segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O destino das coisas

Eu me preocupo com o destino das coisas. Novas ou velhas.
Não pelo fator moderno da sustentabilidade.
Há quarenta anos, quando perdia um lápis na escola ficava apreensiva com a solidão dele, embaixo de uma carteira qualquer, no escuro, sozinho, sem o calor dos meus dedos magros.
Então, não é de hoje que o destino das coisas ocupa espaço em mim.
Velhas ou novas, eu sofro por elas.
Hoje de manhã ouvi no rádio a notícia das aeronaves. Fiquei triste.
São ao todo, por todo o país, 119 aeronaves abandonadas nos aeroportos.
Em Congonhas há nove jatos da antiga Vasp. Ocupam um espaço do tamanho de três campos de futebol. Não voam desde 2005.
Será que fui passageira em um deles?
Que medo devem sentir.
Que saudade arrepiante devem ter quando ouvem os roncos das turbinas naquele sobe e desce exagerado dos que estão em plena atividade.
As brigas judiciais por esse patrimônio corroem o porte imponente.
Depois de ouvir no rádio fui ler mais a respeito e descobri que um ex-funcionário da Vasp tenta, sozinho, evitar o pior. Ele toma conta daqueles gigantes indefesos e doentes.
Ele diz: Entro, vejo, olho as portas, se não estão abertas, se está entrando água, se não está danificada, com problema. Se não tem ventania que deu e soltou. Tem que manter sempre olhando.
O nome dele é Josafat Cândido.
Cândido é um nome cheio de significados.
Fico pensando que aqueles grandalhões devem ter um amor enorme por esse homem e que o maior medo deles, ainda que secreto, é que um dia ele não chegue para verificar se entrou água.
Para Josafat também é ruim ver os aviões abandonados, sucateados: Eu me sinto um coração em pedaços, ele diz.
Não sei se o Sr. Josafat vai contar a eles que o plano é desmontá-los, vender as peças, porque inteiro ninguém quer comprar, leilões já fracassaram.
Eu comprava se pudesse. E soltava no ar que nem passarinho, só pelo prazer de salvar as coisas de seus destinos sem humanidade.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Uma poesia

E então choveu
Como há muito vinha chovendo
E caminhei na beira dos muros
Tentando me proteger
Não dos pingos grossos
De mim mesma
Do medo de chegar
Do medo de secar os pés
Do medo de estacionar
E então o sol apareceu
Como se o verão nunca mais fosse acabar
E eu me esgueirei pelas sombras
Não das árvores  
Das marquises
E do meu medo de me confrontar
Vou deixar para pensar depois
E então respirei
Aliviada como quem descobre que pode sorrir
A natureza que brota em mim é selvagem
Como a samambaia que brota na madeira
Abandonada no quintal
Ela fere sem se importar
E então anoiteceu
Mas não anoitece para sempre
E não improvisei nenhuma luz
Vou apenas esperar

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Senhorinha

Eu sinto falta das flores.
Quando era criança, depois mocinho, quando me casei, sempre tive casa com quintal de terra para plantar.
Na frente rosas, hortênsias, cravos, dálias.
E no fundo do quintal hortelã, cebolinha, salsinha, dependendo do espaço de terra até alface, almeirão.
Eu sinto falta de tudo isso.
Mas hoje em dia, mesmo nas cidades do interior, as pessoas perderam essa coisa de ter planta, ter jardim plantado no chão de terra.
Agora todo mundo quer ter as plantas nos vasos.
Não querem ter trabalho de limpar o quintal. Reclamam das folhas das árvores que sujam as calçadas, querem cortar.
Eu, da minha parte, acho isso tudo muito triste.
Aqui no apartamento do meu filho então, piorou.
A minha nora não gosta de planta, não quer saber.
Acha que dá trabalho até mesmo ter um cacto que fica dias sem precisar de água.
Ela tem umas coisas esquisitas pra enfeitar. Umas estantes tão cheias de coisas que isso sim é que dá um trabalho danado pra deixar sem pó.
Mas, não é ela que limpa.
E nem eu porque ela não gosta que eu ajudo a moça que cuida da casa, ela fala que não é pra criar intimidade.
Eu fico quieta.
Cada um com sua casa e com sua vida.
Eu bem queria continuar morando na minha casa, mas ela era grande, ficou vazia, até que seja vendida e me arrumem um desses apartamentos que falam que vai ser aqui por perto, eu fico quietinha, tento não atrapalhar.
Mas no meu apartamento vai ter planta, nem que seja no vaso! Muitos vasos.
Eu sinto falta das flores.
Eu sinto falta de muitas coisas.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Menininha

