segunda-feira, 31 de maio de 2010

Coisas de cinema

Minha primogênita ainda não tinha 2 anos quando recebi um convite para a pré estréia do filme infantil Rugrats. Ponderei e resolvi levá-la, já que era uma sessão especial, as 10 da manhã, só para convidados, ideal para observar o seu comportamento.
Encantada com o universo, assistiu o filme inteiro com pequenos comentários, sem pedir água, banheiro, mamadeira ou qualquer outra coisa.
Eu fiquei orgulhosa da minha pequena. Será que é assim que nasce um cinéfilo?
Na saída mostramos cartazes de outros filmes infantis que estavam em exibição e seguimos o curso de nosso primeiro final de semana com cinema na programação.
Na semana seguinte, quase dez da manhã, ela me puxa pela manga e começa:
- vamos, quelo ver "apantis"
Demorei a entender, mas compreendi. Ela queria repetir o sábado anterior indo ao cinema e queria ver Atlantis, o filme infantil que eu tinha mostrado no cartaz.
Consultamos rapidamente a programação e estava passando só no Jardim Sul, com uma sessão em uma hora. Voamos para lá. Uma sessão normal, compramos ingresso e, mamadeira a tiracolo, assistiu o filme inteirinho, sentada em sua cadeira, com cadeirinha para ajudar na altura, como quem sempre estivesse estado ali.
Um mundo novo se abriu e desde então não se perde um lançamento, uma pré estréia, com direito a todo o universo que o envolve: bonecos dos personagens, dvds, livros de onde as histórias se originaram e por aí vai.
Quando a caçula nasceu, esse mundo não foi nenhuma novidade.
Não temos o hábito de formular a famosa pergunta: o que vai ser quando crescer?
Até porque, uma das muitas crianças espertas que existem por aí já respondeu com muita propriedade: vou ser gente grande!
Mas é inevitável que se faça e gosto de ouvir as respostas sem o ônus de gerar essa expectativa, essa ansiedade.
Ao ser indagada, por volta dos 4 anos, o que seria quando crescesse, minha pequena respondeu categórica:
- vou trabalhar no cinema
- ah, vai ser atriz
Mas quase ofendida retrucou imediatamente:
- não... vou mandar na atriz, vou fazer o filme
E entendi que ela ainda não sabia uma palavra: cineasta.
Carrega isso em seu discurso até hoje. Escreve histórias que diz que filmará, inventa personagens, cria cenas, dirige nossas falas durante o jantar. Assiste trechos de filme sem som enquanto ouve uma música no fone de ouvido para "encaixar" a cena, cria finais diferentes para histórias consagradas. Reconhece a voz dos dubladores: ah, essa voz é a mesmo do...
Usa fragmentos dos textos para inserir em suas conversas desde muito pequena.
Antes mesmo dos 5, ao ser mandada sentar e pensar sobre uma traquinagem bradou:
- Justiça!
E não era senão Esmeralda, a cigana do Corcunda de Notre Dame, bradando em cena comovente!
Está crescendo a minha menina.
Ontem, no café da manhã, eu comentava sobre um problema do cotidiano e ela filosofou:
- Olha, encare a vida como se fosse um filme. Se algo der errado é como se o diretor dissesse: corta, isso não está bom!
E, percebendo que meus olhos se encheram de lágrimas, tentou me fazer rir:
- Meu nome pode ser meio esquisito, como o do Naruto, mas um dia vai estar nas telonas, na abertura de um filme!
Não quero cortes, está bom assim, mesmo que tenha um final diferente, agora, está muito bom assim!

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Cavalos

Cavalos vêm e vão com seus olhos impressionantes.
Cavalos carregam a alma toda em seus olhos.
Por isso grandes, por isso profundos, por isso nos atravessam com seus olhares e por isso não falam. Não precisam.
Sócrates, um pangaré que quando percebia que eu o encaminhava para a cocheira apoiava a cabeça em meu ombro. Agradecido. Velho, cansado.
Não servia mais para as aulas de equitação para as crianças porque, apesar de muito doce, fazia sozinho todos os movimentos.
Ele mesmo sabia. E como avaliar o avanço nas aulas se o próprio professor fazia a lição?
Cavalos que vêm e vão.
Bodon, um brasileiro de hipismo alto, elegante, que perdia toda a classe quando a cama nova estava pronta, porque se atirava nela com estardalhaço assustando quem não conhecia suas manias.
- ele está passando mal? nunca vi cavalo deitar
- não, está apenas aproveitando a cama nova...
E malandro, olhando de lado, não perdia a chance de comer o boné das crianças que, em fila, visitam a hípica.
Cavalo de calça.
Cavalo marinho.
Cavalo de tróia.
Cavalo de caminhão. Sem sua carga, sem sua alma.
Cavalos que vêm e vão.
Galope infinito de pernas fortes e crinas ao vento.
Cavalos que dançam para o rei. Na Real Escuela Andaluza del Arte Ecuestre em Jerez de la Frontera, na Espanha, um castelo para acomodar o rei, um castelo tímido perto da arena dos maestros. Elegantes. Impressionantes.
Cavalos que vêm e que não vão!

