sexta-feira, 30 de julho de 2010

Esparramo histórias

As histórias me procuram e eu não posso guardar todas elas, ficam me dizendo ao pé do ouvido que precisam ganhar o mundo.
Deito-me na cabine da fisioterapia, preparo-me para pensar em nada por uns trinta minutos quando retalhos de um cotidiano começam a se costurar.
A mulher da cabine ao lado pergunta tudo sobre sua enfermidade indignada porque não pode mais fazer flexões, alguns movimentos de alongamento e tão pouco dormir com o braço sob o travesseiro.
Exige saber como essa inflamação instalou-se aí e se ela fizer as sessões todos os dias da próxima semana ficará sem dor, porque afinal, ela vai para a Itália participar da colheita das maçãs.
Enquanto ouve a explicação já disca um número qualquer e pergunta tudo sobre um escritório de contabilidade porque vai transformar a funcionária mensalista em diarista e há muito o que organizar com a documentação. E passa endereço de email, telefone, agenda horário, para o mesmo horário em que virá para a sessão, é gentil, educada, chama a interlocutora de amor, de querida e antes de terminar a ligação se dá conta de que agendou dois compromissos para o mesmo horário. E mesmo antes de dizer adeus, já está inquirindo um homem, possivelmente o marido, provavelmente de longos anos pelo tom e organizando toda a história que, de fato, presumo que não lhe interessa.
Isso tudo do lado direito.
Do lado esquerdo um homem jovem, estrangeiro, de inglês como língua materna está feliz porque o novo empregador lhe prepara o contrato com início domingo. Domingo? Penso. Mas é nada menos do que um banco também estrangeiro e que por certo está considerando o primeiro dia do mês não importando o dia da semana.
E conta para a fisioterapeuta que ontem faltou porque não podia dizer não ao novo empregador para participar de uma reunião mesmo não tendo ainda assinado o contrato. E chama um número de telefone e comunica que segunda-feira não poderá mais, que tudo deve ser acertado hoje, que tem compromisso as 17h00, mas pode ser as 19h00, enquanto negocia com a fisioterapeuta que os exercícios não são necessários porque já os fizera na academia de manhã.
Eu apenas escuto. Eu não penso em nada. Leio um texto em inglês sobre o aumento de expectativa de vida das mulheres japonesas e depois outro sobre as perdas financeiras sobre as pausas feitas nas empresas de alguns países quando havia jogos de seus times na copa do mundo.
Algumas palavras me escapam. Eu poderia perguntar ao meu vizinho da direita, mas prefiro voltar a pensar em nada.
Eu gosto de almoçar silêncio quando vou à fisioterapia, mas as pessoas não respeitam isso, por isso, eu esparramo as suas histórias.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Menina de 11 onze anos

Ser mãe de uma menina de 11 anos é ter o privilégio de ter vivido uma década mais feliz.
É descobrir que aquela coisa de fiquei mais paciente, mais amorosa, mais delicada não funcionou exatamente assim.
É acordar para espiar uma menina crescendo enquanto dorme e aproveitar para ajeitar o cobertor.
Ser mãe de uma menina de 11 anos é não ser sozinha nunca mais, durante muitas vidas.
É rever um passado de travessuras, é entender a vida dura de minha mãe, os apuros de minha irmã caçula, é rever o passado em um espelho d´ água.
Ser mãe de uma menina de 11 anos é esperar por outros 11, a cada 11 e ver até onde se vai chegar.
É gostar de ficar a toa observando brincar.
É dar uns gritos e depois se arrepender e apertar.
É tentar mudar o discurso com o olhar e a sobrancelha e descobrir que isso não funciona mais.
Assim como não funciona mais perguntar: pensa que dinheiro dá em árvore?
Porque a resposta não é mais um dar de ombros, a resposta é:
- tecnicamente sim se você pensar que a maioria do dinheiro é de papel e papel vem da árvore...
Ser mãe de uma menina de 11 anos é ter muitas histórias para contar.
Ser mãe de uma menina de 11 anos é acreditar que cada segundo vale a pena.
Que cada noite mal dormida é recompensa.
Que cada ansiedade disfarçada pela nota da prova acrescenta.
Ser mãe de uma menina de 11 anos é ter uma alma renovada, um coração costurado para esperar os 111.
Ser mãe de uma menina de 11 anos é ter um passaporte para qualquer outro lugar dessa existência com visto de entrada, sem validade e a certeza de que teve sorte na última viagem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ser peixe