Preciso abraçar a boneca para dormir.
O meu irmão tem medo de bonecas. Se eu sento a minha boneca Cecília na cadeira da penteadeira, ele chama minha mãe e cochicha no ouvido dela pedindo para tirar.
Ele não fala alto porque tem vergonha. O meu irmão é mais pequeno que eu.
A minha irmã mais velha fala que se a gente fosse rico cada um ia ter um quarto.
O dela ia ser cheio de fotografia de cantor na parede e até na porta do guarda-roupa.
Hoje ela põe na agenda.
A agenda fica tão gorda que nem fecha.
O meu irmão fala que no quarto dele ia ter um tapete de time de futebol. Ele torce pro Santos porque o meu pai torce pro Santos e o meu avô torcia pro Santos por causa do Pelé.
Eu também torço pro Santos, mas só pra agradar o meu pai, eu não ligo muito pra futebol.
Se eu tivesse um quarto só pra mim eu ia querer um abajur cor-de-rosa da Hello Kitty.
E ia arrumar um canto bem lindo pra Cecília e pras outras bonecas. Ia ficar lindo.
Mas a minha mãe fala que tá bom assim, que o importante mesmo é que estamos todos juntos e felizes.
Minha irmã diz que não está nada feliz.
Meu pai fala que é só porque ela é adolescente.
Meu irmão é muito pequeno pra saber se é feliz ou não.
Eu sou feliz porque tenho eles dois, mas se eu falar isso pra eles, eles dão risada. Então eu fico quieta.
E eu deixo a Cecília sentada, de um jeito que eu sei que meu irmão tem medo, porque assim minha mãe vem de novo e me dá mais um beijo de boa noite.
Eu amo a minha mãe também, e pra ela eu posso falar a vontade, ela adora e os olhos até choram.
Eu amo o meu pai também, mas eu tenho um pouco de vergonha de falar pra ele, então, de vez em quando eu deixo um bilhete.
Ele não responde, mas me abraça bem apertado e de vez em quando me dá uma balinha escondido dos meus irmãos.
Preciso abraçar a boneca para dormir porque tenho medo de crescer e perder tudo isso.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Preparação

Uma palavra para cada ano de minha existência.
Explorar a vida escondida em cada significado.
Significância.
Uma palavra boa pode dizer uma coisa ruim e uma palavra ruim pode dizer uma coisa boa.
O que somos nem sempre se diz, o que se diz nem sempre reflete o que somos.
Assim como preparam as fantasias para o carnaval mesmo em meio a tragédias, eu preparo as palavras para meu quadragésimo sétimo ano.
É a minha festa e mesmo quando a arquibancada não está lotada eu desfilo minhas palavras.
existência
caminho
fala
descoberta
pergunta
curiosidade
medo
imposição
composição
poesia
disputa
realidade
medo
decisão
brilhantes
vazio
novo
incerteza
ímpar
passado
presente
par
brilho
perda
ansiedade
metade
dois
conquista
sacrifício
tempo
lugar
recomeço
desistência
luto
nascimento
detalhes
fronteira
nascimento
revisão
terço
ultrapassagem
nada
passaporte
sorte
além
refém

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Doação de história: lusia@lusianicolino.com.br

O sol estava de mau humor, escondido entre nuvens, deixando as pessoas mais lentas, bocas sedentas.
O sapato apertava um pouco o pé e a ladeira parecia pedir desculpas.
Subi devagar.
O que fazer se não olhar as pessoas.
Quem olha entende, quem entende não maltrata, quem não maltrata vê além do que se mostra e adivinha histórias.
O casal ocupava além do portão aberto, metade da calçada.
Ela fumava. Tarde demais para num esforço deixar o vício? Não, nunca é tarde.
Ele, de camisa do timão, apenas vestia, não ostentava.
Passei.
Três homens sentados no muro baixo, logo depois da esquina.
O menor deles, menos de dez anos, orgulhoso de fazer parte do grupo.
A loja de roupas fechada ostentava um bilhete na porta: volto em uma hora. Mas a partir de que horas? Não dizia. Ele podia ficar eternamente ali a confundir toda gente, mas se nenhuma gente quer entrar, que diferença faria?
Um moço apressado resmungou alguma coisa na ultrapassagem, mas não captei. As pessoas resmungam sozinhas o tempo todo.
O mercadinho se descortinou.
Sempre esteve ali? Com aqueles cocos verdes na porta? De donos orientais?
Ah, descer uma rua no calor é recuperar um pouco mais de calmaria, quase bom humor.
Os grupos de jovens são sempre incógnitos e despertam um sentimento sobre o qual muitas vezes não se quer falar porque ser criança, jovem ou velho não é coisa que se pode optar.
O sapato chamando para si os olhares das meninas dos grupos.
E até mesmo da menina solitária, bonita, cabelo trançado displicentemente e aqueles olhos cor cinza.
Cada qual leva atrás de si, como uma calda invisível, uma história, a sua história.
Aceito doações de histórias.
Muitas delas querem desesperadamente uma narração.
Pode ser por email: lusia@lusianicolino.com.br