quinta-feira, 27 de maio de 2010

É fácil observar

A fumaça é engraçada. Ela quer desviar a atenção da beleza do fogo com sua feiúra.
Ela está convencida de sua feiúra, não eu, mas ela não ouve ninguém.
Embaça tudo, afasta quem tenta se aproximar, mas ela não existe sem ele. E quando ele morre, ela vai mudando de cor, até desaparecer.
Quase a mesma situação em que vive o espinho no talo da rosa. Mas eles não se conhecem. Até pode ser que um grande incêndio tenha destruído uma roseira. E ambos em sua dor podem ter trocado um olhar cúmplice, mas quem poderia ter registrado isso?

As relações são cheias de armadilhas. A lua, quase transparente, tem a audácia de aparecer de dia enquanto o sol brilha. Passa pelo céu com aquele ar de mulher que sai do banho enrolada na toalha querendo ser vista pela janela, ou flagrada pela visita que a espera na sala.
Uma cara de surpresa que não surpreende ninguém.
A lua parece um gato dormindo em lugar proibido. O sol, elegante, finge que não vê.
Ele não tem esse descaramento. O sol da meia noite não vale, é um fenômeno que ocorre nas latitudes acima de 66º 33’ 39" N ou S, onde ele não se põe durante pelo menos 95 horas seguidas. Em latitudes superiores a 80 graus, não se põe por mais de setenta dias, não há noites durante mais de dois meses.
Talvez seja um jeito dele se vingar sem castigar tanta gente que não merece o desplante da lua.

Relações, fáceis de serem observadas, difíceis de serem vividas.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Jogo

Para todas as perguntas, um balançar de cabeça, um dar de ombros, uma resposta evasiva: não lembro...
Para todos os sorrisos, boca aberta mas um olhar que denuncia: é uma obrigação.
Para cada gentileza, um gesto automático, mecânico, de quem não tem vontade, mas acionou a prudência e exime-se de pensar.
Para cada segredo, um medo.
Para cada piada, um esgar.
Há pessoas que não se alcançam.
Há barreiras que não se ultrapassam.
Há histórias que não se revelam.
Há ovelhas que não se resgatam.
Há os que não tornam, apenas entornam o que poderia ser simples, claro, fácil, leve, amistoso, divertido, franco.
Todo o futuro, negro.
Todo o presente, se suporta.
Todo o passado, não me importa.
Estamos onde estamos por um jogo invisível, estratégico, com liberdade para escolha das pedras: pretas ou brancas?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Arte sutil

Permito-me um domingo preguiçoso, de acordar tarde.
Mas não passo incólume do que reaprendo no dia a dia das crianças de hoje.
Encontro a sala iluminada, com vida há muito tempo, uma desenhando mangás, a outra lendo a Recreio do último sábado.
Sorrisos abertos.
- Já tomamos café, eu esquentei salsichas! Diz do alto de seus dez anos a minha primogênita.
- É mesmo? No microondas?
- Não mãe, no fogão. São 3 minutos depois que a água ferve.
- E você sabe ligar o fogão? Eu já fiz perguntas mais inteligentes e ainda sou capaz de fazer, mas naquele momento, ainda estou sonolenta.
Ela me leva à cozinha e me apresenta o fogão e suas funções.
- Nesse botão você liga, nessas setas você controla a temperatura e, óbvio, que quando terminar precisa desligar, nesse mesmo botão de ligar. Jura que você não sabia?
- Não, não sabia. Mas que ótimo que você sabe.
Nunca ensinei minha mãe a usar o fogão a gás quando substituiu o fogão a lenha.
Agora os fogões se chamam cooktops, são elétricos, não precisa fogo, outros tempos, pensa o fogão a gás nos olhando de soslaio e pensando: espera até acabar a energia, quero ver onde há de aquecer suas salsichas!
Voltamos ao café da manhã. Nada que um pão com nutella não leve de volta à mesa duas meninas em fase de crescimento.
Continuo com preguiça e olhando a gata que pode ser preguiçosa sem remorsos penso alto:
- Eu já fui um gato na outra vida. Ao que a professora de cooktops responde sem modéstia:
- Eu fui Albert Einstein
Antes que eu pudesse discorrer sobre autocrítica, minha caçula dispara:
- e eu fui uma minhoca
A sutil arte da ironia.
Rimos e deixo a conversa correr solta.
Há coisas que não ensinamos. O que somos nos sai pela boca, pelos olhos, pela forma como acenamos, são coisas que não se ensinam. Lapida-se, mas não se ensina.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Olhos