Na recepção da clínica de fisioterapia, espero a mocinha simpática me atender.
A despeito de todos os gadgets que povoam minha bolsa escolho o aquário para me distrair.
Se eu fosse um peixe tudo estaria resolvido.
Meus limites retangulares e transparentes já estariam definidos.
Minha alimentação. Ainda não almocei e eu sozinha tenho que decidir se almoçarei ou não.
Meus passeios por entre as bolhas ou as pedras seriam as opções.
Ficar no alto, espiando um céu branco com um pontinho branco de luz, ou no fundo, vendo seres imensos que se mexem sem propósito.
Eu não teria nada a fazer a não ser nadar.
E então escolho ser o peixe prateado e começo a viver a sua vida de limites e sem stress.
O limite é o pior dos pesadelos.
Um peixe amarelado o “cutuca” e não há para onde ir, não há escapatória a não ser nadar em arrancadas para distanciar-se.
Quando se acomoda atrás de uma pedrinha tímida, outro peixe vem lhe incomodar e tirar o lugar.
Não é dono de sua fome e da maneira como abre a boca e beija o vidro eu bem poderia entender que já quer comer, mas tem que esperar.
E que sofrimento se alguém esquece de alimentar.
Não quero pensar nos finais de semana, há de existir um esquema. Um aquário há de ser mais do que um bibelot.
Brincar nas bolhas de ar.
Descer para a pedra, outra vez vazia, outra vez ocupada.
Um navio de plástico que mais invade do que preenche o espaço.
Não, se eu fosse um peixe ainda teria muita coisa para decidir e resolver.
Toda existência dói, é só saber olhar.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Cão de rua

Não há nada mais fiel do que um cão que acompanha um homem da rua.
Há cães de rua, mas eles sempre procuram um homem.
Passam fome, passam frio, arriscam-se atravessando ruas e avenidas.
Os olhos são profundos.
Não há pelo duro que o envergonhe.
Não há perna ferida que o impeça de caminhar.
Não há rabo esfolado que deixe de abanar.
Quando os homens de rua se deitam nas calçadas e se encolhem em suas vergonhas os cães se deitam ao lado.
Vigilantes.
Não há amor maior do que um cão que acompanha uma rua que perde seus homens.
Não há uma carrocinha que recolha papéis e papelão que não atropele uma pata incrustada em uma mente embriagada.
Andam em bandos.
Andam sozinhos.
Andam por seus destinos de cão perdido.
Quem pariu. Quem abandonou. Quem subjugou.
Não há olhar mais profundo que um céu cinzento e sem nuvens nos olhos adormecidos de fome.
Estamos em nossos carros, em nossas janelas de apartamento, em nossos escritórios, em nossos restaurantes, perdidos.
E seguramente encontrados se tivermos coragem de fazer contato visual com os cães dos homens da rua.Almas que já nos habitaram.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Nostalgia

