sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Novidades

- Oi Venâncio
- Oi Zé
- Bão?
- Bão
- Marivaldo, me dá uma branquinha dessa igual do Venâncio
- Oh Zé, cê viu que já tá morando gente naquela casa da esquina, sua vizinha?
- Gente não Venâncio, uma baita d´uma muié bunita! Nossa...
- É, eu vi, e é disquitada, num tem marido não
- É?!? Disso num tava sabendo não, mioro hein??
- Ela num tem marido mas ocê tem muié, cuidado!
- Eita, num tô nem pensando em nada, ela tem uns menino
- É, morava em São Paulo, o marido compro essa casa pra ela ficá c´os moleque, acha que é mais tranquilo, cidade mais pacata
- Compro? Eu pensava que era alugada
- Não, compro, o Dirceu lá da padaria que falo
- Uia, então eu vo lá vê se ela não qué uma reforma, qualquer coisa
- Zé...
- Mas eu sou pedrero ué!
- Eu sei, mas cuidado
- Escuta, mas de quem que era aquela casa?
- De uma tal de dona Eugenia que mora lá no centro, viúva de um juiz eu acho
- Agora tá endinherada, será que num precisa de uma reforma na casa que ela mora não?
- Sei lá, eu nem sei onde mora essa tal
- Ô Marivaldo, me vê mais uma branquinha aí que eu tô atrasado
- Atrasado?
- Venâncio ocê nem sabe, se eu chego em casa e a Neuza já tá com o pano de prato no ombro... rapaiz, o bicho pega. Ela qué que eu janto cedo pra ela lava os prato e assisti a novela sossegada, tchau
- Tchau Zé

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Causos

O meu pai contava que, quando ele era menino, lá pelos seus treze, quatorze anos, ia pescar com meu avô, o seu Augusto.
Nem tanto porque gostasse de pescar, mas porque gostava da companhia do pai. Mesmo a pesca sendo uma atividade silenciosa, estar perto é estar perto.
Caminhavam pela fazenda, depois pegavam uma estradinha, que a mim me parece mais um caminho e chegavam ao rio.
Nessa estradinha/caminho havia uma casa, habitada, sempre de janelas e portas abertas, um cachorro aqui, onde nunca se via ninguém. Simples, muito simples, mas arrumadinha.
Sempre passavam por ela.
Um dia, lá iam meu avô, meu pai e um dos irmãos dele para mais um dia de pescaria.
Ao passarem pela casa, viram a mesa coberta com um lençol branco, um silêncio, flores frescas em um bonito vaso no qual nunca tinham reparado.
Estranharam não haver ali ninguém, mas imaginaram que pudessem estar a caminho da cidade, das fazendas vizinhas, a anunciar tal tristeza.
Não entraram, mas parados na porta tiraram os chapéus e fizeram uma oração.
Depois seguiram caminho. Meu tio mais tagarela do que normalmente a dupla avô e pai.
Final do dia, de volta da pescaria, qual não foi a surpresa ao passarem pela mesma porta aberta!
O lençol estava amontoado a um canto da mesa e uma mulher cantarolava experimentando sua nova preciosidade: uma máquina de costura a mão!
Pois é, eles rezaram para uma máquina de costura, uma relíquia, exposta no lugar de maior prestígio da casa: a sala, coberta das impurezas da estrada pelo melhor lençol!
O tagarela riu muito, meu pai o seguiu e juntos desfizeram a carranca que vô Augusto tinha desenhado!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Nem tudo sai no jornal

Era elegante o meu avô Augusto.
Alinhado em seus ternos de linho branco e chapéu impecável. Circulava bem pela vida social da cidade pequena.
Não conheci minha avó Angela, mas dizem os anais da família Nicolino, Nicolini ou Nicoleto, que era mulher discreta.
Na foto que quase se vê, coluna social do jornal, a irônica sombra a protege, ou a persegue?
Avessa a eventos sociais, o que era motivo de discórdia com o sociável Augusto, imagino que tenha chorado recolhida quando ele comentou:
- e que vestidos são esses? sempre de preto, parece que compra tecido de guarda-chuva para fazer as roupas!!!