Olhos de gato, mistério.
Olhos azuis, encanto.
Olhos de cão, pedido.
Olhos de sogra, doce.
Olhos de namorado, borrão.
Olhos de tigre, presa.
Olhos de tamanduá, formiga.
Olhos de água, distante.
Olhos de amêndoa, engano.
Olhos de jabuticaba, fruta.
Olhos amarelados, disfarce.
Olhos de coruja, sábios.
Olhos de mãe Luzia, verdes.
Olhos de pai Luiz, azuis.
Olhos de mel, compaixão.
Olhos avermelhados, sono.
Olhos de japonês, rasgados.
Olhos de medo, esbugalhados.
Olhos de neto, futuro.
Olhos de filho, passado.
Olhos secos, São Paulo.
Olhos enevoados, não sei.
Olhos sorridentes, crianças.
Olhos fechados, perdão.
Olhos de tio Delfino, destino.
Olhos de carrossel, impressionantes.
Giram sempre na mesma direção e mesmo assim gritam: avante!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Palavras duras, coração mole

- mãe, preciso fazer um texto sobre ilusão de ótica!
- fazer um texto? hum, na minha época se chamava composição
- está certo mãe, quando você escreve compõe alguma coisa, só mudou o nome, mas o produto final é o mesmo
- é, é isso mesmo, você tem razão
- eu sei, hoje em dia sou eu quem ensino coisas a você não é?
- mais ou menos, eu tenho muito, mas muito o que te ensinar
- é verdade, mas a maioria dessas coisas precisa de um pequeno ajuste...
- como assim?
- olha, se você grita: põe esse telefone no gancho menina! eu desligo o telefone porque saco que esse gancho aí existiu em algum aparelho da sua época
- engraçadinha
- bom, mãe, agora tenho que fazer meu texto sobre ilusão de ótica, porque não me conta alguma coisa sobre isso pra eu me inspirar?
- a ilusão de ótica de que mais me lembro é a do sol batendo no asfalto da estrada quando eu viajava com meu pai... eu viu uma poça d água que nunca chegava porque na realidade não existia, era uma ilusão de ótica, provocada pela luz do sol
- que legal, acho que vou usar esse mote
- primeiro eu pensava em como era possível ter um lençol de água sob aquele sol escaldante, não era possível, secaria, mas mesmo assim, ficava ansiosa para ouvir uma espécie de chuá dos pneus sobre a água, um chuá que nunca aconteceu
- valeu mãe, mas agora que já sei por onde começar preciso me concentrar, depois eu leio para você
- tá bom, vou ver se encontro algumas composições em cadernos antigos pra te mostrar
- mas não antes do meu texto ficar pronto, tenho certeza de que as suas composições eram melhores dos que os meus textos modernos

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ritual

De manhã toca o despertador e, ainda dormindo, aperta um botão que o reprograma para dez minutos mais.
No banheiro escova os cabelos antes dos dentes, não suporta ver os fios enroscados no pescoço, na boca.
O vestido é simples, limpo e prático.
Quando a casa ganha vida a cozinha já cheira café e a mesa está posta sobre uma toalha impecável.
Barata, de estampa duvidosa, mas limpa.
Um fala uma coisa. Outro fala outra. Balança a cabeça concordando, apesar de nem sempre estar ouvindo.
Falta o açucareiro, se apressa em buscar.
Separa frutas para a caçula. O mais velho mal engole o pão que ela já deixou no pratinho cortado em três, dois com manteiga, um com geléia.
O marido é o último que sai, mas nem por isso trocam mais do que meia dúzia de palavras.
A casa volta a respirar como quem está em repouso. Silêncio.
Mas ela não pode parar. Tira a mesa. Abre as janelas. Arruma as camas. Rega as plantas.
Separa as roupas. Abastece a máquina. Arruma os quartos. Põe as toalhas de banho para tomar sol. Varre o corredor. De volta à cozinha lava a louça, prepara-se para cozinhar.
Ninguém virá para o almoço, mas é dia de cozinhar o feijão. Arroz prepara todo dia para o jantar.
Ela mesma come qualquer coisa, muitas vezes em pé, perna direita apoiada na esquerda, não é muito elegante, mas está só.
Está sempre só e por isso não pode parar porque não quer pensar.
Passa roupa. Prega um botão. Arruma uma gaveta. Separa alguns guardanapos que não quer usar mais.
Pendura as roupas passadas, põe algumas peças de lã para tomar sol.
Quase cinco da tarde. Toma um banho quente. Queria deixar-se sob a água quente por mais tempo, não consegue.
Senta na sala, ajeita os pés no sofá e imediatamente se arruma, como se estivesse cometendo um delito.
Não se permite. Liga a TV, passa de um canal a outro como quem quer se ver e não se encontra.
Se pensar vai chorar. Não quer. Resolve ir à padaria, o marido adora pão fresco com a sopa do jantar.
Suspira aliviada, mais um dia já se foi e logo eles vão voltar.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O palestrante