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Silêncio

O silêncio cobriu a sala como um lençol branco que protege os móveis depois que alguém enviuvou.
O silêncio pode ser mais cruel do que palavras que atropelam a situação e se embaralham no embate até se perderam em um copo d água.
O silêncio embaraça.
O silêncio constrange.
O silêncio permite ouvir o coração que não cabe no peito.
O silêncio permite ver a dança da pulsação do punho que acompanha a mão.
O silêncio avança noite adentro e não tem pressa.
O silêncio desperta os pássaros e não se importa com a algazarra deles.
O silêncio permite o farfalhar das árvores que adoram brincar com o vento.
O silêncio não se importa com a cantoria da cigarra.
O silêncio é maior do que tudo isso.
O silêncio suporta o barulho do mar.
O silêncio dói.
Quando o silêncio cobriu a sala ele procurou desesperadamente uma palavra, mas não estava acostumado a ser o primeiro a falar.
Quando o silêncio cobriu a sala ele nunca imaginou que ela fosse permitir.
Quando o silêncio cobriu a sala ele entendeu que seria como um lençol branco que iria proteger os móveis depois que alguém enviuvou.
Ele nunca acreditou que fosse ele e saiu sem bater a porta.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Perdida

Passou o tempo. Passou tão rápido.
Nenhum truque leva a melhor.
Nenhuma onda vem mais devagar só para recolhermos a toalha.
Nenhum raio espera até que estejamos abrigados.
A chuva não se importa com os cabelos recém penteados.
Passou o tempo. Passou tão rápido.
Os tempos verbais se perdem na construção da escrita.
Uma obra inacabada. Uma obra inalcançável.
Uma obra interminável como a reforma da cozinha.
Tudo se atropela. A vida não se organiza.
Quando eu escrevo enquanto penso tudo parece muito claro.
Mas bastou pousar o lápis, a caneta, abandonar o teclado para tudo voltar ao caos.
Começo e não termino.
Assim como essa reflexão sobre o tempo.
Ele passa, ele passou.
Eu tinha tanta pressa e ainda tenho, mas para que?
Para onde é que eu vou?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