Certa feita, dona Angela ao cuidar da capa de chuva deixada à noite no hall de entrada da casa, encontrou no bolso um elegante par de luvas.
Quase em silêncio, uma raiva genuína, atirou o par de luvas no fogão à lenha onde já preparavam o café e as viu serem consumidas lentamente.
Um pouco mais tarde, o filho de número 6, Nelson, indaga:

- mãe, viu umas luvas que deixei na capa de chuva do papai que usei ontem à noite?

Em tempo, o filho de número 3 - Luiz, que aparece na foto, é o meu pai.
Olhar azul e firme em um futuro que já veio e que já foi.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Habitantes da Marginal

Seguiam ou quase, na marginal empoeirada, oito e meia da manhã, um calor insinuante, um trânsito que já virou tese para entendimento da modernidade das metrópoles.
E seguiam felizes em seu carro de ano desconhecido, de um vermelho bonito mas completamente empoeirado.
Janelas abertas denunciando a falta de ar condicionado e duas crianças empoleiradas no banco de trás.
Seguiam rindo, um riso solto, feliz, um casal marrom, de cabelo ruim, de dentes brancos, de coração aberto.
Pais de crianças que espiavam alegres o desfile dos carros pretos e pratas, não fabricam de outra cor? Com seus vidros fechados, cerrados, escuros para proteção não do sol nem de olhares, mas de ladrões. Ladrões?
Um desfile de carros importados, motores potentes, onde mal e mal se vê o motorista solitário pelo retrovisor.
Quando acompanhados, são mulheres de cara amarrada que dão os últimos retoques na maquiagem, quase de costas para o condutor.
Nenhum sorriso. Nenhum aceno. Nenhuma seta. Soberanos em suas contas bancárias.
E, no final do dia, eu queria mesmo era um churrasco e uma cerveja gelada com o casal que lá ía, ou quase, ora porque o trânsito não andava, ora porque o carro velho engasgava, mas felizes, com seus carnês das Casas Bahia!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Comidas

Mandioca. Gema de ovo. Cenoura. Beterraba. Pão de forma. Mandioquinha. Almeirão. Sopa de qualquer espécie. Peito de frango.
Não, não é uma lista de supermercado. Também não é um cardápio.
São alimentos que eu não comia quando era criança, alguns não como até hoje, para desespero da minha mãe.
Depois o paladar vai mudando, algumas coisas nos parecem deliciosas da noite para o dia.
Por isso, faço caras e bocas ao pedir que minhas pequenas experimentem coisas, mas de fato, obrigar-obrigar a comer não funciona.
Aquilo desce atravessado, embolado, se revolta, quer voltar e o estômago rapidamente se conecta com o fígado e dá uma raiva de quem nos obriga... Uma raiva sem trégua, sem retorno...
Minha mãe era paciente e insistente. Como eu comia muita alface, adorava agrião e repolho, passava bem por alguns desses momentos emblemáticos.
Certa feita passei mais de uma semana comendo apenas uma combinação, tanto no almoço quanto no jantar: arroz branco, carne moída bem refogada com bastante cheiro verde e gomos de laranja enfeitando um canto do prato.
Confesso que minha paciência tem limites mais justos do que os da minha mãe!
Não como frutos do mar, não como comida japonesa, nem toda massa me apetece, nem toda carne, nem toda fruta, nem toda verdura, nem todo legume.
Tudo experimento, mas nem tudo aguento!
Gosto de chocolate mas não sou chocólatra, prefiro doces mais caseiros como quindim, pudim, qualquer um com muito côco.
Tudo passa, tudo muda, por isso sigo experimentando e de vez em quando me surpreendendo!
Coisas de que não gostava...
Coisas que sempre gostei. Mãe, advinha... sábado descobri um bolinho de chuva tão gostoso quanto o seu.
Acompanha o café, depois do almoço, no Noz Moscada, um restaurante simples, escondido na beira de uma estrada, lá pelas bandas de Jundiaí.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Antonia, por onde andarás?