Quero escrever uma carta.
Uma carta escrita com tinta azul.
Em papel branco macio.
Uma carta que leve, além das minhas palavras, o amassado do peso de minha mão.
Uma carta que leve, além do amassado do peso de minha mão, um rabisco que fiz, sem querer, porque minha gata pulou no meu colo e assustei.
Quero escrever uma carta.
Que seja pessoal e intransferível.
Quero escrever uma carta que comece desejando que encontre bem quem quer que ela vá encontrar.
Uma carta que conte as últimas novidades.
Quero que as novidades durem o tempo de começar uma carta, terminar, escolher o envelope, copiar com letra legível o destino, ir ao correio, postar e voltar para casa tomando um picolé no sol de inverno.
Quero que as novidades durem até que a carta chegue ao seu destino.
Quero mandar abraços e um beijo carinhoso.
Quero escrever uma carta que me fixe um pouco mais no chão.
Que me traduza um pouco mais.
Que me deixe ser antiga enquanto todos os "is" me espiam: iphones, ipads, impactados com minha caneta azul e meu papel branco.
Quero escrever uma carta.
Quero mandar por carta um pouquinho da minha alma trigueira.
Um pouquinho da minha cara sardenta.
Um pouquinho das minhas canelas finas.
Um pouquinho do meu amor.
Quero escrever uma carta que releve o meu súbito entorpecimento.
Quero escrever uma carta com uma tinta azul, que mude de cor se a pessoa ficar feliz ao receber, que o papel dê opção de enviar a resposta em texto ou em vídeo.
Uma carta com nanotecnologia só para aplacar a minha nostalgia e não incomodar ninguém!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Peso e Medida

Eu tenho um medo exato.
E a exatidão é vasta, sem contornos.
Eu tenho um tempo escasso.
E a aflição fica a mercê do que é escasso.
Eu tenho dedos compridos
Que ultrapassam a palma da mão.
Eu tenho um olhar que não vê
Quando penso que posso não estar.
Eu tenho um risco na testa
Que precede qualquer emoção.
Eu tenho um peso e uma medida.
Eu tenho vias para escapulir.
Eu tenho um medo exato.
E o medo é resto de algo que não foi.
Eu tenho pés magrelos
Um vão entre dedos e calcanhar que
Quase não deixam rastro.
Eu tenho um arrepio na espinha
Que não diz exatamente o que é.
Eu espero notícias boas
Mas eu tenho um medo exato
Extrato do que já vivi.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Cheiro de Novo

Não se lembrava mais de quando foi que as coisas começaram a perder o cheiro de novo.
Tampouco de quando foi que resolveu amarrar as pontas da cortina, como se fosse um novo jeito, mas que na verdade era um truque para que as pontas puídas não ficassem tão visíveis.
O vaso da sala tinha uma rachadura, de leve, que uma vez enganou uma visita que tentou tirar achando que era um fio qualquer.
Deu um sorriso amarelo, não sabia agir com naturalidade quando estava envergonhada e não tinha porque se envergonhar, mas era inevitável.
O tapete da sala parecia estar ali há anos.
E estava mesmo.
E se pintasse as paredes?
Tinha visto um anúncio em uma revista de uma tinta bem fácil de usar, sem cheiro, aparecia uma mulher pintando um quarto, e grávida!
Ela poderia.
Poderia? Será que o braço não ia doer? E se começasse e não conseguisse terminar?
De duas uma: ou ficava com a parede da sala horrível ou chamava alguém para terminar e além da vergonha teria que pagar um dinheiro que não tinha.
Não, melhor não.
O sofá tornara-se um velho carrancudo.
Os CDs sem função mais pareciam um exército sem função em um país sem guerras e sem fronteiras.
Não se lembrava mais de quando foi que a campainha parou de tocar e o telefone tocava apenas de domingo quando alguém em vez de perguntar afirmava:
- Então, tá tudo bem, né? Nós vamos até... almoçar com... e por isso não vai dar pra passar aí, mas olha...
Não tinha mais nada pra olhar, a não ser as fotos organizadas muitas vezes em caixas coloridas.
Fazer um café. Isso sim tem sempre um cheiro de novo e é sempre uma boa companhia.
Se ao menos chovesse, podia dizer que com a chuva não dá pra ficar andando pra lá e pra cá, mas com esse solzinho...
Melhor por a água pra ferver.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Gostar de ler