Ajeitou a gravata. Não estava seguro da combinação com a camisa, mas não tivera muito tempo.
Olhou a platéia. A luz ofusca quem está no palco, isso pode ser uma vantagem para alguns, mas para ele era temerário.
Aprendera a olhar nos olhos dos interlocutores.
Também não sabia quantas pessoas estavam presentes.
Disseram que de manhã o auditório estivera lotado. Gente sentada nos degraus do corredor.
Se fosse verdade, umas quatrocentas pessoas.
Mas, depois do almoço, sempre há uma queda.
Uns voltam para os escritórios. Outros aproveitam para ter uma tarde preguiçosa.
É quase como gazetear uma aula.
Mas prefere poucos e bons do que alguns amontoados e sonolentos.
Um frio na boca do estômago. Já fizera isso tantas vezes e mesmo assim, toda vez tem um quê de primeira vez.
Já lá se iam muitos anos desde as primeiras apresentações, as primeiras palestras, os elogios como combustível para novas empreitadas.
Agora já não tinha a mesma aparência de antes que, quer queira ou não, ajuda um bocado.
Os fios de cabelo branco não se notam assim com essa luz, mas é melhor tê-los brancos do que não tê-los. Já a barriga. Bem, essa não dá para esconder. O truque é deixar o paletó aberto, gesticular sempre com a mão na altura da cintura. O movimento da mão engana os espectadores.
Mocinhas em seus terninhos pretos convidam a platéia a ocupar seus lugares.
Ajeitam água, bloquinhos, caneta, enquanto um rapazote que tenta domar o cabelo de roqueiro de fim de semana em um rabo-de-cavalo quase comportado ajusta o microfone.
Ele sorri e se prepara.
Ouve a lourinha anunciar seu nome, seu mini curriculum, o tema de sua palestra e sente a primeira pontada. Emoção.
Não, não parece emoção. Uma segunda pontada surge do lado esquerdo, ali não é o estômago, a dor é tão forte que lhe falta o ar. A luz ofusca, mas agora não há luz, tudo está escuro e ele agita o braço direito, não para disfarçar a barriga, mas para buscar um apoio que não encontra.
Não vê mais nada e a última coisa que ouve é um apito de microfone, como se alguém estivesse esbarrado e o deixado cair em frente à caixa de som.
Como é mesmo o nome disso?
Ah é, microfonia...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

São Paulo ensinou minha primogênita a nadar

O que nos é precioso?
O tempo. Moeda de nosso tempo. Um tempo que não se tem.
É preciso ter tempo para ver a flor desabrochar.
É preciso tempo para entender a aerodinâmica das borboletas amarelas que voam em dupla.
Voam baixo, cruzam nosso caminho.
Quando encontramos alguém que não víamos há um bom tempo, nos damos conta do tempo que não temos.
Por que levamos tanto tempo para marcar um almoço?
Pra contar histórias. De um passado de glória. De passado de inglória. De risos e alegrias.
Eu penero a minha história e recolho pepitas.
Nem todas são ouro puro, mas é o que compõe o meu saquinho de legado.
Não tenho tempo de acompanhar minhas crianças crescendo, mas tenho tempo para suas histórias.
Tempo de aprender. Tempo de compreender.
Quando minha primogênita fazia suas primeiras aulas de natação, mal falava, mas me contava:
- mãe... eu pulo na água, de pé, de cabeça, de todo jeito
- é mesmo? e você não tem medo?
- não... o São Paulo me segura
- quem?