A cidade era pequena, a casa era pequena, mas a família era grande, os problemas eram grandes.
Quando tudo ia mal e todos brigavam, não havia onde se esconder.
O pai que bebia além da conta, as contas que passavam da conta.
Um jeito difícil de viver.
Nesses momentos, saia de casa sozinha e percorria um longo caminho por ruas de asfalto empoeirado.
O sol transformando a paisagem em reflexo de água, primeiras imagens de um ilusionismo que nunca aprendeu.
Casas grandes de bairro nobre enclausuradas em suas grades. Se briga houvesse por ali devia ser em sussurros de quartos fechados protegidos dos pobres.
Por ali risco nenhum de encontrar amigos de escola, vizinhos, parentes.
Escondida na imensidão de uma cidade pequena ia ao cemitério.
Lá, perto do cruzeiro, podia chorar sem vergonha, sem razão, sem explicação. E chorava todas as suas mágoas e pedia por sua família.
Um ou outro podia apiedar-se, pensar certamente que menina tão nova devia chorar a mãe perdida. Mas ninguém a abordava e por isso sentia-se protegida em sua solidão.
Depois de chorar tudo, enxugava os olhos, descansava um pouco e fazia o trajeto de volta.
Confortada pela ideia de que a mãe já estaria lavando a louça do almoço, o pai já estaria tirando um cochilo, um e outro vendo tv, uma manga madura caída no quintal... tudo de novo normal. Vida pequena.
Antonia, por onde andarás?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sempre haverá catarses

Sempre haverá controvérsias a respeito dos estudos que tentam entender os hábitos dos consumidores. Sempre haverá estudos sérios e sempre haverá modismos. Sempre haverá histórias que não buscávamos, que não apresentamos ao cliente, mas que guardei em minha historioteca do coração!
Falávamos de chocolate, da relação das mulheres com esse prazer e descobríamos coisas como:

- Sempre que faço a compra do mês compro uma barra e quando chego em casa escondo na máquina de lavar... quando meu marido vai pro trabalho, as crianças vão pra escola, me recosto na cama e como a barra inteirinha... também compro pras crianças, pra casa, mas uma inteirinha é só para mim

Um prazer sexual com o chocolate.
E de outra feita, para vender mais absorventes e minimizar a loucura que é ficar na frente de pacotes miúdos com tanta explicação... com aba, sem aba, anatômico, diurno, noturno, cobertura seca, cobertura suave ou... a conversa foi ficando tão íntima que, atrás do espelho, pude enxergar olhos curiosos, olhos de compaixão, olhos de surpresa, olhos de alívio com a confissão:

- Quando eu era menina minha mãe não falava comigo sobre essas coisas, de ficar mocinha, eu não sabia de nada, o que eu sabia é que tinha uma mulher que vivia na praça da cidade, uma mendiga, que todos diziam que era prostituta, que ficava por ali com os vagabundos da praça. Quando ela menstruava, todo mundo via, ela ficava suja, nem ligava. Quando menstruei pela primeira vez, me tranquei no quarto e chorei até quase morrer. Eu achava que tinha virado prostituta e que teria que viver na praça, como aquela mulher...

