segunda-feira, 11 de maio de 2015

Solidão compartilhada

Estava no primeiro ano da faculdade e o trabalho era escrever um texto livre.

“Não sou melhor por não fumar. E não sou pior por tomar uma cerveja.
Não sou melhor por ter conseguido entrar na faculdade. E não sou pior por pagar com o salário uma faculdade de segunda linha.
Não sou melhor por vir de carro. E não sou pior por dirigir um carro popular com muitos anos de uso.
Não sou melhor por ter atravessado o oceano em viagem de férias. E não sou pior por não conhecer a Disney.
...”

Quando recebeu de volta o texto o professor disse:
- Vou pedir que faça outro texto, não gostei.
- Mas o tema era livre.
- É, mas ficou muito pessoal.
- Essa avaliação é muito pessoal...
Tomou a folha de papel da mão do professor e guardou na pasta de qualquer jeito.

Mais tarde, cruzaram os olhares no bar do outro lado da rua.
Ele fumava um cigarro na calçada, encostado no poste de luz.
Ela tomava uma cerveja, encostada no balcão.



quarta-feira, 6 de maio de 2015

Roubo

- Eu roubo.
- Desde quando?
- Desde sempre.
- Conte-me algumas passagens.
- Quando era criança roubei um carrinho de plástico de um quintal. Em casa falei para minha mãe que achei na rua. Ela acreditou. Mas umas crianças vizinhas da casa tinham visto e foram lá em casa com o dono do carrinho. Falei que tinha achado na calçada e guardado para devolver, mas eles não acreditaram.
- E sua mãe?
- Não disse nada. Não fez nada.
- E adulta?
- Roubei uma pulseira de uma bolsa em uma academia de ginástica que meu namorado frequentava. Foi uma confusão lá, mas eu não soube. Um tempo depois ele viu a pulseira comigo e levou de volta. Tive que telefonar e me desculpar. Ele ficou com muita vergonha de mim.
- E você?
- Eu o quê?
- Você ficou com vergonha?
- Não me lembro. Acho que sim.
- E parou por aí?
- Não, eu ainda roubo. Coisas, qualquer coisa. Não quero lucrar, não são coisas de valor. Quero ter. Quero subtrair.
- Podemos continuar essa conversa na próxima semana.
- Eu não vou voltar.
- Seria bom.
- Seria. Mas não vou voltar. Não vou pagá-lo. Acabo de roubar o seu tempo.
- Ok. Acho que vai voltar sim.
- Não. Eu roubo. Apenas isso, nada mais.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Fenômeno

Não tinha apego.
Não tinha apreço.
Não tinha amor.
Não tinha amigos.
Tinha um gato. O Fenômeno.
E detestava toda vez que alguém, ao perguntar o nome do gato, logo deduzia que era uma homenagem ao Ronaldo.
Não gostava do Ronaldo.
Não gostava de futebol.
Mas, para não explicar tudo isso e ser considerado ainda mais esquisito por não estar no padrão masculino de ser fanático por futebol, apenas respondia que não.
O problema é que as pessoas não param nas respostas sucintas.
As pessoas não se conformam com a dicotomia sim e não.
As pessoas são atadas aos porquês desde que aprendem a falar.
E ele, emaranhado nessa rede, explicava.
Ele se chama Fenômeno porque é de fato um fenômeno que, ao aparecer em casa, esse gato vira lata me tenha escolhido para ser o seu dono.
Logo eu, um cara que não gosta de quase nada e de quase ninguém.
Mas o Fenômeno não dava trabalho. Não precisava passear.
Miava como quem pede desculpas quando queria mais comida.
Tomava água como onça e como onça ficava nervoso apenas quando ela não estava fresca.
Não se incomodava em ficar sozinho um final de semana em que ele dava um pulo na praia.
O Fenômeno se enroscava ao seu lado no sofá enquanto via alguma bobagem na TV.
Ronronava de leve enquanto se ajeitava aos seus pés, no pé da cama.
E tinha tanto apego.
E tinha tanto preço.
E tinha tanto amor, que arriscou escrever uma carta de próprio punho para a ex-mulher.
Se acontecer alguma coisa comigo não se preocupe com nada que tudo já deixei encaminhado, só se ocupe do Fenômeno que, quando me escolheu, não tinha como saber que eu era um cara assim, de tão sozinho, quase ruim!  Obrigado.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Olho por olho

Olho por olho.
Dente por dente.
Não sabia muito bem de onde vinha essa história.
Talvez tivesse escutado na igreja, parecia coisa de santo.
Pensou em olho por olho e dente por dente, mas depois que esfriou a cabeça achou que não era o melhor caminho.
O Firmino usava óculos fundo de garrafa, olho por olho não dava em nada.
E ele mesmo, que até tinha olho bom, mas que não tinha um par de dentes também não levava vantagem nenhuma nessa confusão.
Pensando bem a Wilza nem era tudo isso pra brigar com o amigo.
Mas, de onde será mesmo que vinha essa história de olho por olho?
Saiu arrastando o chinelo com intenção de pedir pra Gisleine procurar a origem do ditado na tal da internet.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Artista