Papai do outro lado da sala, tempo precioso para explicar:
- ela nunca conheceu ninguém que se chamasse Paulo, apenas São Paulo, o nome da cidade, e chama o professor assim, de São Paulo, no que não está errada porque ele é mesmo um santo!
Tempo de recontar histórias.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Cinza

Procuro alguém que possa salvar a cor cinza.
Que possa fazer um poema e dizer coisas bonitas sobre ela.
Que serve para realçar as cores vivas.
Que serve para dar seriedade às peças.
Que serve para anunciar um inverno úmido.
Há uma canção de Djavan que diz ...e tudo nascerá mais belo o verde faz do azul com amarelo o elo com todas as cores pra enfeitar amores gris...
Gris é outro nome de cinza.
Qualificando um amor cansado. Um amor acabado. Um amor que não tem forças nem para desistir.
Procuro alguém que possa salvar o cinza.
Que me diga que só enxerga em cinza e que é bonito demais porque a outra opção seria não enxergar.
Procuro alguém porque nenhuma cor quer se pronunciar.
O amarelo encantado do girassol.
O vermelho orgulhoso de seu sangue.
O azul imbatível em seu celeste discurso. Sofisticado ciã.
Rosa flor. Magenta. Cor-pigmento primária e cor-luz secundária, resultado da mistura das luzes azul e vermelha. Cor complementar? Verde.
De mares e florestas. De Peter Pan. De marcianos e duendes.
Escondidas da penúria, deixando o cinza à própria sorte, os marinhos, os marrons, os pretos.
Procuro alguém que possa amar o cinza.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Tá se achando?

- e aí, que tal?
- o cara é mó vélho, deve ter uns 23!
- sério? com aquela carinha de baby?

- e aí, rolô?
- que nada, a empregada dela é mó sargentão
- e aí, que tal?
- nada véio, a mina é esquisita, só fala de teatro, de cine retrô, me convido prumas paradas nada a vê

- e aí, quanto tempo?
- é, tô namorando, batendo ponto, mandando sms, pegando na escola de noite, cinema de sábado, pizza com fantástico de domingo, sei não...

- e aí, você vai?
- ôpa, tô lavando até o carro do papis pra juntar uma grana, cara, tenho que chegar cedo, vo me acaba malandro

- e aí, belê?
- belê nada, tenho que arranja um trampo, pra tranca a facul porque vô bombá, meu pai me mata cara, cê num sabe dumas paradas de trampo não?

- e aí?
- aí o quê? se esqueceu o volcabulário em casa nos falamos amanhã, combinado?
- pô óh o cara, tá se achando? não, tá "se tendo" certeza né? te respeito pra caramba, valeu!

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Tardes de domingo

Época de Copa do Mundo impossível não lembrar.
Domingo à tarde, tardes de jogo. Calor, casa aberta, um entra e sai de gente sem parar.
Nenhum estranho. Éramos sete, em casa nem tão grande, movimento na certa.
Tudo o que importava era acompanhar o campeonato, o time, escutar o rádio jogando palito com minha irmã caçula com o meu pai de juiz.
Ele não prestava muita atenção e eu trapaceava. Minha irmãzinha ficava indignada e então ele dava razão a ela.
Mesmo sem ter visto, mas estava certo.
Eu levava cartão vermelho.
Às vezes só amarelo e então o jogo recomeçava.
Eu a deixava ganhar, síndrome do pequeno poder. Só para demonstrar que eu podia ganhar, mas ela, ela só ganhava se eu deixasse. E não era verdade, ela ganhava porque era melhor, era mais concentrada, mais delicada e tirava os palitos sem movimentar nenhum outro.
Quando a pipoca chegava tudo mudava.
A bacia era enorme. Talvez nem fosse, mas na minha memória de moleca magra era gigante.
Meu pai e eu a dividíamos. Ele generoso não enchia a mão, porque senão...
- dá pra fazer mais um pouco?
E goooollllllll!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Final de tarde feliz.
Desavenças? Não lembro.
Lembro de minha mãe fazendo pouco de algum comentário de meu pai e desacreditando dizia:
- vá, vá
Ao que ele retrucava:
- Vavá jogava no "Parmera"!
Tardes de domingo. Verbos no passado.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Listas