Sempre haverá controvérsias.
Sempre haverá catarses.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

4a feira de Cinzas

Não gostava de meias pala...
Tinha muita pregui...
Mas gostava de histórias inteiras. Simétricas, com começo, meio e fim.
Simétrico é um adjetivo que se pode usar para histórias? Pensou, mas não soube responder.
Queria contar uma história inteira. Não sabia qual.
Não havia um carnaval em sua infância que não ganhasse um espirrador de água de plástico colorido e um martelo. Saquinhos com confetes e serpentina. Mesmo que ficasse no quintal de casa, era um presente como o do papai noel ou presente de aniversário ou ovo de páscoa em abril.
A páscoa sempre cai em abril? Não sabia responder, mas se lembrava da resposta de seu irmão:
- incrível não é? sempre cai, mas nunquinha se machuca

Quanto tempo...
Agora anda às voltas com meio expediente.
Meias palavras, meias decisões, meias brancas que ainda precisa comprar. Volta às aulas inteiras.
Nesse carnaval que passou, no meio de uma das tardes inteiras, Zeca Baleiro comandou o show:
...quem não pode Nova Iorque vai de Madureira...
...as meninas dos Jardins gostam de rap...
...sou fio da véia oh eu não pego nada, a véia tem força oh, na encruzilhada...

Já não precisa de palavras inteiras para entender que ainda está no meio do caminho!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma dança

- Quer dançar?
O coração disparou. Queria. Claro que queria.
Fez que sim com a cabeça, deu um meio sorriso e tentou disfarçar que aquilo era tudo o que ela queria naquele momento.
Ele a segurou pelo ombro e a conduziu mais para o meio do salão.
Um frio na barriga. Não saberia dizer que música estava tocando porque já se imaginava dizendo um sim delicado para um pedido de namoro.
E depois, passeios, beijos delicados em tardes escondidas. Sorvetes coloridos em sábados ensolarados. Filmes, quaisquer filmes em noites de inverno.
O cheiro, a respiração pausada, a cabeça pousada no peito. Os pés leves, a impressão de que não havia ninguém mais por ali.
Um aconchego. Um medo de que a música acabasse rápido demais, um abraço um pouquinho mais forte e ele:
- Clara, você sabe se a Isabel está ficando com alguém? Se ela tem algum namorado na escola?
- Por quê?
- Eu sou alucinado por ela, não sei mais o que fazer, pensei que... você sendo tão amiga dela podia me ajudar
As pernas tremeram, não soube bem o que dizer, uma música insuportável que não acabava mais...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

1989 – O carnaval em que não morri

Em 10 de dezembro 1988 eu perdi tragicamente um grande amigo. De estudos, de dança, de baladas, de textos escritos, de cartas, de um futuro que nunca chegou.
Em 1989, tudo era a primeira vez sem ele desde muitos anos. No carnaval, alguns amigos me disseram:
- Lu, se não vai para o interior, na casa dos seus pais, tem que vir com a gente para a casa do Carlos, na praia. Vai ser legal, você vai ver, conhecer gente nova, tomar sol, vai se divertir!
Carlos era um novo amigo, conhecido há não muito tempo e que estava de namorico com uma das garotas do grupo. Eu não tinha vontade de ir, mas fiquei de pensar.
Noites depois tive um sonho com meu amigo que se fora em dezembro.
Simples. Calmo. Real. Eu estava dormindo e ele se ajoelhou na beira da minha cama, segurou a minha mão e disse baixinho:
- Lu, quando chegar o verão, você vai virar verão como eu
Acordei pensando em ter tempo de vê-lo, de perguntar o que aquilo queria dizer, mas era um sonho. Só um sonho. Mas um sonho que não deixou de me perturbar e fiquei pensando que o verão poderia significar carnaval e que virar verão como ele poderia significar morrer e por isso decidi não ir à praia. Decidi não ir a lugar algum.
Não contei a ninguém sobre o sonho, apenas avisei que não ia, que ia arrumar meus livros, meus armários, ir ao cinema...
E foi o que fiz. Naquele carnaval fiz muitos passeios com quem hoje é meu amor, mas é uma história linda que merece uma história inteira.
Voltando de uma chuvarada no parque, completamente encharcada, percebi uma movimentação diferente em casa. O carro do pessoal que tinha ido à praia estacionado ali denunciava que algo não estava bem.
- Lu, me disse uma das amigas quando entrei, houve um acidente. O Carlos saiu de moto de manhã para comprar pães e não se sabe como bateu violentamente em um poste e morreu.
Fiquei atordoada. Tomei um banho, preparei-me para todo o ritual que me esperava e, não disse nada a ninguém e nunca ninguém poderá me responder, mas... estaria eu na garupa daquela moto?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Recordações