Minha mãe nasceu entre sítios e fazendas.
E cresceu em uma família amorosa que recolheu para si o infortúnio de um primogênito cego, de lindos olhos azuis e de uma caçula que partiu antes dos cinco anos levada por uma doença silenciosa. Pediu para ir a igreja e lá, no colo do pai, recostou a cabeça no ombro como quem adormece e não despertou mais.
Minha mãe foi alfabetizada, sabe ler e escrever, mas não tem nenhum diploma.
A não ser o que eu mesma lhe confiro: doutora em despertar em mim a paixão pelos livros e pela leitura.
Seus olhos verdes, ávidos de histórias que nunca pode parar para ler, alimentavam em mim deliciosas tardes. Algumas ensolaradas, outras de chuva torrencial.
Nessas tardes, minha mãe se sentava em seu quarto para costurar. Um vestidinho para minha irmã caçula, uma bermuda para o meu pai, um pijama de flanela de florzinhas para mim.
Minha irmãzinha brincava com os retalhos e eu, embalada pelo som do pedal da máquina, lia romances para ela. Meu Pé de Laranja Lima, Olhai os Lírios do Campo, Moreninha, Éramos Seis.
Em casa Éramos Sete.
Sempre seremos sete e cada vez mais multiplicados com os sobrinhos, os netos, os sobrinhos-neto/neta, que só nos solidifica e, a minha pequena grande mãe, é cada dia mais única no universo que me coube e que agora vejo nos livros e nas histórias que se acumulam no dia a dia das minhas pequenas. E eu adoro quando nos sentamos na cama e uma delas lê uma história para mim, mesmo que eu não saiba costurar para elas, pijamas de flanela.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Perguntas

Admiro as perguntas
E a capacidade que têm de nos desnudar.
As inteligentes.
As que alimentam conversa de elevador.
As desinteressadas.
As muito interessadas.
As que merecem respostas.
As que não merecem.
As perguntas dúbias.
As perguntas que são afirmações.
As perguntas que são armadilhas.
Admiro as perguntas.
As inocentes:
- mãe, quantos metros você tem?
As perguntas que contém as respostas.
A pergunta que fica no ar.
A pergunta que constrói.
A pergunta que desvenda, que revela.
Admiro as perguntas.
As estúpidas:
- esse elevador só sobe?
As perguntas que não se faz.
As que se autodestroem.
Admiro as perguntas que esperam o momento exato.
As complexas.
As simples.
As que finalizam a conversa.
As que são respondidas com outra pergunta.
Admiro as perguntas
E a capacidade que têm de nos despertar.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mãe

Não era uma mãe melosa, de ficar beijando e abrançando e telefonando toda hora.
Mas era uma mãe de amor doído, de amor apertado, de amor tão profundo que não precisava de palavras.
Uma mãe de amor maior quando distante.
Uma mãe de amor que superaria qualquer dor.
Não era uma mãe de ficar apertando a bochecha, mas uma mãe de ficar olhando a foto.
De folhear os álbuns, de guardar dentinhos.
Uma mãe de construir histórias.
Não era uma mãe de planejar o futuro em mínimos detalhes, mas uma mãe que já visualizava um futuro de distâncias.
Uma mãe que sabia que distância não é simplesmente uma medida física, e por isso criava vínculos em cada covinha de sorriso conseguido e em cada ruga de testa em cara brava de reprovação.
Não era uma mãe de chorar em apresentações escolares.
Mas uma mãe de chorar ao lembrar da expressão tranquila, do sono calmo, quando saía na ponta do pé para não acordar. Uma mãe de chorar a qualquer hora, quietinha, sem ninguém ver.
Uma mãe que amava tanto que doía.
Uma mãe que se descontruía para construir um futuro em que ela pode não estar e mesmo assim estar, em cada história que se contará.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O tempo custa