Convivia com listas. Era natural que aguardasse mais uma sem sobressaltos e não entendia porque as pessoas se angustiavam tanto com isso.
Quando se mudou, sua mãe aos prantos o chamou ao quarto e pediu para olharem juntos, uma vez mais, a caixa.
A caixa era uma relíquia para a mãe. Se a mãe alguma vez preparara um testamento certamente a caixa lhe caberia.
Uma caixa de recordações.
O resultado do exame de sangue dando positivo para a gravidez e foi então que as listas começaram.
Lista dos amigos que foram avisados por telefone.
Lista dos parentes que receberam um cartão.
Lista das frutas que deveria comer durante a gravidez.
Lista das roupas que deveria comprar.
Lista dos livros que deveria ler.
Lista dos nomes de meninos e meninas que mais agradavam.
Quando ficou maior, a mãe preparava listas com as atividades do dia.
Listas de supermercado.
Listas de presente para o Natal.
Listas de aprovados em vestibulinhos e vestibulões.
Listas de concursos. Listas telefônicas. Listas de mulheres que queria namorar e listas de mulheres de quem deveria se afastar.
Portanto, para ele, uma lista a mais ou uma lista a menos não fazia muita diferença.
Começou batendo bola no colégio, depois da aula, aí seguia com os amigos e continuavam com a bola no pé, no fim da rua sem saída.
O pai achou por bem que uma escolinha de futebol seria uma vitrine porque ninguém mais é descoberto jogando pelada.
Lista de espera.
Lista de aprovado.
Lista de selecionado.
Lista de convocado.
Não, não fora convocado para desalento dos que contavam sobre outras listas, a de 58, a de 70, a de 94.
Lista de 23, lista de 7 segredos.
Gordo, magro, machucado, destrambelhado. Listas.
Pela primeira vez não estava na lista e, que a mãe não lhe ouvisse, mas depois do susto, foi praticamente uma libertação!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Buracos

Sempre acreditei que o mundo era redondo.
Mas no primeiro momento era óbvio para mim que morávamos dentro da bola que era o globo terrestre.
O chão era o chão e em algum lugar se arredondava como uma pista de skate e o céu era o céu, o teto, a cobertura da bola.
Se abríssemos um buraco não iríamos parar no Japão, mas sim teríamos um buraco por onde a água dos rios e oceanos poderiam vazar.
Meus irmãos, adolescentes, sabidos, riam da minha teoria.
Sempre acreditei que andamos em círculo.
Sempre acreditei que voltamos ao primeiro lugar depois de correr muito.
Sempre acreditei que pudesse mudar e responder calmamente qualquer pergunta.
Mas nem sempre posso. Exaspero-me com os círculos que formam pares e se juntam e se separam e giram como em um caleidoscópio que não criei.
Sempre acreditei que estava protegida em meu mundo, mas ele está cheio de buracos por onde me escapam essencialidades!

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Óculos, por favor

Por uma história longa que envolve cegueira, promessas, pais e avós me chamo Lusia, e mesmo o meu sendo com S, é também o nome da Santa dos Olhos.
Santa Luzia é a Santa que protege e resolve todos os problemas relacionados com “os olhos” das pessoas. Recebeu de Nosso Senhor esta linda missão porque, como conta a tradição, por não aceitar falsos deuses, foi presa e arrancaram-lhe os olhos e, no dia seguinte, ela estava com eles perfeitos. Santa Luzia morreu no dia 13 de dezembro do ano 303.
Meus olhos perfeitos, que tudo observam com clareza, perto e longe, 180 graus!
Desde criança eu queria usar óculos. E inventava dores de cabeça e apertava os olhos como quem tinha dificuldades.
Minha mãe e sua paciência incomensurável me levavam algumas vezes aos especialistas.
Um deles, mais que raiva!, passou-me uma série de exercícios com um lápis. Óculos que era bom mesmo, nada.
Alguns anos depois, um outro, menos preocupado, menos atento, passou-me uma receita para 0,25 em um deles, direito ou esquerdo, já não me lembro qual e apenas um vidro no outro e não houve alegria maior do que aquela coisa pendurada em minha cara miúda.
Por muito e muito tempo eu me recusava a voltar ao médico com medo de não ter um 0,50 mas vidro em ambas as lentes e adeus adorado objeto.
Eu me debruçava em livros e cadernos e jornais e revistas e bulas de remédio e panfletos e por isso, claro vista cansada!
Adulta, uma oftalmologista ousou me dizer: se a vista cansa é porque não é saudável, seus olhos são muito saudáveis, você não precisa de óculos com grau nenhum!
E passei toda a faculdade com cara de quem esqueceu os óculos em casa, sem grau algum, solidária com os que buscavam trocar os óculos pelas lentes.
Outra tentativa e a recomendação: olha, você não tem nada, parabéns! e, se gosta tanto de óculos, pode fazer uma coleção de óculos de sol, que tal?
Uma ofensa, uma futilidade, conselho velho porque eu já tinha uma porção deles.
Finalmente, pelos idos de 99, idade avaçando, tudo se anuviou. E na consulta... Vamos esperar o bebê nascer porque é muito comum que na gravidez haja alteração na visão, mas é passageira, seria muito precipitado fazer algo e falta tão pouco para o bebê chegar, não é?
Assim o tempo foi passando, fui deixando isso de lado, sempre ouvindo: que benção ter olhos assim, deve ser porque se chama Lusia! E agora, que realmente tudo se complica, que os óculos vivem pendurados no pescoço, que preciso lavá-los com detergente, que me apertam atrás da orelha, já não vejo muita graça.
Hoje eu os esqueci na minha mesinha de cabeceira, sobre o livro, e o dia vai ser longo e distante de todas as letras pequenininhas.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Desistir