Pegou a caixa onde guardava os retratos e sentou-se na beira da cama.
Era só o inverno chegar, o vento soprar e a chuvinha fina e gelada cair que sentia necessidade de olhar as fotos.
Uma por uma, devagar.
Às vezes separava por personagem. Em outras por data, em outras por estar ou não nas fotos.
E as imagens ajudavam a acalmar o coração, mas sempre molhavam os olhos.
Toda uma história transformada em pedaços de papel.
Uma caixa tão cuidadosamente decorada para guardar essa história.
Não gostava de ser vista nessa atividade.
Era como tomar banho com a porta aberta ou no meio de todo mundo.
Cabelos ao vento, crianças em maios coloridos.
Fotos 3x4 de gente fazendo cara de obrigação.
Roupas de festa. Churrascos. Gatos e cães que passaram pela casa.
A impressão que tinha é que o inverno chegava cada vez mais rápido, que o vento a chamava mesmo quando não era inverno e que a chuva lhe dizia coisas ao pé do ouvido.
Apertou uma ou outra imagem no peito.
Guardou tudo, fechou a caixa.
Abriu um pouco mais a janela, respirou fundo e não quis pensar no destino daquele tesouro quando não mais estivesse ali para cuidar.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Crise de meia idade

- Com que roupa você vai?
- Ah sei lá, uma calça e uma camisa...
- Bom, isso eu já imaginava, quero saber com qual calça, com qual camisa!
- Mas pra que você quer saber?
- Ué, pra ver se o que vou vestir vai ficar bom
- Quê? Quer ir combinando comigo? Isso é muito brega!
- Não, não combinando, mas não quero você de camisa xadrez e eu de vestido listrado
- Mas eu não tenho camisa xadrez, eu não gosto
- Ai é só um exemplo!
- Acho que vou com um jeans mais escuro e uma camisa branca, acho que tá bom
- Nossa, parece uniforme, o jeans varia de tom, mais escuro, mais claro, agora as camisas... parece o guarda-roupa da Mônica, só vestidinho vermelho, tudo igual...
- Eu tenho camisetas de um montão de cores e jeitos
- É, mas camisa... Eu vou com o meu vestido azul, sabe qual é?
- Não lembro bem
- Esse aqui ó!
- Não vai ficar chateada, mas eu acho que esse vestido não é mais para a sua idade
- Como assim? Comprei no mês passado, usei uma vez!
- Se eu estivesse junto, teria dito isso lá, mas não estava, eu não gostei muito dele não
- Credo, como você é chato, o que tem de errado com ele? Com ele não, comigo?
- Não é com você, é com o vestido, sei lá, essa cor, esse modelo, parece dessas menininhas que vão nas matinês
- Ah é? E desde quando você vai nas matinês pra saber como as menininhas estão vestidas?
- É modo de dizer, de situar o modelo, de contextualizar... Mas, dependendo do sapato, acho que fica bom
- Será?
- É, e se prender o cabelo...
- Vou ficar parecendo uma vovó
- Vai nada, vai ficar parecendo uma mulher da sua idade, com um vestido moderno
- Não, vou usar o cinza e depois juntar a maior malona e vender roupa no brechó
- No seu carro ou no meu?
- No meu, o seu é carro de tiozão
- Até parece, olha só, tem...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Números em prosa