- Preciso de um tempo
- E vai fazer o que com ele?
- Sei lá, pensar
- Você não consegue pensar quando estou por perto?
- Conseguir eu consigo, mas não é isso que quero, quero um tempo, preciso de um tempo
- Tá bom... Eu gostava mesmo é de vender tempo para as pessoas
- Seria um bom negócio
- Ninguém mais tem tempo não é?
- Não, não tem
- As pessoas não vão ao médico porque não tem tempo
- Ah, mas muitas vão ao happy hour
- É, tem gente que levanta bem cedinho e faz ginástica, outro caminha, outro faz yoga
- E a minha vó que acorda as seis e não faz nada? Toma café e fica sentada na varanda, ou varre a calçada, qualquer coisa que seja vendo a rua, gosta de ver a vizinhança acordar
- Eu hein? Será que quando ficar vovó também ficarei sem sono?
- não sei, eu tenho um amigo, não sei como agüenta, acorda às 5h pra ir pra academia, trabalha o dia todo e vai pra facul à noite, dorme tarde pra caramba
- É, eu podia vender um tempo pra ele
- Meu chefe fala que as pessoas não têm tempo pra fazer um planejamento, um pensamento no projeto, mas tem tempo pra ficar refazendo a porcaria que apresentaram
- É bom isso e ele? É organizado com o tempo dele?
- Fica até tarde no escritório, acho que não agüenta chegar em casa e agüentar mulher reclamando, criança chorando, cachorro latindo...
- Outro cliente de tempo
- Quanto poderia custar?
- As pessoas é que sabem o quanto vale... Eu comprava uma meia hora por dia só pra ficar olhando pro céu e pensando em nada
- E quando chovesse?
- Eu olhava pra chuva
- E quanto você pagaria por essa meia hora?
- O que eu tivesse no bolso, dias mais, dias menos, dias nada, como hoje
- Vai cobrar pelo tempo que vai me dar?
- Bem caro...
- Quanto?
- Eu, eu nunca mais vou te querer de volta depois desse tempo

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Menina do passado

Era uma menina lânguida.
Lânguida na terceira definição do dicionário aurélio que descreve:
1. sem forças, sem energia...
2. mórbido, doentio...
3. voluptuoso, sensual, langoroso...
Em que momento definições tão diferentes se encontraram na mesma palavra ninguém sabe precisar.
Langorosa é a palavra.
O sorriso tranquilo de quem absorve sem devolver.
Os olhos oblíquos, talvez pequenos, que advinham sem que ninguém lhe conte nada.
Andar de bailarina que abdicou da rigidez das pontas.
Lembro da camisa cor de rosa.
Do agasalho esportivo cinza.
Da sandália preta amarrada com displicência.
Do namorado alto e magro, quase curvado em sua indiferença.
Lembro do olhar assustado.
Lembro do ombro ossudo e das pernas magras que não escondiam o que a minisaia queria mostrar mesmo muito juntas e comportadas.
Era uma menina lânguida, é uma menina escondida nos dias que foram transformando tudo em rotina, em desesperança, em senso comum.
O sorriso ainda é o mesmo, mas vem marcado nas laterais.
O olhar é mais profundo e me pergunta:
- onde anda você, que vem e vai, aparece, parece me salvar e desaparece como nunca imaginei que seria capaz?

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Era digital

E quando eu era criança eu ia ao cinema.
Na minha cidade tinha apenas um e meu irmão me levava na matinê, de domingo.
Não tinha muitos lançamentos e eu adorava ver Tarzan.
Nas cenas mais impactantes as pessoas batiam os pés.
Nas cenas de resgate as pessoas batiam palmas.
Eu não comia pipoca.
Eu, uma expert em pipocas, acostumada a minha grande bacia de pipoca quente e macia render-me àquele saquinho minúsculo de pipoca dura e fria?
Não, uma heresia.
Meu irmão me comprava Banda de abacaxi.
Eram umas balinhas quadradinhas, mastigáveis, embaladas uma a uma em um papel manteiga ou similar e depois agrupadas em uma embalagem amarela. Amarela porque de abacaxi, meu sabor preferido.
Agora levo minhas cinéfilas ao cinema e as variáveis são muitas.
Em que cidade, em que shopping, 3D ou não, filme A ou B.
No último final de semana como era um feriado, escolhemos a cidade, o shopping, o filme e para melhor conforto compramos as entradas pela internet, um dia antes, escolhendo os melhores lugares e no domingo lá fomos nós.
Shopping vazio, cinema fechado, algumas familias se aglomerando e eu feliz com meu papelzinho dobrado na bolsa garantindo que poderia ser a última a entrar, mas minha poltrona estaria lá, esperando por mim.
Hora do filme, nada, agitação e a funcionária anuncia:
- Pessoal, não teremos as primeiras sessões, só para quem comprou por internet, porque caiu o sistema e não dá pra vender nada, nem ingresso, nem pipoca, nada...
Decepção de alguns, cine quase privado para outros...
Minha pequena reclamando da pipoca e eu retrucando:
- é, você que é da era digital tem que conviver com isso, caiu o sistema, não tem plano B...
O plano B do papai cuidadoso foi o Amor aos Pedaços bem em frente ao cinema, o meu foi uma saudade doída da Banda de abacaxi melando minhas mãos magrelas...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Se não vai dizer

