito.
Mas nada podia pesar mais do que o seu pesar.
A mágoa. A surpresa sabida.
A sensação de ser um luminoso no meio da multidão quando a vontade era desaparecer.
Por que desse jeito? A mala continha coisas inúteis, mas era dela.
Acumuladas durante anos. Para quê?
Para pesar, para ficar ali jogada aos pés enquanto esperava.
Para incomodar.
Para fazer lembrar depois de muito tempo.
Uma sequência de sentimentos em ritmo frenético: raiva, decepção, alívio, desprezo, raiva mesmo e esse alívio tão disfarçado no meio de tanta coisa ruim.
Oito horas da noite. Por que o tempo não anda depressa quando se espera e por que anda tão rápido quando se está atrasado?
Tempo não é um conceito e tão pouco é um aliado. Não, definitivamente não é um aliado, é quase um inimigo.
Tira a coloração da pele.
Tira a firmeza da mão.
Tira o brilho dos olhos, mas não tira a mala pesada empurrada para um canto enquanto a carona não vem.
Nem frio nem calor. Apenas um frio na barriga.
Nada podia pesar mais do que o seu pesar. Assim pensava ela, mas hoje já sabe que há coisas bem piores.
Entregar novembro ao passado. Receber dezembro do presente e viver o hoje pelo hoje.
Sem data e sem hora, pé ante pé para não despertar o monstro que por hora se escondeu.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Só um café

Passou a mão na cabeça. Uma vez, duas vezes. Procurava as palavras porque já tinha perdido a verdade. A verdade dele era a dor dela e não sabia em que medida devia atenuar. Ela esperava. O coração acelerado já se preparava para ouvir o que não queria - essa era a verdade dela. Não se movia, apenas esperava que ele se decidisse a falar. Uma semana, um mês, um ano, alguns anos... Como se resolve isso em um café? Desconhecia o lábio trêmulo dele e quase adivinhou que ele não teria coragem de dizer a verdade. A verdade é que não há medidas para o amor. Ela amava mais? Ele amava menos? Pesava mais para ela manter o carinho no meio do turbilhão da vida moderna? E para ele? Pesava quanto? Quanto media cada gesto dela? E ele? Media alguma coisa? Ele pediu mais um café enquanto o dela já esfriara há tempo. Assim que ele levou a xícara à boca ela disse sem meias palavras:
- Então tá, parece que você não tem o que dizer mas eu já entendi. Não vamos além do café. Sem croissant, sem geléia, frutas ou suco. Sem leite ou chocolate. Eu sinto muito mais do que você pode imaginar, mas eu também sinto por você que não consegue encarar a si mesmo. Se posso pedir uma última coisa eu peço que pague o meu café, estou sem nenhum trocado. Tchau, a gente se vê por ai.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Sei lá

A minha opinião é sei lá! Não tenho que ter opinião para tudo.
Preciso ir a Caixa Economica Federal entregar um documento e retirar outro que vem em um disquete!
Quase em 2010, com tantas modernidades, com tanto dinheiro que tem esse governo, quem concebe que ainda se use disquete?
Fiquei com preguiça e ainda não fui. Eu me permito ser preguiçosa de vez em quando.
Quer almoçar hoje? Tinha um relatório para fazer, mas quer saber? Sim, quero almoçar hoje, com um amigo querido que me faz sentir bem, que me deixa entender que ainda existe gente do bem pelo puro bem e não por tramóias.
Tem um ralado verde no meu pára-choque, mas se ele chama pára-choque e sua função é essa por que eu devo me preocupar?
A minha gata escapa do quintal o tempo inteiro, ela é gata e volta por que devo me preocupar?
Ah, mas um dia a vizinha reclamou que um gato entrou na casa dela, arranhou o sofá, quebrou coisas na pia. Tá e por que ela não fecha a janela quando sai?
Estou cansada de ser a parte séria das questões.
Não seguem os prazos, por que eu tenho que ficar preocupada com o todo?
Não preenchi o formulário de matricula das meninas, o prazo é só até amanhã, chegarei tarde e cansada, sem a menor vontade. Por que o prazo é amanhã se já paguei e a secretaria e a secretária não vão a lugar algum antes do Natal?
Por que tenho que ir a um evento com o meu carro, com o meu dinheiro de estacionamento quando tem uma festa interessante me esperando?
Por que as pessoas vão pensar que eu...
Bom, pois que pensem. Eu primeiro gosto de mim, depois gosto dos que iluminam minha aura e para essa seleção não tenho nenhuma explicação.
Depois, eu gosto de toda gente, alguns porque me fazem perceber que eu tenho muito a melhorar, a crescer e outros porque me mostram o quanto eu já estou melhor que eles.
E a minha opinião continua sendo SEI LÁ, acho que amanhã vai melhorar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Algodão Doce

