terça-feira, 28 de outubro de 2014

De assalto

Tinha um frio na barriga desde que nasceu.
Mas levou mais de cinquenta anos para entender que o frio na barriga era só medo do futuro.
O futuro nunca chega. A gente vai vivendo devagar e tem a sensação que o futuro vai acontecer como uma apoteose.
Como quando vamos dormir em noite de tempestade e acordamos com um céu claro, azul vibrante, sol brilhando de ofuscar o olho mais escuro que se pode encontrar.
Quando entendeu que o frio na barriga era medo do futuro começou a listar os “ses” e quase se desesperou.
E se tivesse largado os estudos, se casado com o primo do sítio e apenas criasse galinhas?
E se tivesse estudado inglês, alemão, francês e se tivesse feito jornalismo e viajado o mundo escrevendo histórias maiores.
E se tivesse tido filhos?
E se tivesse tido um gato, um cachorro ou mesmo um papagaio?
E se tivesse se atrevido a beijar aquele moreno na quermesse da igreja?
E se tivesse prestado um concurso público e tivesse um trabalho burocrático e silencioso onde o problema maior seria atualizar os carimbos no final do ano?
E se tivesse frequentado a igreja e se tornado uma voluntária?
E se tivesse se tornado uma nadadora de mar aberto?
E se tivesse aprendido a sambar e se trabalhasse o ano todo só pra juntar o dinheiro pra fantasia e pra passagem até o Rio de Janeiro em todo fevereiro?
Por mais que listasse os “ses” o frio na barriga não passava.
Quando esquentou foi de repente e ela demorou um tempo para entender que o menino que pedia a bolsa no ponto de ônibus tinha uma faca bem afiada.
Morreu.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Estado Sólido

Voltar ao estado sólido do amor.
Em um tempo em que não há estado melhor para se morar.
Pensar que já se passou da metade, que nenhuma metade é pior que um terço e que nada supera tudo que pode ser inteiro.
Inteiramente concentrada no que poderá ser é um estado sólido que nos impede de ver o que está sendo.
É agora, é aqui. Em cada segundo que se despede do inverno e se prepara para a primavera.
Coitada da primavera. Estação linda que se abre em flor, mas que no fundo, no fundo, sofre de uma ansiedade de passar rápido porque todo mundo, no fundo, no fundo, espera o verão.
Voltar ao estado líquido do choro que lava a alma.
Voltar ao que já foi na doce lembrança do porta retrato empoeirado.
Que imagens têm do passado?
Que cheiros, que cores, que amores?
Voltar ao estado de não estar.
Sentar e se emocionar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Esvoaçar

Não fosse o tempo que não te vejo deixar um rastro em minha memória eu não saberia mais que você existiu.
Tudo não passou de um pedaço da minha história. Um quadrinho talvez. Uma mudança de página e de repente um grande fim escrito no meio.
A foto amarelou.
A rosa murchou.
A janela bateu com o vento e um pedaço da cortina ficou gritando por socorro no alto do décimo quarto andar.
O livrou caiu, o marcador se perdeu e a história aproveitou para embaralhar-se.
Não fosse o tempo e tudo se resolveria.
O céu tão azul e límpido que não dura para sempre estaria até hoje no ar.
Memória hermeticamente fechada.
Um rastro na minha memória.
Estivesse você aqui e não teria um rasgo no meu querer.
Uma dor no peito.
Um amargor na boca.
Um tremor nas pernas.
Um novo pedaço de história pode ser escrito.
Uma aquarela no lugar da foto.
Margaridas no vaso.
Janela calçada para não prender a cortina, deixar a vida esvoaçar.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O atrevimento dos verbos

Gostar é um verbo atrevido.
Ele não nos deixa amar, quando muito nos deixa apreciar, aprovar, achar saboroso, agradável.
É transitivo indireto e, por isso mesmo, pede sempre um de para especificar.
Podemos gostar de pipoca, de sorvete e de maçã.
Podemos gostar de dançar, de cantar e de esquiar.
E podemos não gostar de muita coisa, de tanta coisa que nem vale a pena listar.
Mas, há outra acepção para o verbo gostar.
E ele, atrevido que é, não nos deixa lembrar assim, assim, no dia a dia e nos prega peças, e nos pega nas esquinas das provas de vestibular.
Gostar também é provar, experimentar, comer, degustar e aproveitar.
E quando é assim, ele é direto. Transitivo direto.
Por isso poderíamos dizer Ana gostou O sapato, mas era caro, não o comprou.
Então, mesmo que o gostar não goste, nesse caso, Ana experimentou o sapato!
E Ana ainda poderia gostar muitas outras coisas. Gostar sem de.
Entre gostar e amar existem nuances que ainda não se sabe explicar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Nem sempre

Etéreo, eterno, heterodoxo.
Irmanadas em sua forma física nada mais tinham em comum essas palavrinhas.
Assim também sucedeu com Luísa, Heloísa, Maria e Mariana.
Irmanadas em sua forma física de vogais e consoantes, nada mais tinham em comum essas mocinhas nomeadas assim.
Tantas letrinhas, tantas palavrinhas. Tantas considerações.
Dentro de cada mocinha percepções, ações e reações.
Doce Luísa de destino incerto, tantos sonhos rabiscados em papel.
Heloísa de mel, encarcerada, encenada em literatura de cordel.
Maria e Mariana. Misturadas desde o começo da vida entre pernas e braços que disputaram, respiraram univitelino. Homozigoto. 
Torvelinho, tornozelo, zelo e trovão.
Irmanadas em sua forma física nada mais tem em comum a tempestade e os que se salvaram porque eram bons de coração.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Tempo