Inscreveu-se no concurso e ficou esperando a resposta. Nunca veio.
Candidatou-se a uma vaga em uma empresa legal e queria tanto trabalhar lá que nunca mais procurou emprego em lugar nenhum. Nunca foi contratado para o emprego legal.
Prestou vestibular para medicina três anos seguidos, em cinco universidades diferentes e não passou. Nunca mais estudou.
Comprou um bilhete de loteria e guardou na carteira. Nunca conferiu o resultado.
Deu o nome para a fila de espera do restaurante, mas saiu para olhar as coisas em volta. Nunca mais almoçou.
Começou a responder um questionário sobre seus hábitos de alimentação, por um link que recebeu por email, mas o telefone tocou. Fechou o computador, saiu, nunca completou a informação.
Coisas que importam, coisas que não importam.
Quem decide o que muda a vida e o que não muda a vida?
Um conto que ficou sem final. Um poema que ficou sem rima.
Ia ser médica mas virou nutricionista.
Ia ser atriz e virou bancária.
Ia ser advogado mas virou vendedor de carros.
Ia ser dentista mas virou gerente de marketing de pneu de caminhão.
Ia ser feliz mas virou mais um cara na multidão que não tem tempo para descobrir que a felicidade está no cafezinho quente que tomamos na padaria enquanto a chuva cai e não nos deixa atravessar a rua em segurança.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Tudo o que sabia sobre futebol

Tudo o que sabia sobre futebol era que tratava-se de uma paixão nacional.
Que é preciso dois times, de onze pessoas, um juiz, dois bandeirinhas ou auxiliares.
Que há regras, inúmeras regras e que, curiosamente, as pessoas que assistem sabem mais sobre elas do que os tais juízes e auxiliares.
Que agora há juizes e auxiliares mulheres, coisa da modernindade.
Que os goleiros odeiam as paradinhas que os batedores de pênalti dão antes de marcar o gol.
Tudo o que sabia sobre futebol era que homens adoravam e mulheres se irritavam com as transmissões de tv e com as peladas de quarta-feira. Não mulheres peladas, peladas: uma das denominações de jogos entre amadores.
Mas amadores não são os que amam? Os profissionais deixam de ser amadores?
Tudo o que sabia sobre futebol era que a cada quatro anos há um campeonato mundial.
Que sábado, domingo e quarta-feira tem jogo. Que a programação da TV as vezes muda para ajeitar a transmissão entre novelas, filmes e quetais.
Tudo o que sabia sobre futebol era que Ademir Menezes cumpriu a promessa de abandonar o futebol, por conta de um joelho doente, depois de um Vasco e Corinthians em pleno Maracanã. Adeus Queixada!
Tudo o que sabia sobre futebol era que dava problema! Briga, confusão, gente que não entendia nada escalando time e falando mal de técnico, credo, que assunto!
Que garotos agora são vendidos a outros países com dez, doze anos porque são esperanças nas quatro linhas.
Que os estaduais estão muito chatos, mas que de vez em quando uma final de um Paulistinha, ganha ares de copa do mundo. E que, as vezes, pontos corridos com quadrangular final vira um tal de perder mas ser campeão que ninguém entende!
Tudo o que sabia sobre futebol era que Gandulla era o sobrenome de um atacante que o Vasco trouxe da Argentina em 1939. Que ele, Bernardo, nunca se adaptou ao modo de jogar do time e não chegou a ser escalado, mas queria ser útil e corria atrás da bola para devolvê-la, quando ela saía do campo.
Tudo o que sabia sobre futebol não servia para nada, a não ser para alegrar a si mesma quando queria apenas descansar a cabeça.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Visita