Enquanto trafego vejo números: placas de carro, limites de velocidade, números de ônibus e frotas de caminhão. Enquanto ouço rádio, preciso transformar os números em palavras, em histórias, é assim que consigo conviver bem com eles.
Os estágios da vida para mim são assim divididos: de 0 a 7 anos, primeira infância, de 8 a 14, segunda infância, uma área nebulosa que começa no meio dos 14 e vai até os 17 e a partir de então, de 10 em 10 anos são fases da juventude.
Já passei pela primeira juventude, já passei pela segunda e estou na terceira.
Também simpatizo mais com os números ímpares. Toda a minha data de nascimento é par, mas se somo todos os números encontro um magnífico número 7.

O senhor que lia confortavelmente o seu jornal enquanto seu motorista enfrentava a marginal e os motoboys carregava a tradução de sua placa EEU 2218. Ia tão pensativo que se pusséssemos uma interrogação... E eu? Aos 22, 18 anos... Não imaginava tornar-me um executivo.
Enquanto era ultrapassado por um DNA 2006 - provar que é pai, que não é pai, que ano foi esse?
De vez em quando as pessoas se espantam quando alguém pergunta a placa do meu carro e antes de qualquer letra ou número eu preciso pensar alto: hábito inglês. E essas duas palavras abrem meus arquivos mentais e a terrível combinação aparência límpida, clara, fácil: CHA 0217.
O que é isso? Hábito inglês, chá para 2 as 17h00, nada mais romântico e atemporal.

Voltando ao rádio, vamos às notícias da 7a. rodada do campeonato paulista. Preciso prestar atenção na tabela, mais números que terei que converter em palavras. E por fim essas palavras que se transformaram em um número: post de número 251!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Um Tonico como tantos

- Tunico, o armoço tá pronto
- Já to ino
- Oce num trocô a lâmpada da cozinha ainda, de noite não vai te janta, porque eu não vo mais cuzinhá no escuro
- dispois do armoço eu troco
- ara si troca, ocê dorme dispois do armoço
- mais eu acordo num acordo? a hora que eu acorda ocê me alembra de novo
- vamu vê
- ô Tunico, eu to pricisando compra um sapato pro Craudio, eu fiquei com pena dele quando vi junto cus colega, tudo bem arrumadinho, ele tava bem arrumadinho, mais o sapato dele dá de dá pena, já é ganhado do fio da dona Judite
- é, coitado, num dá mesmo, no sábado eu vo ajuda o Zé Olivério troca as portas e janela da casa dele e ele fico de me dá um dinherinho, eu tava pensando em juntá mas compra o sapato dele
- passa essa água aqui pra mim
- é, eu num queria fala nada, mas fico sargado esse fejão que chega queimá a guela
- num é? eu to achando que botei sal duas vezes, acho que enquanto eu fiquei preocupada com a lâmpada que queimô eu fiz isso
- quê? cê tá querendo dize então que a curpa é minha? oia aqui Neuza não vai adiantá não viu? num tô nem aí, toma água, bastante água que é bom pa pele
- Tunico
- hum
- eu tava querendo í embora daqui
- por causa de quê?
- não sei, um aperto no coração, saudade da nossa terra, ocê trabáia muito mas não ganha muito, lá é mais sussegadu
- sei não
- eu não quero morre longe de mãe
- e ocê vai morre, vai?
- ué, eu e todo mundo vai morre o ocê é santo?
- santo não que santo só vira santo quando morre
- é, mas ocê não acha que os tempo tão passando rápido demais?
- tão mesmo
- num qué mais?
- não, vô descansa
- pode í, mas já tá avisado, só vai te janta si tivé luz