O tempo é o senhor do tempo e de ninguém mais.
Cada um é senhor de si mesmo se souber o que senhor é.
Se não souber, passará o tempo tentando economizar tempo, matar o tempo, correr atrás do tempo, ignorar o tempo.
Cada passada um passo passado.
Cada segundo, minuto, hora em suas perspectivas já melhor descritas por melhores poetas e pensadores. Para um corredor de velocidade, diferença enorme! Para um voo atrasado, para uma noiva atrasada.
Atraso é o riso contido do tempo.
Brincadeira de mau gosto, de bom gosto.
Ninguém é senhor do tempo.
Tempo não é palíndromo como reler.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Verbar

Verbar é o ato de dar poder às palavras. Os substantivos principalmente, que são concretos, pasmados de suas existências sem ação.
Uma mulher poderia, ao levantar-se do seu croché, dizer: vou panelar.
E entenderíamos que ela iria cozinhar.
Os verbos são arrogantes, sempre em movimento, sempre determinando quem vai quem fica e nunca quem para.
Há preconceito entre as palavras, os adjetivos sempre taxados de fúteis.
Ah sim, há muito injustiça entre as classificações. Os substantivos abstratos ficam sempre em cima do muro porque são um estado. Entre os comuns, aqueles que convêm a todos os seres da mesma espécie, os que mais anseiam por um verbar.
É próprio de um substantivo querer apropriar-se.
Verbar é o ato de arrebatar, de subverter a função das palavras.
Palavra: s.f. vocábulo provido de significação.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

No parque

Olhou por um tempo o céu de um azul claro, cálido.
Tirou o bloquinho do bolso e rabiscou um perfil de rosto desconhecido.
Deixou a caneta balançando entre os dedos e lembrou-se das brincadeiras do tempo de escola em que balançava uma caneta bic entre dois dedos e ela parecia derreter-se.
Esticou as pernas. Um princípio de câimbra.
Olhou para o bico do tênis, sujo de barro.
Um passarinho cantava despreocupado.
A mãe passou arrastando um menino que equilibrava desajeitado a bolsa da escola e um picolé de maneira que não pingasse na camiseta do uniforme.
Ainda olhou para ele quando dobrou a alameda do parque.
Uma câimbra mais forte.
Uma dor que foi subindo pela perna.  Forte, forte.
Guardou o bloco, mas a caneta caiu.
Tombou a cabeça no banco sem encosto de cabeça.
No fim do dia o menino falou, mas a mãe não deu atenção...
- olha mãe, esse moço ainda tá aí, faz tanto tempo que até dormiu 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

De tudo já fui um pouco mais

De tudo eu já fui um pouco mais.
Um pouco mais rica. Um pouco mais magra.
Já fui um pouco mais sincera nos comentários.
Um pouco mais fria. Um pouco mais educada.
Eu já fui um pouco mais delicada.
Um pouco mais arrojada.
Já fui um pouco mais modesta.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Já fui um pouco mais pobre. Um pouco mais pontual.
Um pouco mais sozinha, um pouco mais sentimental.
Eu já fui um pouco mais ousada, um pouco mais comedida.
Eu já fui um pouco mais ardida, um pouco mais sentida.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Um pouco mais branda, um pouco mais branca.
Eu já fui um pouco mais sardenta. Um pouco mais teimosa.
Eu já fui um pouco mais menina.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Eu já fui um pouco mais literal.


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Desacerto

Aplacada a fúria resolveu pensar.
É, de fato, era pouco problema para muita palavra usada na reclamação.
O tom de voz tinha se alterado.
Mesmo que a voz tivesse se mantido no timbre certo, a bochecha vermelha certamente entregaria a movimentação sanguínea acelerada.
Era sempre assim. Qualquer coisa irritava muito e irritava tanto que esgotava qualquer possibilidade de paz.
Mas, não tinha sido sempre assim.
Não se lembrava de quando havia começado, mas havia começado em algum momento.
Começou e cresceu.
Não se aplacava mais a fúria com um longo suspirar e uma contagem de um a dez.
Quando a moça do supermercado só olhou, não respondeu e disfarçou um meio sorriso, entendeu que era tempo de pedir ajuda.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Distraído

Distraiu-se com a vida e de repente o tempo tinha passado.
Tentou concentrar-se e dedicou-se a fiar suas histórias.
Encontrou-as inacabadas, como teias de aranha arrancadas por uma vassoura desatenta. Pedaço sim, pedaço não. Desabitadas.
Histórias com começos e meios e quase nenhuma com fim.
Mas o que é o fim de uma história?
Quem escreve a palavrinha de três letras com o F em letra maiúscula e lindamente desenhada? Nos contos infantis, o autor.
Na vida... Distraiu-se com a vida e se perdeu de vista, não estava interessado.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