O que as roupas fazem com as pessoas?
Cobrem seus corpos nus.
O que fazemos com as roupas?
Espetáculos de elegância e de horror.
Quando era criança minha mãe comprava lindos tecidos e costurava para mim.
Vestido delicadamente florido.
Uma calça verde limão saint tropez. Não precisamos datar nada, apenas seguir o caminho das roupas.
Uma blusa azul com listras vermelhas na manga.
Minha linda blusa vermelha, de inverno, com capuz.
Quando adolescente a coisa mudou um pouco.
Minha mãe seguia costurando mas já inspirada por meus desejos.
Quando me mudei para São Paulo, nada, qualquer coisa, um jeans e uma camiseta ou uma camisa até que descobri vestidos longos demais e outros curtos demais em lojas alternativas, que combinados com alpargatas ou chinelos havaianas me davam um ar hippie total.
E foi nesse momento que surgiu um casamento.
O que é uma roupa para uma cerimônica de casamento? Um pesadelo.
Que cor, que altura, que modelo, que tecido, que padronagem, passaremos frio ou calor? Por quanto tempo? Mas a compra, em um grupo de amigos, totalmente descolados dessa realidade de frufrus pode ser antológica.
Em quatro, três meninas e um menin percorremos lojas.
Logo me achei com um modelito que me deixava absolutamente confortável e elegante, sob o meu ponto de vista, discutível, mas com aprovação do grupo.
Sentar e esperar pelos demais. O menino foi o segundo e, sendo o mais crítico de todos, um alívio.
E não posso esquecer um aprendizado importante: a verdade, muitas vezes dura, pode salvar vidas.
A terceira menina, praticamente uma intrusa em nosso trio, mas prima do menino e por isso bem aceita, em seu décimo vestido experimentado sorri e desfila confiante:
- achei!
Com um olhar delicado, mas uma voz firme, ele a salvou quando resolveu dizer:
- por favor, você é baixinha, um pouco gordinha, com esse vestido rodado, rosa, está parecendo um algodão doce, não, definitivamente, esse não!

Rimos muito, ela incluída. O destino já os levou dessa vida, tão jovens, cada um em sua tragédia solitária, mas rir da vida e de si mesmo é o que salva toda gente!
Amanhã tem festa. Com que roupa eu vou?

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Laço de Fita

Ela usava um laço de fita cor-de-rosa no cabelo. Era estranho, mas ninguém parecia estranhar.
O cabelo preto, meio encaracolado, um corte feito em qualquer salão de bairro.
Na boca um batom meio marrom. Não combinava com o tom de pele. E mais nada. Nem um lápis, nenhum delineador, uma corzinha na bochecha. Nada. Somente aquele batom desenhando os lábios. Bonitos. Bem feitos.
O vestido tinha um comprimento indeciso. Não queria mostrar os joelhos mas também não parecia muito amigo da canela e assim, ficava no meio do caminho. De um salmão apagado que fazia o laço da cabeça gritar ainda mais.
Sandália sem graça. Dessas que se compram em lojas populares não pelo fetiche do sapato, simplesmente pela prateleira numérica: aqui ficam os de número 37 da faixa de preço que varia entre 49,90 a 79,90. De uma cor que não se sabe definir.
O conjunto não era homogêneo, não era elegante, mas ali reinava ela.
Não importando quão modernas as outras se apresentassem.
Com suas pulseiras e bolsas agigantando-se em cada movimento.
Com o corte bem feito das peças, com as cores certas, com a proporção da arte urbana.
Com seus esmaltes em dia, com seus cílios enegrecidos, com seus cabelos perfumados.
Não, isso tudo de nada servia, ali reinava ela.
Entre um meio sorriso e uma meia palavra, um olhar atravessando a cena, entre um sim e um não, foi marcando território.
Para matar o tempo, a que não tinha lá tanto charme assim, mas que jamais usaria um laço cor-de-rosa na cabeça anotou na agenda: dentista dia 26, manicure dia 28, trocar a calça no sábado, cortar o cabelo dia 03, e a reunião seguiu, como se nada mais importasse além do... além do...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Sinais