De A a Z os defeitos que a gente tem

Armanda tinha os dedos curtinhos e grossos, não gostava, e apesar de não pretender ser pianista nem dublê de mãos em fotos publicitárias, não convivia bem com eles.
Berenice sofria com os cachos do cabelo. Quando pequena, pensava que ao crescer o cabelo alisaria e depois de crescida, uma bolsa, um sapato, sempre perderam para cremes e que tais.
Clarice escondia as canelas finas em calças largas e o verão era um tormento.
Dora não gostava dos dentes separados, ainda que o pai lhe mostrasse recentemente em uma revista que isso tinha sido um charme nos anos 60/70, e não se importava com a história de que moda vai e vem!
Elaine não gostava dos seios grandes. Não que fosse um problema de saúde, desses que alteram a postura ou causam dor, mas sonhava ser como as modelos, nada de frente, nada de costas.
Fabiana jurava que tinha os joelhos tortos e as saias eram sempre longas, as calças arregaçadas, nada de bermuda ou minis e na praia, nada de caminhadas longas.
Gabriela tinha arrepios do formato das sobrancelhas, usava a franja longa na tentativa de esconder e já mencionara a idéia, considerada maluca pelas amigas, de depilar definitivamente e tatuar como queria que fosse.
Helena não gostava dos ombros. Arqueados, pequenos e por isso divertia-se ao mesmo tempo em que sofria, observando os nadadores e os felizes de nascença.
Irene era tão branca que quando criança o apelido de lagartixa a fazia chorar muito. E nenhum sol era capaz de dourar-lhe a pele. Experimentou tudo o que a ganância sugeriu e a ciência alertou e resignou-se.
Joana, ao contrário, não gostava de ser mulata. Cor do meio, nem lá nem cá, aquela moreninha, ponto de referência, com cabelo nem liso nem crespo, não gostava de coisas indefinidas e tudo nela parecia não ter se decidido.
Karla não gostava dos cabelos lisos e finos, com pouco volume. O que parecia refinado, naturalmente chique era motivo de ira e bobes e interferências no salão dessas modernidades que tudo transformam, mas que não duram.
Lucila não se lembrava de ter usado uma blusa, uma camiseta sem mangas, porque a ela parecia que o braço já lhe nascera flácido. Uma pessoa de acenos contidos.
Márcia cresceu em família humilde, sem informações, com os dentes muito pronunciados e sofria muito por isso. De verdade eram muito feios, mas Márcia era uma pessoa tão alegre, tão divertida, que nunca se pensou que os dentes a chateassem tanto.
Nair não gostava dos pés. Com o segundo dedo maior que o dedão nunca se convenceu de que fosse um sinal de que se casaria com um homem rico e não esperou por isso e se casou com o Otávio mesmo.
Olívia não se conformava da irmã ter a bunda tão rebitada e ela nada. Nenhuma curva, nenhuma calça jeans atraindo um assobio.
Paula, ao contrário de Olívia, não gostava de seu bumbum tão avantajado. Desproporcional em relação às pernas, nenhum biquíni caindo bem, os vestidos ficando mais curtos atrás do que na frente.
Quitéria não gostava das sardas do rosto, das pernas, dos braços. Não se lembrava de como elas foram surgindo, mas colecionava uma lista de apelidos encabeçada por ferrugem e de sugestões como lavar o rosto com água de arroz para clarear.
Rosangela não gostava dos seios pequenos. Tão pequenos que não faziam volume nem na mais leve camiseta para desconsolo na hora de experimentar uma e outra roupa nova.
Soraia tinha pavor das orelhas de abano e de qualquer procedimento cirúrgico que a pudesse livrar desse pesadelo. Era, de fato, uma orelha muito aparecida e não havia volume de cabelo capaz de tomar aquela vontade de aparecer.
Tânia não gostava dos lábios finos. Tinha crescido bem com eles, sem botar reparo como diziam lá no interior até que Angelina mudou sua história para sempre.
Úrsula tinha um nariz de batatinha, arredondado e pequeno, perdido no meio de olhos e boca delicada. Deslocado, definitivamente.
Valéria tinha as pernas curtas. Não usava calças para não reforçar e no inverno as botas queriam abocanhar os joelhos, achatando ainda mais a silhueta.
Wanda era estrábica. Um olho espiava sedutoramente para o outro lado, mas um comentário sobre isso podia acabar com o bom humor da conversa fosse entre amigos, família, no novo emprego ou em qualquer lugar.
O X da questão é que sempre há alguém com pena de si mesmo porque algo não está de acordo com a imagem que se quer ter de si mesmo.
Isso desapareceu da vida de Yone quando ela passou uma prova danada na vida e a Zenaide que foi visitar lhe disse, sabe, eu li em algum lugar, alguém falou que a vida é bem boa quando não se morre. E de A a Z, pelo menos essas duas pararam de se queixar de suas orelhas e que tais! 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O sábado em que Deucimara se arrumou