De cães e tapetes

Pensou em um jeito de dizer não, mas não encontrou.
Dizia sim desde sempre.
As pessoas riam dela.
Ela sentia-se bem quando era criança, mas conforme foi crescendo foi se achando a pessoa mais boba do mundo.
Quando tentava não ser boba não dava certo.
Ela com ela mesma se desintegrava e era um tal de tanto pensar que tontificava.
Estava decidida a ser boba até o fim.
O que tinha a seus pés e que não se importava com esse jeito era o tapete.
Nada além do tapete.
Tinha um gato. Mas ele não era desses gatos grudados que ficam deitados no colo e um cachorro não podia ter.
Cachorros exigem demais e ela não tinha muita coisa a oferecer.
Naquele dia, quanto o telefone tocou, ela ficou eufórica pensando que receberia uma proposta.
Mas era só uma consulta.
Talvez por essa frustração momentânea falou sem muitas conjecturas e falou tudo o que realmente devia falar.
Quando terminou percebeu que tinha dito a verdade, sem sofrer, sem parecer boba, apenas disse, num tom de voz nem alto nem baixo. Ponderou que não queria prejudicar ninguém, mas que fato era que...
E assim, pela primeira vez, aos ouvidos de alguém ela teria sido má.
Não doeu tanto.
Sim, já era hora de ter um cachorro e era hora de trocar o tapete da sala.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Sólido

Olhou o tempo como quem enxerga o sólido e pestanejou.
Resolveu falar. Não era de se intimidar com aqueles que desdenham dos que falam sozinho.
Pensou na carteira que levava no bolso.
Velha e vazia.
Pensou na mãe que ainda passava suas camisas.
Desejou muito ter um cachorro para quem pudesse jogar um graveto e ficar esperando receber de volta.
Olhou o tempo como quem enxerga o óbvio.
Pensou em sorvete. Chocolate com laranja.
Quando apresentou esse sabor à Brígida eram duas novidades.
O sorvete para ela e esse nome para ele.
Sempre quis saber as origens dos nomes, mas para ela não perguntou.
Agora era tarde. Nunca mais saberia.
Olhou para o tempo como quem enxerga o obsoleto.
Resolveu se calar. Já estava quase no trem e aí sim, era um perigo ser confundido com os loucos que falam sozinho.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Pitoco

Era Pitoco o nome do cachorro.
Foi o que ele conseguiu dizer entre soluços.
Quando Dona Alzira foi varrer a calçada deu de cara com aquele molequinho sentado na sarjeta, com a cabeça baixa apoiada nos braços cruzados sobre o joelho e que se sacudia todo de tanto chorar.
- hei menino o que foi que houve?
- foi o Pitoco
- que Pitoco?
- o meu cachorro, ele veio atrás de mim, eu corri pra atravessar a rua e ele não conseguiu passar, o carro pegou, o Pitoco, o meu Pitoco
- e onde ele está?
- a moça do carro levou ele pro médico de cachorro, mas não quis me levar porque falou que a minha mãe ia ficar brava
- e onde você mora?
- agora eu moro aqui, até ela voltar

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Reencontro

Acharam-se nas redes sociais e depois de um tempo resolveram se encontrar.
Marcaram um almoço.
Ficaram ansiosas.
As perguntas femininas semeadas pela inquietação eram: será que engordou? será que fez alguma plástica? será que pintou o cabelo? será que as unhas estão bem feitas?
No dia marcado uma esperou pela outra um pouco mais do que gostaria, mas não se aborreceu.
Uma vinha de casa, de deixar filha na escola, a outra vinha do trabalho, mas de nenhuma posição da qual pudesse se orgulhar.
Escolheram um restaurante mais pelo poder falar do que pelo cardápio.
Eram muitos anos para por em dia.
Parecia que seria um longo bate-papo, mas no fim foi quase um monólogo.
Daquela que, há pouco separada, contou toda a história de como foi, citando personagens totalmente desconhecidas para a outra que aproveitou e comeu.
Um estranhamento. Um desconforto.
Café e sobremesa.
Sorrisos sem brilho.
A despedida foi no estacionamento com promessas de se visitarem em casa, juntar as crianças.
Nunca se deu.
Um quê de nossos sonhos leves não deram certo, o futuro que imaginamos não chegou. Não vamos confrontar nossa existência.
As redes sociais evoluíram. Uma delas migrou.
Ainda não encontrou o perfil da outra, mas valia a pena.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Fuga

Andou de lá pra cá, de cá pra lá e não tinha nada a dizer.
Voltou da escola mais cedo, com o joelho ralado.
A mãe, espantada, perguntou o motivo, mal ouviu a resposta e seguiu estendendo a roupa no varal.
Foi para o quarto que dividia com os outros dois irmãos.
Olhou para cá, para lá e pela janela através da cortina de pano barato.
Tirou o lanche da mochila e comeu.
Encheu o tapete de farelo.
Não gostava de tapete, sempre tropeçava, ficava desarrumado e era motivo para as broncas da mãe.
Mãe... Pra que cuidar tanto de uma casa tão pobre e tão feia? Precisava limpar tanto? Por tanto pano na janela, no chão, se era tudo pano velho?
Apertava o coração com medo do padre que dizia que ter inveja era pecado.
Ele tinha inveja do Sérgio. Que tinha uma casa linda, que tinha tênis de tudo quanto é tipo, sempre tão novos e limpos. Tinha a mochila mais bonita da turma. Nem levava lanche, comprava de tudo na cantina todo dia.
Ele tinha inveja. Tinha medo, mas tinha inveja.
Era por isso que tinha dado tanto nele pouco antes do intervalo, quando se esbarraram no corredor.
Não era motivo. Todo mundo falou. O professor, a diretora. Suspenso. Ele que sempre fora tão tímido e quieto que quase invisível? 
Queria poder nunca mais voltar para a escola e olhar para o que não tinha.
A mãe chamou para almoçar. Ele saiu pela janela pensando em nunca mais voltar.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Assombro