Alguns preferem a numerologia, outros o horóscopo, alguns cartomantes, outros igrejas de muitos credos.
Eu, muitas vezes, apenas uma cena. Do cotidiano, de uma viagem, na saída do cinema, na fila do supermercado.
Não sei quem é a garota da foto, que charmosa em seu vestido de verão e protegida pelo seu lindo chapéu, caminha com a família pelos jardins do Alhambra, em Granada de Espanha.
Não sei sua nacionalidade, seu nome, sua idade, nada, nada.
Mas quando a vi, tive certeza de que queria uma menina "igual".
Estávamos em viagem de férias, já tantos anos de um casamento tranquilo, por que não tumultuar?
Fiquei olhando, pensando, admirando.
A menininha do chapéu me avisou que eu teria meninas e eu acreditei.
E já as tenho, aqui comigo tatuadas no coração e correndo pela casa, deixando coisas fora do lugar. Antonella e Valentina.
Cada uma a seu tempo, cada uma do seu jeito, concretizando o sonho quase egoísta de também ter. Mas não tenho, apenas cuido e agradeço cada momento.
Ah... elas não são lá muito adeptas de vestido e chapéu, mas isso não importa, nem se encaixa no conceito moderno de aspiracional. Além do que, eu não saberia bem o que fazer com meninas tão meninas!

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Gêmeos

São gêmeos, mas ela o sufoca.
De uma beleza arrogante, tem olhos superficiais.
Ele não, para vê-lo belo é preciso olhar uma segunda vez. Mas tem o olhar profundo, de quem pensa diferente daquilo que se passa em sua volta.
Ela é alta, o rabo de cavalo lhe dá um ar de rainha.
Ele não. Não se parece com um rei, nem com um príncipe. Parece mais um menino triste.
Ela foi gerada confortavelmente sobre as pernas dele.
Que já passaram por cirurgias, que ainda são vacilantes no caminhar.

- ele tem amigos? parece tão triste
- claro que tem, tem dois, o... e o...

Enquanto ele espera quieto em um canto no pátio do colégio ela anda saltitante rodeada de amigas e olhares enviesados.
Sorri para ele. Mas não é um sorriso amistoso. É um sorriso de compaixão. Uma compaixão obrigatória que nas entrelinhas quer ordenar um fique aí e me deixe viver.
Quem será mais feliz?
Talvez os dois, cada um a seu modo.
São gêmeos. Será que enxergo uma realidade embaçada que não se confirma no dia a dia da casa, da família, dos amigos?
Tomara.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Tamantuante - O que fazemos


Há uns três anos, minha primogenita foi com a escola até o Zoológico.
Esses passeios educativos sobre os quais não quero tecer considerações agora.
Levou um boné, uma mochila com guloseimas, água incluída porque é a única bebida que lhe apetece, algum dinheiro e sua empolgação.
Quando cheguei do trabalho, à noite, ela estava meio abatida e me contou:

- Sabe mãe, o passeio foi legal, mas não gastei bem o meu dinheiro. Eu comprei salgadinho, depois um sorvete, bicho no pote, uma oncinha de pelúcia para a minha irmã, mas na volta, na hora de ir embora, eu vi um tamanduá de pelúcia e não pude comprar
- Ah, é? E era bonito?
- Lindo! Mas custava R$ 35,00 e eu já não tinha tudo isso. Pedi emprestado para meus amigos, ninguém tinha, pedi para a professora, mas ela disse que não podia, porque aí todo mundo ia querer e tive que deixá-lo lá
- Um dia desses vamos até lá e você compra
- Ah, tamanduá não é bicho que se faça tantos, acho que vai acabar

Dormiu. Dia seguinte de manhã, tamanduá. À noite quando voltei, tamanduá.
No meio da noite, resmungando, pensei que queria água e estava sonhando... com tamanduá!
Dia seguinte, entre um email e outro, um telefonema e outro, uma aprovação de peça e outra, uma reunião e outra, busca na internet pelo telefone do zoológico:

- alô, é do zoológico? você tem o telefone da lojinha? ah, não tem telefone lá? e como faço para falar com alguém de lá?