Acordou cedo naquele sábado.
Ajudou a mãe a varrer a casa, ajeitar a sala e avisou que a tarde seria toda dela, de beleza.
Que se tivesse alguma roupa pra passar passaria no domingo.
Fez o serviço cantarolando animada. Com pressa, mas bem feito. Terminou tudo perto de uma e meia da tarde.
Comeu de pé, encostada na pia, um prato do almoço que já esfriara e entregou-se ao seu ritual de beleza.
Gastou a maior parte do tempo tingindo o cabelo. Não era a primeira vez, mas é sempre bom ler todas as instruções, aquelas letras miudinhas e o medo de ficar careca? Melhor ter o cabelo ruim como o seu do que não ter cabelo nenhum.
Depois, mergulhou os pés em uma bacia de plástico com água quente e tratou de cuidar das unhas. Também fez as mãos.
No banho, mais demorado do que de costume, não usou um aparelho de barbear de segunda mão escondido do irmão depois do primeiro uso, não, dessa vez comprou um para si e cor-de-rosa para não misturar, foi esse que usou. Usou nas axilas, nas pernas, na virilha.
Sempre cantando, secou-se com uma toalha limpa. Sozinha no quarto em que dividia com a mãe, abusou do creme hidratante.
Ainda sem roupa para não melecar secou o cabelo, ajeitou-se no espelho, conferiu a nova cor.
Experimentou a pele do ombro massageando devagar para sentir o efeito do creme.
Vestiu-se lentamente. Perfumou-se. Usou uma maquiagem leve porque não sabia essa coisa de contornar os lábios com tom mais forte do que o batom, esfumaçar a sombra, alongar as maçãs do rosto.
Respirou fundo e preparou-se para as piadinhas que viriam dos que, na sala, assistiam à novela.
Saiu quase pedindo desculpas e, como esperava, o irmão assobiou, a mãe recomendou cautela, o amigo do irmão olhou duas vezes, a prima mordeu os lábios de inveja da sandália nova, o pai... O pai era só um retrato em cima da estante, fora trabalhar em uma construção em Santos e mandara depois uma carta dizendo que não ia voltar.
Sentou-se no sofá com tanto cuidado que mais pareceu uma boneca de porcelana, para não amassar o vestido.
A novela acabou, o jornal começou, a outra novela invadiu e nada do Geraldo buzinar.
O Geraldo não apareceu.
Ninguém comentou nada, cada qual recolhido em seu próprio constrangimento.
Foi até a cozinha e jantou um pouco. Que fome ela sempre tinha!
Escovou os dentes. Tirou o vestido com cuidado.
Guardou a sandália na caixa. Deitou quietinha e chorou um choro calado porque a mãe já estava deitada, cansada e não queria incomodar.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A culpa não é da chuva

A culpa não é da chuva.
A chuva chove o calor que absorveu.
A água leva o que entre ela e seu caminho se estabeleceu.
Eu gosto da chuva.
Eu gosto do barulho da chuva.
Eu gosto do cheiro da chuva.
Ainda mais na mata molhada.
Eu gosto do céu quando se veste de escuro para uma solenidade.
Eventos curtos, antes da entrada triunfal do sol e de seu séquito de esplendor.
A culpa não é da chuva.
E a culpa não é das pessoas.
E quem pode cuidar das pessoas?
Quem pode prestar atenção na observação do especialista que pondera:
sempre analisamos impacto ambiental perguntando: o que a construção trará de impacto? Quando na verdade a primeira pergunta deveria ser: como esse lugar, essa vegetação, esse terreno pode impactar minha construção?
A culpa não é da chuva.
Os anjos estão trabalhando dobrado, improvisando para receber tanta gente sem ser anunciada.
E São Francisco, espero, está a postos para cuidar dos patos e marrecos, dos cães e gatos e dos passarinhos, por quem pouca gente vai se lamentar.
A culpa não é da chuva.
Vamos cancelar o carnaval e respeitar nossa tragédia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ouvi dizer

Ouvi histórias do Japão que narram que os velhos são destacados para ensinar os jovens.
Informalmente, se é que eles entendem esse conceito, já que minha percepção pré conceituosa me faz vê-los sempre tão formais.
Em círculos contam histórias do passado, de quando eram crianças, de como eram as plantações, de como era a comida e o trabalho.
História de vida, nada de histórias documentadas.
Sem pompa, mas na circunstância ideal.
E ouvindo essas histórias fiquei pensando nas minhas e para quem, além das minhas pequenas, eu poderei contá-las.
Em escolas públicas, em bibliotecas, em creches, em restaurantes onde há um espacinho para a criançada, em livrarias, preciso pensar, mas preciso contar que fiz curso de datilografia e o que isso é, ou foi.
Que um dos objetos de desejo que comprei foi uma máquina portátil de escrever e que o up grade seria uma máquina elétrica e que isso nunca chegou a acontecer.
Que quando fui morar em Recife falava com meu pai pelo telex, e o que isso é ou foi.
Que o fax foi um espanto.
Que tive telefones fixos alugados quando me mudei para São Paulo porque as linhas eram caras e havia longa espera para a compra de uma delas. E no interior ter telefone dava status!
Que usei mimeógrafo.
Que usei transparências. Não nas roupas, nas apresentações.
Papel carbono.
Com papel carbono eu podia escrever uma poesia já duplicada.
Rasgada e amassada perdida para sempre, arquivo irrecuperável.
A quem minhas histórias hão de interessar?