E quando se olhou no espelho perguntou:
- quem é essa senhora que está usando minhas pérolas?
E então uma vida toda ficou para sempre aprisionada naquele olhar doce e sem futuro, porque o passado estava todo lá.
Em outro momento, perguntando por que Nicolau não chegava para jantar, a filha arriscou:
- mamãe, o papai já se foi
- foi para onde se nem chegou?
- não está mais entre nós
- isso é óbvio, não o vejo em lugar nenhum!
- não, mãe, o papai morreu há alguns anos
O silêncio cresceu.
Decidira ser honesta depois de, em ocasião recente, dar uma desculpa qualquer sobre a ausência do pai e ser pega no flagrante lapso da boa memória:
- porque está mentindo para mim? sei que seu pai morreu
Não sabia mais como lidar com as palavras.
Ela, com a memória.
Uma solidão compartilhada, escorregadia, perdida e encontrada para sempre.
Tinha 79 anos e teria cada vez menos com o passar dos dias.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Raro objeto

Vadiava pela rua em uma tarde ensolarada.
Vadiar é um termo pesado para um menino de oito anos que já estudou pela manhã e está sem os amigos e entediado.
Caminhava pelas ruas dos quarteirões vizinhos à sua casa em uma tarde ensolarada.
No quintal de terra da casa silenciosa, muitos brinquedos descansavam à sombra de uma árvore.
Olhou de um lado, olhou de outro. Abriu o portão de madeira sem fazer ruído e rápido como um coelho fechou a mão em um dos carrinhos e fez o trajeto de volta com o coração aos pulos.
Mais tarde, em casa, já de banho tomado escutou palmas. Quando apareceu na porta para espiar, já o grupo falava e gesticulava muito.
A mãe segurava a ponta do avental.
Eram três meninas e um menino. A maior delas contava que da janela da sua casa vira quando ele entrou no quintal e roubou o carrinho.
A mãe chamou.
Com as perninhas bambas já veio com o carrinho na mão e contou que encontrou na calçada e que tinha trazido consigo para ninguém pegar e que ia devolver no dia seguinte.
Ninguém acreditou.
As meninas foram embora falando alto e gesticulando.
Ele sentiu as orelhas quentes e vermelhas.
A mãe perguntou mais uma vez o que havia acontecido e ele repetiu a mesma história.
Ela não acreditou, mas não fez nada. Tinha tanto o que fazer, tanto com o que se preocupar.
Achou que era coisa de criança e que a vergonha que ela enxergava nele já poria as coisas no rumo.
Ele repassa a história uma e outra vez. Pensa em contar para o terapeuta, mas quando se senta na sala, tudo o que lhe ocupa a mente é um jeito de conseguir levar aquele abridor de cartas de prata. Tão raro objeto, tão precioso objeto que ainda será seu!

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O sonho do João

Gostava de ser palhaço de circo, mas era pedreiro.
Ela gostava de ser professora, mas era costureira.
Gostava de ser cantor, mas era encanador.
Gostava de ser médica, mas trabalhava no balcão da farmácia.
Gostava de ser engenheiro, mas era mecânico.
Gostava de pintar quadros, mas era passadeira.
Gostava de ser marinheiro, mas era balconista na lanchonete.
Ela gostava de trabalhar no banco, mas era ascensorista.
E ainda diziam que logo isso ia acabar, tudo moderno, lá precisa de alguém o dia todo pra apertar um botão?
Ele gostava de ser caminhoneiro, mas era pipoqueiro, não sabia ler não senhor.
Gostava de ser bailarina, mas era babá.
Gostava de ser locutor de rádio, mas era metalúrgico.
Gostava de ser advogado, mas era chaveiro.
É, tirando um e outro com história bonita que aparece na revista e no rádio quem tem fome de comida não tem tempo de correr atrás de sonho não.
Era isso o que a mãe do João falava todo dia porque ele queria tocar guitarra na televisão.
Ela falava que isso também era coisa que ele escutava na música do rádio.
Ah João... não é cem por cento das coisas que a gente tem que ouvir da mãe não!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Doce de Abóbora

A avó fazia doce de abóbora com coco. Ela adorava.
Quando penteava seus cabelos repartia ao meio e ela ficava com uma cara gozada. Mas deixava assim mesmo.
A avó rezava o terço, ela fechava os olhos e ficava rolando as continhas entre os dedos, vez ou outra mexia os lábios, meneava de leve a cabeça.
A avó adorava tomar sopa, mesmo no verão. Ela deixava esfriar, tomava depressa para acabar logo e quando a avó ia dormir comia uns biscoitos na despensa.
A avó gostava de passar roupas. Ela aproveitava a quietude e lia poesias para a avó.
Viviam bem. Viviam juntas. Os únicos momentos de tensão, ansiados e postergados, eram os momentos em que experimentava perguntar sobre a mãe.
A avó enchia a boca de doce de abóbora e fazia sinal de que com a boca cheia não podia falar.
E a questão engordava a menina, que já não brincava na rua por não conseguir correr.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A dona Angela e a Maria Inês