Fui instruída a ligar daí uns quinze minutos, que alguém iria chamar a moça.

- Oi, ainda tem um tamanduá de pelúcia?
- Na loja não, mas vou ver no estoque, pode ligar daqui uma meia hora?
Mais meia hora.
- E então?
- Ah, sim tenho um.
- Pode reservar para mim?
- Ah, isso não posso não
- Apenas por uma hora. Vou pedir que um motoboy vá buscá-lo, por favor, pode ser?
- Está bem, não tem muita gente hoje

Instruções para o Motoboy: na portaria do zoológico, diga que vai buscar o tamanduá, de pelúcia, o da lojinha... O nome da moça é... Eles o deixarão entrar sem pagar só para retirar a encomenda.
Quase uma hora depois toca o celular:
- não tô conseguindo entrar não
Outras tantas ligações depois, mais uma hora de espera e o Motoboy me aparece com o tamanduá em uma sacolinha de plástico.
Cara de assustado de um, cara de é coisa de mãe do outro!
Eu feliz. Paguei pelo tamanduá, paguei pelo motoboy, trabalhei até mais tarde, mas quando cheguei em casa com esse carinha aí da foto, nenhum dinheiro do mundo pode pagar o brilho dos olhos e o abraço apertado, não em mim, no fofo...

- Tamantuante, é você, eu estava esperando você!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um compromisso

Tinha um compromisso muito cedo, apesar do sono acordei animada, as meninas despertas despertam em mim uma sensação boa. Só um suco, beijos apressados e caminho da roça.
Eu e meu rádio, nenhum ganso para dizer ate já. Nas ondas do rádio...

- a rodovia dos Bandeirantes esta totalmente bloqueada no km 23 por causa de um acidente com 3 caminhões.

Eles, quase sempre eles.

- siga pela Anhanguera

Lá fui eu, espírito preparado para ver mais da paisagem do que normalmente vejo e munida de paciência extra para relevar os motoristas que não respeitarão nada.
Quando cheguei na entrada da Anhanguera não havia mais bloqueio na Bandeirantes (?!?!) e tive segundos para decidir que ía mesmo pela Bandeirantes. Qualquer coisa ainda restaria uma saída pelo Rodoanel no Km 24.

- duas pistas e o acostamento da Bandeirantes acabam de ser liberados

Fui seguindo devagar. O que é seguir devagar diante do fato de que alguém não seguirá mais? Depois de mais de uma hora de trabalho os bombeiros resgataram um dos motoristas, mas o caminho dele acabara ali. Ele havia chegado meio sem jeito, meio sem querer. Passei pelo caminhão. Já estava no acostamento, sozinho, assustado, violentamente machucado, esperando sua sentença, quase abandonado. Vermelho, era vemelho.
Em algum lugar alguém recebera ou receberia em breve uma notícia. Vidas transformadas para sempre. Pai, mãe, mulher, filhos, cachorro? Umas contas para pagar? Um Natal para planejar? Uma carga para entregar? Em que segundo tudo isso se misturou e acabou?
Enquanto eu dormia esperando o despertador cantar.

- a Bandeirantes parcialmente liberada é a melhor opção de chegada, Anhanguera congestionada desde Jundiaí até São Paulo

Cheguei ao meu compromisso no horário, just in time, mas o café não teve lá muita graça.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Agenda

E para aquela manhã ela não programara o despertador. Queria acordar sozinha para ficar com cara de quem dormiu bem, cara de quem está descansada.
O hábito, porém, fez com que acordasse no mesmo horário e bem feliz.
Como não tinha agendado nada de importante pela manhã tomou calmamente o café e leu alguns cadernos do jornal.
Foi para o escritório cantando no carro.
Normalmente deixava em um rádio qualquer enquanto se ocupava em gritar com todo mundo no trânsito, mas hoje não, hoje tivera tempo de escolher um CD.
Na hora do almoço fez as unhas e comeu uma saladinha, rápido mas saudável, para não ficar com cara de esfomeada.
Durante a tarde entre um documento redigido e outro pensou em que roupa poria.
E se estivesse frio? Mas estava tão quente.
A bolsa ia parecer grande demais. Sandália ou um sapato fechado? Frio no pé é igual a frio por toda parte.
Quase cinco horas e o relógio pareceu mais preguiçoso. Arrastando-se em uma dança disforme, sempre em círculos.
Quase seis horas uma chamada apressada, sem fôlego, sem tempo para lamentos:
- oi amor, desculpe, mas não consigo sair dessa reunião chata pro nosso jantar, depois a gente se fala e marca outro dia, ok?
- ok
Nunca sabemos o que nos espera do lado de lá. Por isso tanta gente ensina a não esperar nada.
Ela voltou para casa. Unha feita, fome, sem graça. Tomou um banho, deixou a TV ligada em um barulho qualquer e, antes de pegar no sono, programou o despertador.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Conceito de Noção