O que tinha para dizer pesava na alma mais do que qualquer um poderia imaginar.
E por que carregar esse peso quando podia simplesmente dividí-lo com os outros?
Não tinham culpa do ocorrido. Não podiam sofrer por algo que não controlavam.
Os anos foram passando.
Os olhos foram amarelando.
A pele foi perdendo a cor.
Os cabelos ficaram sem brilho.
O que tinha para dizer não mudaria o passado e já não mudaria o futuro.
O futuro é cada minuto.
O futuro escapa pelas mãos enquanto se acende um cigarro, se amassa um recado, se gira uma caneta no ar.
Puf!
Esse é o som do futuro.
O que tinha para dizer ficaria para sempre pesando em seus ombros, curvados.
O que tinha para dizer já não fazia sentido.
Se não transforma o pensamento em ação despeja em algum lugar, um rio, um gramado no parque, conte para um passarinho, uma borboleta, um tatu bola e esqueça.
Se não vai dizer, não acumula que mágoa mata.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Minha fantasia é de outra cor

Quando eu posso não ser eu por algum tempo, por exemplo, na sala de espera do médico (por que todos eles se atrasam irritantemente?), quando estou dirigindo na rodovia quase deserta e que conheço como a palma da mão, quando estou na quarta reunião sobre o mesmo tema e ainda é preciso resgatar o briefing... Nessas horas eu posso não ser eu.
Nessas horas escolho ser um ser, vivendo momentos que me encantam, apenas a coisa acontecendo, aquele instante que sempre me parece mágico.
O motorista do safety car... Fico olhando o carro, a aceleração, a imposição, o movimento, o poder de inserir-se entre os velozes e deixar todos no mesmo ritmo, para de repente sair de cena e liberar o espetáculo.
Estou so safety car e nada me aborrece!
Também posso ser um backing vocal...
No fundo do palco, com mais duas mulheres, em roupas que escondem, em coreografia antiga e silenciosa, quase uma desculpa: não posso cantar sem movimento...
E, de repente, quando a voz magistral do astro descansa ou alcança uma nota, as vozes combinadas de contraltos e sopranos tiram a música de seu dono e ganha corpo, uma combinação de vozes que ocupa seu espaço por alguns segundos e depois se recolhe para que o astro continue a brilhar.
Nada de autógrafos, nada de água em jarras de cristal, nada de toalhas no chão, apenas uma voz sem a qual tudo poderia ser muito sem graça.
Ou então, poderia ser un jinete español preparando os cavalos para as apresentações na Real Escuela Andaluza de Arte Ecuestre em Jerez de la Frontera. Não um dos jinetes da apresentação, um daqueles que preparam os cavalos, que limpam os cascos, que trançam as crinas, que conversa com eles e que passa delicadamente a mão sob o ventre na hora de ajeitar a sela. Sim, vai que um desses puro sangue resolve fazer como Sócrates, meu pangaré, que quando não queria levar a passaear ninguém, estufava a barriga de maneira que a sela parecia bem e pouco depois ficava frouxa podendo levar ao chão o atrevido que lhe interrompia o descanso.
Um jinete ocupado, esquecido num canto tomando uma coca-cola gelada enquanto rei e turistas se encantam com espetáculo tão majestoso.
Sim, posso existir na insignificância de um mundo encantado, enquanto espero a realidade passar, minha fantasia é de outra cor!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Poder de síntese