A dona Angela sempre espiava a Maria Inês limpando a casa.
Ela gesticulava, falava, mesmo estando sozinha, arrumava o cabelo.
De um cômodo a outro, sendo entrevista pelas janelas abertas, segurava a vassoura com afetação e antes de varrer o chão com firmeza, como acreditava a dona Angela que era o certo, parecia mais estar varrendo um piso precioso, que não podia arranhar.
E de novo ajeitava o cabelo e fazia bico como quem ia beijar.
Parava, olhava fixamente para um ponto e de repente fazia uma careta, como quem ia chorar.
A dona Angela pensava se acaso a Maria Inês não estava ficando meio doida, ou mesmo se não era o caso de perguntar se ela via e falava com espíritos. Mas, como perguntar isso sem explicar que ficava sempre espiando?
A Maria Inês quando acordava para arrumar a casa já a Dona Angela tinha feito tudo isso e até as sobras do jantar para aquecer no almoço já estavam sobre o fogão. É que a dona Angela fazia o jantar fresquinho porque o filho trabalhava o dia inteiro, não almoçava em casa.
Um dia, dona Angela estendendo roupa no varal e espiando a janela da Maria Inês, deu de cara com essa que vinha sacodir um tapete.
- Bom dia
- Bom dia dona Angela! Passou protetor solar no rosto pra estender essa roupa com esse sol danado?
- Não precisa, é só um minutinho
- Ah, precisa sim, até na sombra!
- E você, que tanto se sacoleja e faz careta enquanto limpa essa casa menina, é doida é?
- Sou doida de vontade de trabalhar na televisão! Ai dona Angela, limpar a casa, lavar roupa, fazer comida é tão chato, pra me distrair eu ponho uma música e vou fazendo como se eu estivesse aparecendo na novela. Por isso faço careta, arrumo o cabelo, tudo o que faço é para as câmeras e para os meus telespectadores!
- ah, entendi, e em que canal que passa?

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Homem Bom

E quando morreu tornou-se um homem bom.
A mulher não enumerou as coisas que a irritavam como toalha molhada na cama, quando ignorava o guardanapo e limpava a boca na barra da toalha de mesa. Coisas pequenas.
Nem as coisas grandes vieram à tona como quando, embriagado, lhe dava uns sopapos e jogava os pratos pelo chão sempre reclamando que não tinha carne. No dia seguinte acordava para ir trabalhar e lhe falava para pagar a conta de luz como se nenhuma sombra tivesse manchado a noite anterior.
Os amigos da oficina também só se lembravam das piadas e do jogo de dominó no intervalo de almoço. Nada dos gritos histéricos quando as ferramentas não estavam limpas ou no lugar certo. Nem do dia em que atirou uma chave de fenda em um vira-lata que só queria fazer amizade. O Ramirez adotou o bicho e levou pra casa, coitadinho, todo assustado.
A mãe não chorou, porque já tinha partido havia dois anos. Ninguém imaginava que fosse morrer cedo. Mas, quando morreu, tornou-se um homem bom, como costuma acontecer com todo homem que trabalha, paga impostos e uma coisa aqui e outra ali é que enerva e tira dos trilhos.
No dia seguinte ao seu enterro continuava sendo um homem bom aos que ainda davam os pêsames à dona Etelvina. Mas isso ia durar só até que a Margarete vencesse os 200 metros entre o ponto de ônibus e a casa do Tadeu, para onde arrastava os dois moleques e ia reivindicar que algum dinheiro fosse destinado a eles porque era o Tadeu que lhe pagava o aluguel e lhe botava comida na mesa!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Fruta na fruteira

Fruteira é coisa que guarda fruta.
Lapiseira não é coisa que guarda lápis, guarda grafite, assim, deveria se chamar grafiteira.
Mas, grafiteira pode ser a menina que faz grafite.
Grafite, aquelas pinturas no muro que alegram alguns e entristecem outros.
Há os bonitos e há os feios.
Tornozeleira não é coisa que guarda tornozelos, é uma pulseira que tanto pode enfeitar como pode denunciar.
Pulseira guarda pulso, só quando no pulso está. Então, quem guarda quem?
Macieira é árvore que dá maçã.
Macieira pode ser de macio?
Não tem fruta na fruteira e estou com fome.
Quando estou com fome e não tem fruta na fruteira é porque não tem mãe em casa.
Quando não tem mãe em casa eu bem que posso pegar um saco de batata frita e ver um filme qualquer com os pés no sofá.
Posso? Posso, mas não devo. Vou fazer mesmo assim, depois, quando ela chegar eu conto tudo pra ela, que mãe eu não posso enganar.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A metade da laranja