- Olá, bom dia, tudo bem?
- Comigo tudo e com você?
- Também. Então, me diga porque quer trabalhar conosco.
- Na verdade, eu quero trabalhar, não importa se for aqui ou em outro lugar.
- Ah é? Fale-me um pouco sobre o que espera do trabalho.
- Bom, eu preferia terminar de estudar de dia e trabalhar depois. Esse negócio de trabalhar o dia inteiro e depois ir pra facul à noite deve ser bem cansativo. Mas eu preciso ajudar em casa, pagar a escola, comprar minhas coisas, então, eu preciso trabalhar.
- E o que espera da nossa empresa?
- Ah, espero que ela seja bem legal comigo, que eu consiga o trabalho aqui, que o cara que vai ser meu chefe seja legal, me ensine tudo o que eu tenho que fazer, se não tiver direito me dê uns toques pra consertar, essas coisas.
- O que vai fazer na faculdade?
- Estudar muito, entregar todos os trabalhos em dia, fazer as provas na primeira chamada...
- Mas em que área, para que área vai prestar vestibular?
- Putz, ainda não sei não. Eu queria mesmo era fazer Educação Física. Mas aí dizem que não rola muita grana. Ou você é professor de escola ou, se der sorte, vai pra uma academia e depois começa a ser personal, aí a grana melhora.
- Somos uma indústria farmacêutica, em que seu trabalho aqui contribuiria para esse seu projeto?
- Cara, não tinha pensado nisso, mas se eu for personal, posso recomendar os melhores medicamentos, já sabendo direito como funciona o troço! Super legal!
- Está certo, estamos com seu CV aqui, vamos conversar com outros candidatos e damos um retorno.
- Valeu, mas vê se dá uma forcinha, a barra lá em casa tá pesando.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cadeirinhas

Em casa somos uma escada de filhos, com área para descanso.
3 com pouca diferença, dois, três anos, eu no meio e depois de mais um descanso, minha irmã caçula.
Isso resulta em uma estrutura familiar que não conversa muito com a tese de Frank Sulloway, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology que estudou a ordem de nascimento na família e sua influência no comportamendo dos indivíduos. Ficamos fora do padrão. 3 filhos, caçula único menino, por um tempão.
Depois eu, outra caçula. Depois outra caçula e eu fiquei sendo a do meio, entre um grupo de três e um dos bebês mais lindos que já conheci, minha irmã Laís. Não, não tem teoria que se aplica.
Enfim, vamos ao caso das cadeirinhas.
Minha irmã menos mais velha, a segunda na trilogia dos primeiros filhos, Lucinete, me chamou de lado e perguntou:
- sabe essas cadeirinhas de varanda, você acha que a Laís ía gostar de ganhar uma?
- eu ía adorar, eu quero uma!
- ah é? mas e a Laís?
- ah, acho que ela também...

Hum... Ela recém começara a trabalhar, certamente estava pensando em outro presente para mim, quem sabe um livro, que eu adorava, mas não uma cadeirinha daquelas, eu já quase nem cabia, apesar de ter sido sempre um cisco, não era mais para minha idade.
Perto do Natal, presente de Natal, surpresaaa!!!
Duas cadeirinhas, lindas, cheiro de novo, uma amarela e uma vermelha.
E eu:
- quero a amarela, não quero a vermelha, não a amarela é mais bonita, não, não, a vermelha, é, pronto, a vermelha é minha
E foi minha, independentemente da preferência da segunda caçula.
O carinho estava em cada fio de plástico que moldava aquele objeto e, minha irmã, com o bolso ainda mais vazio, tinha um sorriso enorme no rosto. O mesmo que ainda vejo nas poucas vezes em que nos encontramos, apenas porque estamos longe dos olhos, mas muito, muito perto do coração.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Amantes

A casa dela era a mais bonita. Na esquina, com jardim, cortinas na janela, sempre tão organizada, sempre tão silenciosa apesar das crianças.
Quando bateu palmas e foi recebida pela mãe, a menina tratou de sentar-se na saleta ao lado para fazer a tarefa.
Pé descalço, sujo de terra, cruzado embaixo da perna e ouvido muito atento.
Afinal, era traquina e brincava muito com as crianças da casa bonita, será que tinha aprontado alguma?
Ouviu parte da conversa, falavam baixinho e a mãe usava palavras de conforto.
Espiou e viu quando ela enxugava uma lágrima.
Levantou na ponta do pé e ficou atrás da parede, preocupada.