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Marina

- Marina
- Hummm...
- Você já dormiu?
- Ainda não...
- Sabe, hoje de manhã, quando eu acordei, eu me dei conta de que nunca contei pra você qual é a minha fábula preferida
- Hum...
- Posso contar?
- Pode
- Os deuses estavam reunidos no paraíso, felizes, conversando, cercados de coisas bonitas, mas um pouco entendiados. Um deles então sugeriu: porque não fazemos umas criaturas parecidas conosco? Deixamos que se relacionem, que evoluam e ficamos assistindo - olha, que legal disse outro.
Começaram a se empolgar. Um deles ponderou que em pouco tempo eles também estariam entendiados e perderia a graça. Foi então que um deles teve uma idéia: podemos tirar alguma coisa deles. É, boa idéia, e o que poderia ser?
Que tal a felicidade?
Nossa, a felicidade não, pode ser perigoso. Eu acho cruel. Eu também. Bom, e se em vez de tirarmos nós escondermos? Assim eles precisarão encontrar aí fica mais dinâmico, mais divertido! O que acham?
Ah, assim sim, muito bom, pode ser assim. Mas onde vamos esconder? Pode ser muito fácil encontrar e de novo vai ficar sem graça.
Hum... Vamos esconder dentro deles. Com certeza será o último lugar onde irão procurar...

E assim fizeram, e aqui estamos nós!
- Marina?
-...
- Marina você dormiu?
- Ainda não... você não pode por um pouco de óleo nos ganchos dessas redes, esse barulhinho acaba irritando, não te irrita?
-...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Meu pé de laranja lima

Não, eu não tenho um pé de laranja lima no vaso, no quintal.
Falo do livro, meu pé de laranja lima.
Quando eu era criança eu lia tudo o que me caia nas mãos. Um dos primeiros contos que li, quando tinha por volta de 7 anos, foi O homem nu, de Fernando Sabino, que estava no livro de português que uma de minhas irmãs usava na escola.
Depois fui ganhando livros mais adequados para minha idade.
Mas nunca deixei de ler folhetos, almanaques de farmácia.
Um dos títulos que me fascinaram porque era realmente um romance foi Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. Ele me fazia parecer adulta!
Meus livros são preciosos. Gosto de tê-los perto de mim, arquivar, reler, folhear, tirar o pó, alterar a ordem: ora por tema, ora por autor, ora por estilo. É um prazer estar ali rodeada por eles. Por isso as notícias sobre os ebooks me apavoram, mas deixemos isso pra lá.
O fato é que por muitos anos o Meu pé de laranja lima de capa vermelha viveu comigo. Em Tupã, em Presidente Prudente, em São Paulo, em Recife, até que um dia...
Um dia em um conversa na casa de amigos a irmã de um deles comentou que o filho precisava ler para a escola Meu pé de laranja lima e ela não conseguia encontrar para comprar. Os da biblioteca estavam todos emprestados. Internet não existia.
Meu amigo tagarela logo lhe disse que eu tinha um. Meu estômago até doeu. Eu previa o pior.
Fiquei constrangida, não pude negar, afinal, como grande incentivadora da leitura, como poderia?
Emprestei. Emprestei e nunca mais o vi. Meu tesouro de capa vermelha talvez nem exista mais.
Talvez perdido em um sebo qualquer. Por mais que eu insistisse na devolução e fizesse comentários, nunca mais o vi.
Levou tempo demais para ler, depois ficamos um tempo sem nos encontrarmos, depois se mudaram de casa e por fim, aceitei o inevitável.
Tempos depois eu comprei outro, minha filha já leu, mas não é a mesma coisa para mim.
Todos os meus livros tem no mínimo duas histórias, e uma delas, tão importante quanto qualquer conteúdo, é a história de como eles vieram até mim.
Tenho outro livro perdido, de Ana Miranda, há exatos dez anos eu o emprestei e não o recebi de volta. Recentemente voltei a ter contato com a destinatária, mas nossa intimidade ainda não foi restabelecida a ponto de comentar o tema.
Pensando bem nem vou. Vou comprar outro. Amanhã mesmo, assim ficarei em paz com essa lacuna em minha vida, quero dizer, em minhas estantes.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