- Eu gosto da laranja não cortada, em gomos.
O cheiro é bom, a casca transpira o sumo e o cheiro fica na mão.
Eu gosto de bolo de laranja, de suco de laranja.
Eu gosto da cor laranja.
Eu gosto das sementes de laranja.
São pequenas e atrevidas, escorregadias.
Escondem-se entre os gominhos do gomão, aqueles que parecem pequenas joias e escorregam pra dentro de nossa boca.
Sementes de laranja já sonharam ser nossos dentes de leite.
- Ah, essa é boa e foi uma sementinha que te contou?
- Você nunca entenderia como eu sei essas coisas
- Para mim, basta entender que você gosta de laranja
- Eu acho pouco dizer gosto de laranjas...
- Eu acho muito concluir que a semente sonha ser nosso dente de leite, parece conversa que uma adolescente teria com um psicólogo
- Eu nunca iria a um psicólogo
- Por que não?
- Iria a um psiquiatra, mas não sei bem explicar  
- Hum... sabe que a semente de laranja quer ser um dente de leite, mas não sabe a diferença entre os médicos?
- Sei sim, só acho que não tem poesia na explicação e para você basta entender que eu não iria a um psicólogo, só isso
- Quer mais uma laranja?
- Quero

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Perguntação

Fazia perguntas como todas as crianças.
- quem desenha as linhas da impressão digital?
- tem gente que não tem linha na impressão digital?
- é de verdade que a cigana enxerga o que está escrito nas linhas da palma da mão?
- por que tem coisas escritas nas linhas da palma da mão?
- é como se fosse o nosso caderno secreto?
- mas, se é nosso caderno secreto, por que é que a gente não consegue ler e uma pessoa que nem conhece a gente sabe o que está escrito ali?
- dedo do pé tem impressão digital?
- e quem não tem mão, não pode tirar documento daqueles que tem que pintar o dedo e carimbar?
Gostava muito das linhas do corpo.
Roubava nanquim do material escolar da irmã e se divertia sujando mãos, cara e sofá.
- e essa marca na sola desse chinelo havaiana? é a impressão digital do chinelo?
- se ficar essa marca no meu bumbum aí eu vou ter impressão digital na bunda?
E quanto mais perguntava, menos sabia sobre as impressões digitais.
Quando caminha na areia da praia sempre vai rabiscando uma impressão que espera ser diferente de tudo o que vem vivendo até aqui.
Hoje é o dia Fernando, como está se sentindo?
Não sei. Tudo o que tinham para prender o meu pai, há 20 anos, era uma impressão digital.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Chácara

Gostava de futebol, mas não via nisso futuro, tinha consciência de que era um perna de pau.
O tio era médico, orgulho da família, ainda mais que era obstetra e tinha ajudado a nascer metade daquela gente da cidade pequena. O tio ajudava a nascer tanta gente e não tinha filhos.
Na família culpavam a tia, magrinha, frágil, a mãe não concordava e defendia sempre. A mãe defendia todo mundo.
Mas, o advogado era o pai.
O pai era um advogado respeitado, de vara de família. Não era sempre que um grande caso se dava, como o do ex-prefeito, mas sempre tinha lá uma pensão ou outra pra ajustar e até pedidos de emancipação. Gente que queria ir se embora até para outro país sem dar satisfação aos pais.
Ele nunca pensara nisso.
As profissões exigem muito estudo, muita dedicação. Ele ficava cansado desde os primeiros anos escolares, de estudar a tabuada. De ler livros então, só se safava porque a mãe lia para ele em voz alta e administrava as crises do boletim com o pai.
O que salvava era o fato de ser tão sossegado que não despertava a ira no pai, como o Jaime despertava no pai dele. As brigas homéricas do vizinho com o filho até ajudavam a acalmar as expectativas do pai.
No fim de tudo, a mãe o ajudou a convencer o pai de que comprar e tocar uma “chacrinha” era um bom negócio.
E assim se fez.
Ele cuidava de hortas lindas e vendia as verduras mais vistosas na feira de sábado e nas quitandas dos bairros.
Galinhas ciscavam no seu pé enquanto ele se sentava na varanda para tomar a fresca do fim de tarde.
Enquanto isso, na família se comentava:
- e o filho do Geraldo não deu em nada
Só uma prima distante que por ele suspirava defendia:
- é, não deu em nada, mas é feliz!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Assunto

Ficava sem assunto quando não tinha campeonato de futebol.
Um dia, sentado à toa no sofá, passou a mão em um livro que a filha deixara e folheando resolveu começar a ler do começo.
E leu um capítulo e outro.
Pegou um marcador diferente e sinalizou onde o abandonou para jantar.
No dia seguinte escreveu um bilhete para a menina explicando o outro marcador e na hora do almoço contou para os camaradas parte da história que estava lendo.
Alguns prestaram atenção, outros nem tanto. Uns poucos gostaram e quase todos estranharam o assunto.
À noite retomou a leitura, mas no dia seguinte não comentou nada mais da história com os camaradas.
O que fez foi um caminho diferente para chegar até o depósito e aí sim, na hora do almoço contou que resolveu arriscar um caminho mais longo, mas que fluía melhor e que ainda tinha visto a saia de uma morena levantar com o vento.
O assunto movimentou o almoço e todo mundo prestou atenção, comentou, riu e a conversa seguiu. Um ou outro falou menos, até porque, palitavam os dentes.
Terminou a leitura e arranjou outro livro que andava por ali, as meninas liam demais.
Numa quinta-feira qualquer o assunto do almoço começou com a pergunta:
- E aí Felinto? Viu o jogo ontem?
Ele quase engasgou tentando encontrar uma desculpa... então os campeonatos já tinham recomeçado?
Que diabo de dia é hoje?