Admiro o poder de síntese que identifico nos outros e que não tenho.
Preciso sempre de muitas palavras para dizer pouco.
Nunca tenho nada preferido, sempre tenho uma lista.
Se a pergunta for alimento, aí sim consigo sintetizar em pipoca.
Mas ninguém pergunta alimento, perguntam prato preferido, comida preferida, e isso sempre soa como uma refeição.
Com animal de estimação me arrisco 90%: gato.
Mas para todo o resto, sofrimento.
Bebida: água de coco, água com gás, suco de tangerina...
Livros: não, não me faça essa pergunta! Posso dizer a Elegância do Ouriço, mas posso dizer Capitu, Crime e Castigo, Eu Mato, os japoneses todos, A Espera.
Como não esperar um redemoinho mental antes de dizer e de já estar arrependida?
Animal selvagem: leopardo das neves, mas como não pensar nos lobos? que nos identificam como um igual porque caçamos sem medo qualquer outro ser vivo.
Música: resposta ao tempo, um girassol da cor do seu cabelo, cuitelinho e...
Estamos todos bem, meu filme, além de Amores Brutos, O segredo dos seus olhos, Abril Despedaçado e alguns que ainda não vi.
É isso, como posso já ter um preferido se ainda não acabei de ver, ouvir, sentir, tudo o que me cabe?
Não me consola. Admiro o poder da síntese. Nem tudo precisa ser explicado.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lenço de croche!

Minha avó Amélia nunca desistiu de mim.
Quando eu a chamava de "vó melía"... ela se abaixa para ficar da minha altura, me olhava bem nos olhos e dizia:
- ei, você quer crescer menina boba? porque fica falando assim, como um bebê?
E eu ria muito. Eu falava com ela como um bebê aprendendo suas primeiras palavras e ela ficava preocupada.
Depois quis me ensinar a fazer croche!
Tardes torturantes, de mãos duras, de agulha que não se encaixava entre meus dedos magros, de pontos desengonçados, desencontrados e de muita risada.
Ela não, ela era habilidosa.
E, contra mim, duas irmãs mais velhas que produziam peças primorosas...
E era certo que eu invejava meu irmão, se eu fosse um moleque, ninguém se importaria com esse negócio de linhas e agulhas.
Mas eu tentava porque era prazerosa a companhia dela e o carinho que dedicava as nossas aulas.
Minha irmã caçula, que podia correr pelo quintal, se sentava quietinha, ao lado, aprendendo mesmo sem ter idade.
Fiz um lenço de cabeça. Um triângulo que na época era moda.
Ele ficou horroroso, desengonçado e não lembro bem mas deve ter demorado uma eternidade.
Era marrom. Um marrom feio, mas certamente a linha fora escolhida porque não serviria para mais nada além de minhas tentativas.
Fomos visitar minha irmã em sua casa de boneca de recém-casada e fui com o lenço.
Mas... ia voltando sem ele!
Eu ria muito. Lembro do sol, do céu azul, de uma avenida de cidade do interior e de três meninas voltando em seus passos por 3, 4 quarteirões a procura daquela peça histórica.
Foi encontrado ao pé de uma arvorezinha que lutava para crescer.
Não tornei a por na cabeça.
A nona resmungava entre cansada e feliz.
Minha irmã se aguentava nas perninhas.
E eu, era uma irritante, com um acesso de riso.
Meu Deus, onde será que aquele lenço foi parar?
E a alegria daquele riso então? Dentro de mim, em algum lugar, há de estar!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Diagnóstico