- quando eu ser grande eu vou casar com o moço mais bonito da cidade!
- é mesmo?
- é, e eu já conheço ele, ele mora na frente da casa da vovó
- mas ele já é grande ou ele é um menininho que vai crescer?
- ele já é grande, mas ainda não é todo bonito porque ele ainda usa óculos
- como ele se chama?
- Rafael
- e ele fala com você?
- ele fala comigo mas eu não falo com ele porque eu tenho vergonha e porque ele me chama de bebê
- e você não é um bebê?
- não, eu tenho 4 anos, bebê usa fralda e nem sabe andar
- o Rafael está na escola?
- eu não sei, mas ele sabe jogar bola, que eu fico vendo ele jogar bola na rua em frente a casa da vovó
- e ele joga um beijo pra você?
- não, ele não me vê, eu fico escondida atrás do portão
- mas será que quando você crescer você não vai achar outro moço mais bonito que ele?
- mas aonde? se eu só fico em casa e vou na casa da vovó!
- ah, mas quando crescer você vai a muitos lugares, vai estudar, vai trabalhar, vai viajar
-não, eu não vou não, eu vou casar com o moço bonito quando eu ser grande
- mas não vai nem estudar?
- vou, eu já até estudo, sei escrever meu nome, sei cantar, sei desenhar, já aprendi tudo
- e o que vai estudar quando crescer?
- não sei ainda, mas eu não quero estudar igual a mamãe
- por que?
- porque ela só estuda até hoje e já é grande e não brinca comigo, o papai foi até embora porque ela só estudava e não brincava com ele
- hum, mas não precisa ser assim, você pode estudar e fazer outras coisas, porque não conversa com a mamãe sobre isso?
- porque ela tá no computador e falou pra eu ficar aqui
- é, sua mãe é fogo, desde pequenininha...
- você conhece ela desde pequenininha?
- sim, quando ela nasceu eu tinha quase a sua idade!
- e você lembra dela?
- lembro, era um bebezinho bem chorão, a minha mãe só cuidava dela e eu ficava meio de lado!
- ah, ela era que nem um caderno e um computador, sua mãe ficava só com eles
- é, mais ou menos isso
- sua mãe é minha vó?
- é, e eu acho que nós deveríamos ir lá pra casa dela, o que acha? eu estou com saudades daquela velhinha!
- e as suas malas?
- a gente leva, acho que a vovó me deixa ficar lá no meu antigo quarto
- deixa sim, ela é bonzinha
- então vamos? vou avisar sua mãe, acho que ela vai gostar!
- vamos, se você ficar agachadinha comigo no portão eu te mostro o Rafael, mas não vai gostar dele porque eu que vou casar com ele, tá bom?
- combinadíssimo

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Vai catar coquinho

Se alguém disser isso para mim hoje...
Sou capaz de dar um beijo na testa segurando firme essa cabeça sábia e sair correndo.
Eu adorava catar coquinho. Eu ainda adoro catar coquinho.
Daquela árvore nem tão alta, mas nada baixa.
De copa larga. De galhos fortes, que se fosse em meu quintal seria um braço forte segurando um balanço.
Folhas verdes, largas. Coquinho amarelinho, mordido vermelho, caroço ao sol, castanha.
- você gosta disso? a minha mãe não me deixa comer
- a sua mãe deve estar certa, não deve fazer bem pra você
- mas e a sua mãe?
- a minha mãe me diz que se eu lavar muito bem eu posso comer
- e você lava?
- eu lavo, eu pego a bacia de plástico, abro a torneira do tanque que tem água forte e lavo tudo bem lavado, depois eu sento na escada e como
- e não dá dor de barriga?
- não, só se eu ficar com vontade e não comer, aí dá dor de barriga
Agora, tantos anos depois, eis que no caminho da minha casa tem uma árvore dessas.
A calçada repleta de coquinhos. Acho que no final de semana vou fazer um passeio mais longo com meu cachorro e com minhas crianças, passear pelo bairro, brincar de catar coquinho!
E para dar um ar cultural posso ir dizendo para minha turma:
- Nome Popular: Chapéu-de-sol, Sete-copas, Amendoeira, Amendoeira-da-praia, Amêndoa, Amendoeira-brava, Amendoeira-tropical, Guarda-sol, Noz-da-praia, Terminália, Amendoeira-da-índia, Amendoeira-do-pará, Anoz, Árvore-de-anoz, Árvore-de-noz, Cuca, Castanhola, Guarda-chuva, Chapéu-de-praia, Amendocira... Os frutos são drupas elipsóides, de cor verde quando imaturos e amarelo a vermelho quando maduros. Cada fruto contém uma semente dura, com amêndoa comestível e muito apreciada na culinária da Índia.

B´ora catá coquinho!