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Mandriar

Não tenho mais moeda de troca com o tempo
Ele tolera minhas preguiças, ele me espreita na esquina
E não se importa com meu passo mais lento
Porque não tenho mais moeda de troca não consigo
Ensaiar uma coreografia de madrugada, em um
Teatro emprestado, e no dia seguinte seguir sorridente
Hoje coreografo apenas palavras
Procuro par para cada uma delas
Não gosto de palavras vazias
Não gosto de palavras sozinhas
Nem daquelas que se valem das reticências porque não tem coragem de abrir caminho para a companheira que diria toda a verdade
As palavras doem
Não posso mais mandriar porque não tenho mais moeda de troca
Não tenho mais dezesseis anos e talvez por isso as palavras me
Respeitem mais, me acompanhem com menor pudor
Mas não valem nada para o tempo
Ele é zombeteiro, tolerante apenas porque sabe que vai ganhar

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Constatação

Perpetuamos-nos de várias formas.
Os grandes descobridores sobrevivem hoje e de muitos deles não sei nada mais além de sua brilhante invenção. Se teve pai e mãe presentes em sua infância, se teve irmãos, se teve filhos, nada sei.
Grandes escritores.
Grandes músicos.
Grandes pintores.
Sobre grandes homens que apenas cresceram, amaram os seus, trabalharam, olharam o céu em dias de céu claro ou de céu escuro, nada sei.
Mas nos perpetuamos entre os nossos.
Meu pai foi um desses homens que nada descobriu, que cresceu jogando bola e amou os seus.
Que adorava os dias de céu azul e temia os dias de céu escuro.
Não escreveu nenhum livro, mas nos deixou cadernetas com anotações em sua letra firme: a data do primeiro corte de cabelo do meu irmão, quanto custou abastecer o tanque, quanto devia pagar ao açougue no final do mês, datas de viagem...
Não escreveu nenhuma canção, mas eu ainda respondo o assobio que ele dava ao chegar em casa e anunciar-se.
O que mais me entristece e enternece é ter sabido anos depois que ele confessou à minha mãe que não mais o faria - depois que me mudei para São Paulo - porque eu não estava mais lá para responder.
E mesmo sem canções ou livros meu pai perpetuou-se.
Em mim, nas minhas irmãs e irmão, nas histórias que contamos sobre ele quando nos reunimos, nas histórias que contamos sobre ele para nossos filhos.
Perpetuamos-nos se amamos e não é nenhum consolo, apenas uma constatação!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

No fim dá certo

Não sou delicada com as flores e plantas que cultivo, mas elas entendem a minha boa intenção.
As mãos tateiam, retiram folhas secas, galhos, ajeita terra, às vezes radicaliza e troca uma planta de vaso e elas, elas sim delicadas, agüentam um pouco até que tudo termine. Como as pessoas que vão fazer exame de sangue, uma limpeza dentária agüentam um desconforto momentâneo por uma coisa melhor.
São assim as plantas do meu quintal.
E florescem lindas e vigorosas, cada uma a seu tempo, para meu grande espanto.
Converso com elas coisas à toa, nada de filosofia, apenas vou descrevendo o procedimento para diminuir o estresse.
Tenho violetas que florescem mais de uma vez por ano, há mais de 10 anos.
Tenho uma pitangueira, arbusto frondoso, que nasceu de algumas sementes da fruta saboreada na casa da saudosa Dona Mercedes lá de São José do Rio Preto. Brotou tímida em um vaso no parapeito da janela do apartamento ainda em São Paulo.
Quem te viu e quem te vê! Que ficou assim por minhas mãos é bem difícil de crer!
Não sou delicada, mas a intenção é tão pura que se ajeitam.
Sábado último foi desses dias em que organizando os vasos eu organizo a mente.
Depois de tudo pronto choveu.
Fiquei na varanda olhando o pinheiro liberto de seus ramos secos. O limoeiro em seu vaso novo. Alguns vasos reabastecidos com terra e minhoca.
Dançavam ao vento, recebiam a chuva e olhavam para mim agradecidos por já ter passado o pior momento.
Eu deveria saber ser assim com outras coisas, mas uma coisa de cada vez!