Perdeu o juizo e então encontrou-se.
Por que precisa dizer sempre o que pensava, o que queria fazer?
Por que não podia usar uma camiseta de bola e uns sapatos listrados?
Por que precisava sentar-se sempre na primeira fileira e prestar atenção na aula de cabo a rabo?
Para agradar a quem?
Ao professor que nem sabia seu nome?
Perdeu o recato e enviou bilhetes.
Bilhetes em tempos de SMSs e quetais?
É, bilhetes, quem se importa?
Dias divertidos, convites para um vinho.
Por que precisa tomar vinho quando quer mesmo é uma cerveja tomada a goladas no gargalo?
Perdeu o juizo e então encontrou-se.
Precisava apenas ser educada.
Precisava apenas cumprimentar o porteiro.
Precisava apenas dar um sorriso para quem já estava no elevador.
Precisava apenas dizer: é, pensando bem, você tem razão!
Precisava apenas dizer: não quero visitar sua tia, quero ficar dormindo...
Precisava apenas ligar para sua mãe.
Precisava apenas responder o email da sua amiga querida.
Precisava apenas existir na simplicidade das letras de música: ...eu não preciso de muito dinheiro, graças a deus...
Perdeu o juizo e então encontrou-se, três quilos acima do peso, dois centimentros mais baixa, com o açúcar descalcificando os ossos seus.
Meus?

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Manhã de sol

Olhou demoradamente para as crianças que brincavam na rua.
Um cachorro passeava pelo sol, sem rumo, rabo sempre acenando.
Viu a roseira com brotos novos e uma vez mais pensou que roseiras parecem plantas cultivadas sempre por velhas senhoras.
Mas de onde vem tantas, de tantas cores, nas bancas de flores?
Dos roseirais. Nunca viu um roseiral.
Deixou-se ficar no sol.
Uma tristeza tamanha que mal cabia dentro do peito.
Os pés enfiados na meia velha tão quentinhos que tudo o mais poderia esfriar.
Olhar para o azul do céu... tão bom porque luz tão forte borra tudo e nada mais se vê a não ser manchas com formato de nossa íris.
Íris é um nome de mulher.
Se tivesse nascido Íris, que destino teria?
Uma lenda antiga lhe segredara que quando morremos vamos para uma outra dimensão e preparamos nossa volta com um plano que inclui até a escolha do nome... Não podia acreditar.
Teria escolhido outro nome, seguramente.
Nomes tatuam nossa alma, não, não pode ser, teria escolhido um nome mais simples, um nome mais curto, um nome igual a milhões de outros para desaparecer entre eles.
As crianças na rua nem a viam no sol. Lagartixa.
O cachorro não lhe pedia nada, passeava indiferente, um poste a mais.
O que fazer com aquela tristeza?
Fechou os olhos, imaginou a tristeza um papel rabiscado, amassou, jogou no lixo e recolheu-se.
A casa gelada, há tantos anos habitada, simplesmente a absorveu.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Palco

Sou tímida quando estou sozinha ou com mais um.
Sou uma personagem quando há mais que dois.
Alguém me disse um dia que tijolo para mim é palco.
Já estive no palco.
O palco nos ofusca a vista e não nos deixa ver mais ninguém.
O palco cresce de maneira que a platéia parece confortavelmente instalada em um fosso muito distante.
O balé que dancei.
A personagem que interpretei.
A menina queimada de sol que substitui no tango que sabia de cor porque mais descansava olhando o ensaio do casal do que lanchando ou recuperando as pernas. Premio e castigo.
O canto que esqueci.
O pai que fui.
O operário de capacete verde.
O olho roxo como quem leva um soco do encontrão do primeiro ensaio com luz estroboscópica.
O gesso do pé esquerdo que não me impediu de dançar em um programa de televisão.
O guaraná que derrubei em Ney Matogrosso quando dançamos e cantamos em pleno comício de Fernando Henrique tantos anos atrás, quem há de se lembrar?
Meus amigos espantados:
- viu o que fez?
- virei, trombei com o moço, derrubei guaraná mas pedi desculpas...
- não é um moço, é o Ney Matogrosso
Minha eterna dificuldade em reconhecer os famosos... tão menores sempre, e depois, no palco, ele piscou pra mim! Desculpou-me!
Eu sempre me divirto sozinha, mas gosto de contar as minhas histórias.
Eu, boneca de pano. Desengonçada. Recheio de histórias e grossas costuras que vão abrir buracos no tecido frágil.
Colorido misturado. Estampa nem sempre de bom gosto.
... não subo mais nesse palco, tão pouco minha alma cheira talco como já cantou o Gil, ou não...