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Mudança

Avenca. Orquídea. Margarida. Samambaia.
Cravo. Renda Portuguesa. Rosinhas. Olha... Copo de Leite. 
Dália. Onze Horas. Rabo de Gato... Como será que se chama de fato?
Como vai ficar o jardim até que a casa seja vendida?
Não sei. Pensei que você estava rezando, não falando de nome de flor. Isso tudo é nome de flor?
A mãe ia querer que cuidássemos do jardim.
Eu não tenho tempo.
Eu quero ficar aqui.
Você tem sua vida e entre sua vida e aqui existem alguns quilômetros.
Mas ela ia querer que cuidássemos do jardim.
Precisamos vender a casa.
Podemos por uma condição, de que o jardim seja mantido.
E você virá checar? Sei... Deixa disso. Tira umas fotos.
Ela deve estar ouvindo a gente.
Mãe, eu nunca gostei de flor, lembra? Sempre apanhava por causa delas, quando quebravam com as boladas que me escapavam. A coisa toda é com a Rita.
Então eu vou ficar Tarcísio. Não venda a casa. Eu vou me mudar pra cá.
Eu vou cuidar do jardim.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Combate

Terminou o banho despreocupadamente e, quando abriu o box, ele estava lá.
Enxugou-se sem tirar os olhos dele.
Calçou os chinelos secos, se enrolou na toalha.
Movimentos leves, quase coreografados.
Ele parecia ignorá-la completamente.
O movimento foi rápido, o braço imprimiu força bruta e a mão espalmou o azulejo com vontade.
Quando olhou para o resultado, qual não foi sua surpresa ao não ver nada. Absolutamente nada.
Olhou em volta entre curiosa e furiosa e não demorou muito para localizá-lo.
Fechou a porta. Por aqui não sai.
Arrogante. Atrevido. Ágil.
Tentou uma vez mais com a mão, depois com a toalha. Nada.
Pensou nas tarefas do dia, atrasada como sempre. Desistiu.
Quando pousou a mão na maçaneta para abrir a porta ele pousou quase no mesmo lugar anterior.
E dessa vez a palmada foi certeira.
Abriu a torneira, lavou a mão com a água bem fria. Passou a mão molhada no azulejo, voltou a lavar a mão.
E então se arrependeu. Sabia que em algum momento seria picada por aquele pernilongo, mas não precisa ter acabado com ele assim, que não deixou nenhuma mancha de sangue na parede.
Pobrezinho, morreu com fome.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Crush

Chegou em casa na hora certa e como era certo, foi deixando as coisas pelo caminho.
A bolsa na sala, um não sei o que na cozinha onde foi beber água, as sapatilhas no corredor até chegar ao quarto.
Deu um beijo estalado na mãe.
- que agitada, nem esse calor de 40 graus te desanima?
- no
- e como foi na escola?
- tudo bem...
Não cresceu como a mãe esperava, mas não era nanica. Não era gorda, mas estava longe de ser magra.
O macacão laranja não era exatamente a peça que a mãe escolheria se ainda a ajudasse a se vestir para a escola, mas evitava discussões inúteis.
- pode fazer o caminho de volta e recolher as coisas que foi deixando pelo caminho mocinha?
- já, já mãe, preciso procurar uma coisa aqui no Google... peraí
Não bisbilhotava as coisas da filha, mas era preocupada e vigilante.
- e o que é essa coisa tão importante, posso saber?
- crush... meu professor de matemática me disse que eu estava parecendo uma garrafinha de crush e o outro ainda disse delícia... quero ver como é
A mãe entendeu.
Ela ainda teria que refinar a busca porque as imagens das novas embalagens não entregariam nada assim tão fácil.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Enredo

Era elegante.
Bonito não, com lábios finos, nariz adunco. Mas elegante sim. Alto, magro.
Nadava. Não vários estilos porque aprendera a nadar no ribeirão.
Apesar da aflição da mãe, escapava com a turma da rua e era um tal de nadar pra cá e pra lá, diversão garantida nas tardes quentes de verão.
Por sorte, todos os que iam sempre voltavam. Um arranhão ou outro, coisa boba.
Não era um craque na bola, mas a pelada com os moleques era sagrada e, por isso, nunca passou vergonha com a bola nos pés.
Tênis não jogava. E pra isso tinha sempre uma desculpa que nunca causou estranheza.
Sabia usar os talheres.
Era muito educado.
Falava inglês e já visitara alguns países.
Jogar golfe não combinava com seu jeito quase desconcentrado de ser. Era o que ele imaginava que os outros pensavam, mas era exatamente o contrário.
Tão calado e misterioso, poderia ser um bom parceiro!
Andava de bicicleta. Fácil.
Comia frutos do mar com requinte e moderação.
Nunca falava de seus colégios. Nunca falava de seus acampamentos ou de suas lembranças da Disney, de suas viagens, da casa dos avós.
Nunca mostrava fotos de sua turma ou de seus irmãos. Tinha uma foto com a mãe e o pai, a quem lembrava muito, tão descontextualizada que nada se poderia concluir.
Era calado. Fazia parte de sua elegância.
A sua eloquência guardava para o seu analista, com quem falava, chorava, desabafava, sorria, repensava, mas até onde se sabe nunca foi capaz de resgatar a verdade.
Entre os seus, de agora, não pegava bem ter sido pobre. Nadar em ribeirão, morar em vila, estudar em escola pública e nas férias vadiar roubando frutas e procurando mamonas para o estilingue.
Era apenas elegante.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O menino da feira