- nunca pensei que isso pudesse acontecer... quase morri de vergonha, o médico tentou ser gentil, doença íntima, seu marido viaja muito
- é, eu nem sei o que dizer, mas é melhor pensar que agora que já sabe o que é, consegue se tratar
- mas como olhar pra cara dele? falar? não falar? não sei o que fazer!
-melhor falar

Desinteressou-se da conversa, voltou à tarefa e ficou pensando, aliviada, que não era responsável pela visita inesperada, nem por aquela choradeira. Mas ficou triste. As mulheres ricas, bonitas, que não andavam pra lá e prá ca enxugando a mão no avental também choravam.
Passou correndo pela cozinha, fingiu que não viu nem ouviu nada, pegou um pedaço do bolo que fora servido com café e desapareceu no quintal.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Tadeu

Estudavam na mesma escola, no mesmo período, mas não na mesma sala. Mas estavam na mesma série.
As crianças estranhavam o nome dele, mas ele era bonitinho e as meninas viviam alvoroçadas.
Um dia o Tadeu faltou.
No outro também. E em mais um dia. Alguns esqueceram, outros preocuparam-se muito e mais de uma semana se passou.
Uma tarde de sol meio apagado, quase frio, a Diretora entrou na classe com um ar muito sério e buscou palavras, buscou equilíbrio na voz, buscou forças que agora sabemos onde e contou que o Tadeu tinha ficado muito doente e que não ia mais voltar.
O Tadeu estava naquele momento com alguns anjinhos, desejando que todos tivessem sorte na escola.
Um silêncio esquisito.
A professora ficou meio sem jeito depois que a Diretora saiu. Perguntou se alguém tinha alguma pergunta, ninguém perguntou nada, não se sabe bem como cada um entendeu a mensagem.
Em casa a mãe detalhou para alertar:
- O Tadeu pisou em um prego enferrujado, o pé ficou machucado mas ele não contou para a mãe, ficou alguns dias com aquele ferimento sem cuidar direito. Quando a mãe viu e o levou ao médico já era tarde, ele teve uma doença chamada tétano, não conseguiram curá-lo e ele morreu. Por isso que é preciso mostrar para a mamãe qualquer machucado, mesmo que seja pequenininho, um arranhão de gato, de galho, de arame, de lápis. É preciso lavar e passar um remédio.

Ouviu tudo calada, apenas pensando que tétano começava com T igual Tadeu.
Depois das férias o Luís Eduardo não voltou.
A Diretora não apareceu e a professora avisou que o Luís Eduardo tinha se mudado para Pindamonhangaba.
Ficou desconfiada.
Ficou pensando que a Diretora assustou muita gente.
Ficou achando que Pindamonhangaba não existia, cidade com nome comprido demais e que ela nunca ouvira falar.
Ficou pensando que outro prego poderia ter surgido no caminho.
A professora não perguntou se alguém tinha alguma pergunta, a mãe não falou nada sobre cidades de nome esquisito mas, por precaução, à noite quando foi dormir pediu ao anjo da guarda que lhe desse um sinal caso o Luís Eduardo tivesse ido se encontrar com o Tadeu.
Nada aconteceu e na manhã seguinte ela procurou no mapa, junto com o pai, cidades com nomes compridos, como se fosse uma brincadeira e lá estava Pindamonhangaba. Um alívio. Mas sentia muitas saudades do Tadeu e nunca o esqueceu.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A blusa mais linda que eu já tive