As Anas que conheço

Anas que conheci.
Conheci Ana bebê, que depois cresceu longe de mim, mas sempre foi Ana no meu coração.
Ana minha melhor amiga, Ana da minha adolescência, com quem eu confidenciava os primeiros segredos do coração. Com quem fazia lição. Ana com flor no nome e na suavidade com que encarava a vida.
Ana que revi anos depois, correndo no parque. Ana igual.
Ana exuberante. Ana falante do meu MBA. Ana mais meiga do que o olhar de fera tenta apresentar. Anas de ontem, Anas de pouco tempo, Anas recentes.
Ana que agora me ignora, que não responde meus e-mails, que deixa comentários sem resposta.
Ana que gostava de mim quando eu era pouco mais que um cargo que a ajudava enriquecer.
De todas as Anas, dessa tenho compaixão, pobre espírito em longo caminho de peregrinação. Como nas canções, gosto dela, mas ela não gosta de mim.
Ana de gestos delicados, de um francês requintado, mas de dança tão brasileira. Ana tão nobre.
Ana que de terra em terra revi em Nova Iorque. Sorriso largo!
Ana da busca pela felicidade. Ana do olhar enviesado e da boca que se retorce, que pode gritar, já descobri, mas que fala alto quando sussura ou quando escreve suas singelices.
Ana tia, de gatos mimados e entre todos o mais felino Guerino.
Ana que de apelido que assusta engana quem acredita que por ela não pode se apaixonar.
Anas que conheço, Anas que conheci, Anas que carregam Maria, Paula, Beatriz.
Ana pequena, aquela que quebrou a perna bem na festa de aniversário e que agora me deixa mensagens pela internet.
Ana que se importa, Ana que sobrevive, Ana que passa, Ana que me convida a refletir.
Ninguém é tão infeliz que não conheça uma Ana que seja importante em sua vida.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sábado

Sábado. Noite fresca, gostosa, a chuva lavou várias vezes as ruas.
O restaurante está cheio na medida exata. Nem tumultuado, nem vazio, nos dando aquela sensação de que não escolhemos o melhor deles.
As meninas tem muitos assuntos.
A bebida é boa. A companhia é boa. A comida é boa.
Porque tenho que perceber coisas que a ninguém mais importa?
Alguns garçons são bastante jovens.
Fico pensando que em uma noite de sábado como essa eles deveriam estar se divertindo e não trabalhando.
Mas não cabe a mim decidir isso.
Dois deles são tão parecidos que até agora tenho dúvidas de que não fossem gêmeos.
Negros. Quase negros, daquela cor que as pessoas não sabem classificar por pudor, por medo de parecer politicamente incorreto e que minha filha já traduziu muito bem certa feita: eu tenho um amigo marrom que...
Mas um deles não estava em seu melhor dia.
Não nos atendia, mas o vi sendo chamado atenção. Vi olhares entre superiores e subordinados.
Vi seus passos traçarem caminhos desequilibrados pelo salão.
Vi que não soube responder a pergunta do cliente. Vi que passou rápido pelo superior e o vi suspirar para não deixar a raiva piorar a situação.
Cabelo bem curto no alto da cabeça.
Quantos anos tem? Tive vontade de perguntar.
Ninguém no salão pareceu notar as entrelinhas.
Um bastidor transformado em palco em um espetáculo angustiante que só eu assistia.
Tentei comentar com meu par. A conversa não progrediu.
- mãe não gostei do suco, quero água
- alguma sobremesa?

Para casa.
Tudo tão resolvido.
Um drama sem final para mim, mas e para ele? É o começo de uma vida que promete porque calcada em trabalho, em responsabilidade? Ou é o começo da frustração estampada em um pacote que acomoda sobras para a viagem?
Boa noite. Voltem sempre.
Obrigada!