Gostava de sentar e olhar o tempo perdido em seus pensamentos, desde menino.
Naquela época rabiscava o chão com um graveto qualquer, agora brinca com as correntes de ouro penduradas no mesmo pescoço branco, só crescido.
Nunca tivera sorte na vida. Era um moleque magrelo, canela fina e apesar de sempre ter comida na mesa, o bife era pequeno e de vez em quando e, fruta, só as mangas do quintal.
Nada daquelas maçãs de conto de fadas que via na feira, ou os morangos das caixas que às vezes carregava na mão, como preciosidade.
Jogava bola com o Tadeu, mas nunca tiveram uma bola nova igual a do Rodrigo, que jogava sozinho, feito bobo dentro do quintal.
E bicicleta então, ah que vontade de ter uma novinha, cheirando a plástico da fábrica, a óleo igual de carro.
Bicicleta até o Tadeu tinha e até o deixava andar, mas era comprada de segunda mão e já tinha sido do irmão do Tadeu, vê lá se isso dá algum gosto?
Agora, de vez em quando conta as correntes e pensa em comprar mais uma, bem grossa, e aí usar só ela.
Ia à escola, mas tinha tanto sono que tudo embaralhava. Ser pobre não é defeito, dizia sua mãe. Mas ela nem tinha estudado, não sabia nada da vida, escutava essas coisas na igreja e repetia. Talvez pra doer menos. Era inocente sua mãe.
- hei menino, tá no mundo da lua, é? quanto cobra pra levar meu carrinho de feira até em casa? Moro depois da linha, deve dar uns cinco quarteirões...
Demorou pra responder, despertado de sua decisão, mas a resposta foi firme, como se preparada em banho maria como o pudim de muito de vez em quando.
- hoje não vou cobrar nada não, também moro lá praqueles lados e não vou mais trabalhar aqui de levar carrinho de feira, mas bem gostava se a senhora me desse um moranguinho desses...
Eduardo, é assim que as pessoas pensam que ele se chama.

  

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mimado

Mimado.
Tinha fomes específicas.
- não quero almoçar isso, quero macarrão com molho de atum
E ela, tão solícita, apesar do  branco do arroz ofuscar, do strogonoff amaciar qualquer estômago, relativizava o pedido fora de propósito
- ah, é assim mesmo, às vezes a gente tem fome de alguma coisa e outra até dá enjoo, eu sei bem como é, e é tão fácil de fazer, leva tempo nenhum...
- a senhora sabe como é? sempre provocava a filha mais  velha inconformada, a senhora que cresceu à base de polenta sabe como é? mimado, esse cara é mimado isso sim que ele é
E foi assim aos dez, aos quinze, aos vinte quando voltava nos finais de semana, aos trinta quando vinha só no Natal, e quando teve que vir fora de época porque...

Ficou na cozinha, mexeu nos armários, nas panelas, nas gavetas, fritou um ovo de qualquer jeito e foi misturando num tanto de arroz que jazia na panela, porque jazia para sempre os seus mimos numa lembrança qualquer.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O cão

Era religioso apenas com o horário de passear com o cão.
Não importava chuva, chuvisco, garoa. Noites estreladas e noites quase ensolaradas no horário de verão.
Mais que um passeio era uma rotina de oração aos seus pensamentos, que podiam se concentrar no vazio de apenas ser e caminhar.
Uma prece por noite. Um cansaço revigorante escondido atrás do que diziam ser um excelente exemplo de dono de bicho. De um cão saudável e feliz.
Tempo e terço, contas rezadas solitariamente.
Quando o cão adoeceu as preces se misturaram e ficaram confusas.
Quando a coleira sobrou inerte na área de serviço ele voltou a ser ateu.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Anastácia

Anastácia bordava, mas não vivia. Narrava uma biografia que construíra para ter a ilusão de uma vida melhor.
Cada ponto no tecido uma cena.
A garota sentada aos pés, descabelada e com a boca suja de manga gostava de ouvir as histórias, mas não sabia se acreditava.
Capítulo Um.
Eu nasci no mês mais lindo do ano, maio, mês das noivas...
- mas você nem casô Nastácia...
Não importa! Eu era uma bebê linda e gorducha de cabelos loiros, cheios de cachos e olhinhos bem azuis!
- mas você nem é dessa forma Nastácia, tem olho preto, cabelo preto...
Antigamente as crianças nasciam assim, bem lindas e depois iam mudando, não vê que hoje ainda algumas crianças nascem carecas e depois ficam bem cabeludas?
- mas olho muda de cor?
Eu era a caçula de cinco irmãos meninos e meu pai me tratou sempre como uma princesa!
- e princesa não tem coroa não Nastácia? cadê a sua?
Anastácia balançava a cabeça, nem que sim nem que não.
Um ponto forte, um ponto frouxo.
Deixa pra lá moleca, vai arranjar o que fazer!
Capítulo Dois.