Quando o meu irmão começou a trabalhar — não, não era treinee, naquela época não tinha isso lá no interior — trabalhava em uma fábrica de cadernos, o que para mim foi uma grande novidade! Ele era pouco mais que um menino, mas trabalhar era coisa de adulto, de homem!
Eu teria menos tempo para algumas coisas como balançar em seu braço em L (ele) não que ele fosse forte, eu é que era um cisco; ver e torcer em suas lutas com meu gato, como se fosse luta livre rolavam no chão e ele dizia: é a luta, é a luta... divertidíssimo!
Por outro lado ele teria menos tempo para se divertir me provocando.
Ele me chamava de desenho porque dizia que eu parecia um desenho animado e eu não podia tirar a sua razão, era magricela, sardenta, sem dente na frente, nariz grande. Muitas vezes eu o ouvia perguntar ao chegar em casa:
- mãe, cadê o desenho?
Eu ficava feliz da vida mas fazia cara de quem estava zangada com o apelido.
Ele me levava, aos domingos à tarde, à matine do cinema para ver Tarzan e me comprava Banda de abacaxi. A guloseima que eu buscaria se fosse o personagem de Muriel Barbery em A morte do gourmet. Tampouco se zangou comigo quando, em uma das vezes, tirei o papel de todas as balas e fiquei segurando-as na mão, para não perder nada do filme me enroscando com os papéis e foi uma meleca só! Não, ele não se zangava comigo.
Com seu trabalho não perdi nada disso, nem ele perdeu a chance de me provocar. Eu ganhava mais coisas isso sim. Balas Soft, um pacote inteiro só para mim.
- Desenho, não engole que essa bala é dura, dói a garganta!
Mas nada se compara ao dia em que pediu à minha mãe que me arrumasse porque iria me levar com ele à loja de roupas. Claro, trabalho, roupas de trabalho. Para mim era um passeio.
Não me lembro do que ele comprou para ele, mas para mim... Para mim comprou a blusa mais linda que eu já tive até hoje. Uma malha vermelha, de zíper, com capuz. Em um tempo em que minha mãe costurava minhas roupas ou decidia o que eu iria vestir e pronto. Mas ele não. Ele me deixou experimentar, escolher, me disse que era linda, que no inverno eu ia ficar bem quentinha.
Eu ainda posso sentir o cheiro da roupa nova, porque não era outra coisa além de um carinho que não envelheceu como ele e eu.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Pedestre

Levava uma mochila nas costas.
O que guardava lá dentro ninguém sabia.
Estava sempre ajeitando as coisas por um pequeno vão do zíper aberto, como quem guarda um segredo.
Se chovia, de lá saia o guarda-chuva.
Se esfriava, de lá saia uma malha.
Se alguém reclamava de fome, de lá saiam alguns biscoitos, um chiclé, uma barra de cereal.
Se tinha dor de cabeça, de lá saia um remedinho.
Ao sentar no metrô, um livro magicamente surgia da mochila e a viagem tinha outro destino.
Vasculhava todos os bolsos e recantos em busca de moedas para um pedinte, quando na verdade precisava tanto quanto ele.
Uma garrafinha de água sempre no bolso lateral da preciosa mochila.
Velha, mas perfeita. E limpa porque sempre em contato com a roupa.
Por no chão? Nem pensar, se é possível apoiar sobre os pés!
A mãe não lhe dizia nada sobre o pai, sobre as contas que se acumulavam, sobre o aluguel vencido, sobre o risco de perder o emprego, sobre a doença da avó.
Mas sempre queria saber sobre suas notas na escola, sobre seus amigos, sobre seus hábitos alimentares, sobre suas possíveis namoradas, sobre seus amigos, seus programas, sobre seu dentista.
Naquela manhã ele apenas deu um beijo na testa da mãe que estava sentada terminando uma xícara de café e saiu.
Não disse nada. Ela esboçou um sorriso e também não disse nada.
Quando ela recuperou a mochila, ralada, suja mas intacta começou a revelar seu conteúdo misterioso.
Um livro de Dalton Trevisan.
Algumas balas. Um chiclete. Um pacote de biscoito.
Um caderno de capa vermelha cheio de anotações.
Mas o que mais a impressionou foram os recortes de jornal com fotografias do pai e suas intermináveis entrevistas.
Bonito ainda, poderoso mais do que nunca.
Como ele soube? Como ele sabia?
Um assunto inacabado. Uma dor para sempre.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Tombos

Por que as pessoas riem quando outras pessoas caem?
É automático!
Alguns mal conseguem perguntam: machucou? porque estão gargalhando!
É uma risada gostosa, espontânea, genuína. Impagável.
Todo mundo já viu alguém cair e já riu muito dessa situação.
E muita gente já foi protagonista de uma cena dessas. Uns mais ridículos, outros menos, com mais platéia, com platéia menor. Claro que estou falando de tombos adultos, os infantis são de outra categoria, são um capítulo à parte.
Eu já cai muitos tombos, mas depois de adulta dois são memoráveis.
O primeiro, mais dolorido, com platéia minúscula: o porteiro do prédio.
Eu morava em Recife e cheguei tarde da noite depois de um passeio com amigos. Um grupo deles me deixou em frente ao prédio, me despedi e entrei.
Nem no Nordeste eu deixo de sentir frio e aquele ventinho da noite me deixava congelada, conclusão, estava com as duas mãos no bolso da bermuda, apertando os braços para diminuir o frio.
Disse boa noite ao porteiro e ao subir um pequeno lance de escadas para chegar ao elevador tropecei e cai escada acima e com as mãos no bolso!
Só não bati o rosto porque ele ficou de fora do último degrau e tive dificuldade de tirar as mãos do bolso já caída imagina se tive reflexo para tirar antes e tentar aparar a queda?
O porteiro, na penumbra, perguntou: machucou? E tenho certeza absoluta que depois que o elevador fechou a porta se escrachou de rir!
O segundo machucou levemente a nádega e profundamente o ego.
Cai e escorreguei sentada por uma sequência de degraus que pareciam intermináveis em plena escadaria da FAAP.
Como estava invisível de vergonha, segurando desajeitadamente a mão do meu namorado, hoje meu marido, não vi ninguém dar risada. Não vi, mas ainda hoje ouço o eco medonho!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Olhar para baixo

E eu que estava esquecida da vida quando vi a água jorrar para molhar o gramado, porque agora começou o verão...
O que me ocorreu?
Aquecimento global, desperdício de água, condomínio organizado, grama bonita...
Não, nada disso.
A força descomunal da fêmea do Quero Quero chocando seu ovo, impávida diante daquela chuva inesperada.
Olhos de quem diz daqui não saio daqui ninguém me tira, meu filhote vai sobreviver.
Da imponência de seu bico me espiando e pensando, uma água a mais?
Não temos tempo de olhar para as lições que nos são ensinadas todos os dias.
Outro dia ouvi alguém dizer: ah, é tão fresco que tropeçou em uma formiga e torceu o pé!
Quem é esse que ousou cruzar o caminho da pobre criatura?
Eu gosto dos detalhes, eu gosto dos pequenos, eu gosto do impensável, eu quero ver o filhote de Quero Quero atravessar a rua andando na frente do meu carro como quem anda em um campo desabitado e eu quero parar e esperar que ele atravesse em segurança.
Não importa a marginal, não importa as 9h30, não importa o celular, depois que o Quero Quero nascer, crescer e me mostrar que tudo tem seu ritmo podemos remarcar a reunião!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Tocar o bumbo em outra banda

Tocava bumbo na banda.
De vez em quando pensava em algo maior. Já pensara até em ser o maestro.
Retrocedia.
Admirava os pratos. Os instrumentos de sopro então, um sonho inalcansável.
Porque tocava o bumbo desde sempre ninguém nunca o considerou para outro instrumento qualquer e sabia tocar!
Sabia tocar muito bem muitos outros instrumentos, mas como provar?
Arriscava algumas vezes. Indiretas. Uma experimentada em um instrumento nobre abandonado por um tempo.
Elogio? Não, nenhum.
Tocar o bumbo não era nobre e ele tinha a impressão de que todos tinham a impressão de que qualquer um podia tocar o bumbo.
Valia a pena investir?
Um dia, não bateu no bumbo na hora certa e a banda veio abaixo.
Era ensaio. Não tinha coragem de fazer isso em uma apresentação oficial mas vontade não faltava.
Hum, compreendeu que ele só importava quando não funcionava.
Mas quando funcionava, um elogio?
Pensou no bumbo. Pensou nos outros instrumentos. Era apaixonado pelo bumbo.
No começo da primavera não apareceu para o ensaio mas enviou uma carta delicada.
Um mês de férias e sua estréia em outra banda.
Uma banda diferente. O bumbo ficava bem na frente e em todas as fotos de anúncio da banda, o bumbo aparecia.
Tocou a vida sem remorsos. Admirável!