A Janete quer ser artista.
Aparecer na televisão. Beijar na boca artista bonito.
Ser convidada para festas chiques e mais do que isso, quer ganhar dinheiro para aparecer por 30 minutos nessas festas.
É, a Janete sabe que é assim, ela já leu sobre isso. Mas ela ficaria até o fim da festa!
A Janete quer sair na revista. Passar o fim de semana no castelo de Caras.
A Janete quer assistir o desfile de carnaval do Rio no camarote da cerveja.
A Janete quer mudar o cabelo todo mês e sair no Instagram abraçada com o cabeleireiro!
A Janete quer dar uma ajeitadinha no biquíni quando vir os fotógrafos de celebridades.
É, é essa a vida de sonho da Janete!
Mas, por enquanto, a Janete está juntando dinheiro pra fazer um book, um curso de modelo que ela pegou um papelzinho no metrô e é lá no centro.
Por enquanto, ela pega no serviço as 8h00 numa loja de roupas lá no Brás!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O ateu

Era ateu.
E gostava de deixar isso bem claro!
Fazia caras e bocas para qualquer devoção e para desespero da mãe.
Trabalhava na sexta-feira santa só para provar que não usufruía de feriados religiosos.
Mesmo no Natal fazia cara de quem estava ali porque não poderia estar em nenhum outro lugar.
Era ateu.
Chamava-se Francisco, mas não gostava da relação que faziam com o santo, preferia ser chamado de Chicão.
A mãe abominava.
Balançava a cabeça tão doída de filho tão ateu, mas a Neusa sempre a consolava:
- Faz caso não dona Isaura que toda comida que eu boto pra ele no prato eu benzo. Até mesmo o copo d´água que eu levo eu benzo! E embaixo do colchão dele tem um raminho benzido que eu sempre troco no domingo de ramos. Ele tá mais protegido que a gente!


segunda-feira, 30 de março de 2015

Vida que passa

Apagou a vela com um sopro fraquinho.
Virou-se bem devagar para não fazer ranger a cama velha.
Encarou o mancebo com a manga de camisa pendurada que por tanto tempo lhe sugeriu um fantasma. Já não tinha medo.
Fechou os olhos.
Respirou acompanhando o caminho do ar até onde foi possível.
Pensou na última vez em que esteve na praia, pé descalço na areia quente.
Lembrou que a mãe sempre perguntava sobre a oração antes de dormir.
Mais uma vez desobedeceu.
Santo nenhum dava valor às suas rezas. Não acreditava muito e quando desesperou e rezou também não viu muita diferença.
As coisas passam porque passam.
As coisas acontecem porque tem que acontecer.
Não há mistério.
Não há filosofia.
Sentiu o gato pular no pé da cama.
O cachorro espiou, como sempre, desconfiado.
A vela ficou pela metade.
A cama não fez mais barulho.
A manga da camisa sentiu a leve brisa e balançou. Não seria a última vez, mas já não assustava ninguém.
Quanto tempo demorou a darem falta do Osvaldo ninguém soube contar.

sexta-feira, 27 de março de 2015

O caminho de cada um

Recebeu um bilhete da professa comentando que um papo seria legal.
Ok.
Olha, eu percebo que a sua filha fica de olho nas meninas que se arrumam para o ballet. Não pensa em colocá-la na aula?
Sorriu enquanto pensava: mas que saco, pra isso me chamou aqui? Se eu pensasse em colocá-la eu colocaria.
A minha filha não dá para o ballet, completou o pensamento, mas quando falou a conversa foi outra.
Você acha? Vou perguntar se ela quer fazer uma aula para ver como é.
E assim ficou combinado.
Ai que desarranjo com os horários, os trâmites, os “quem pega, quem traz”, mas não podia passar uma imagem de mãe que não está nem aí.
Dias depois foi acompanhar a filha na aula experimental.
A vestiu com roupas possíveis, mas não comprou o “enxoval”.
E lá... Mãe, mas todo mundo veste rosa? A minha roupa pode ser azul ou amarela?
E quando a aula começou a graça era apagar com a ponta do pé a marcação a giz que a professora dedicada ia fazendo para marcar a coreografia.
O cabelo não dava para um coque porque era curto. Definitivamente não estava interessada.
Terminou a aula pendurada de ponta cabeça na barra.
Plié, petit jeté, passé, pointe tendu, ficaram ecoando enquanto o caminho seguiu a passos largos e pesados.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Remoção

Cresceu descalço e de calção. Comendo feijão com farinha, de tarde um pedaço de pão com margarina em casa ou na vizinha. De domingo um naco de carne. De vez em quando uma coca-cola comprada com moeda juntada.
A mãe sempre estressada de faxina em faxina no Morumbi.
O pai às vezes por três meses sem aparecer em casa, dormindo na obra em outra cidade.
A irmã caçula sempre na barra da saia da avó.
A escola um saco, merenda mais ou menos e professores desinteressados.
Mas cresceu. Com um tênis e outro, uma calça comprada no Brás.
O maior bem um carro de décima mão, para ajudar a chegar onde quer que alguém precise de serviços gerais.
Mas hoje, o carro pegou fogo na pista local da marginal.
Quando o guarda da CET chegou:
- E aí companheiro? Vai fazer o quê?
- Não sei não, meu celular nem tem crédito pra avisar a dona que eu não vou chegar no serviço.
- Não pode ficar aqui não
- Mas eu tô cansado seu guarda, vou ficar aqui até a vida me remover!

segunda-feira, 23 de março de 2015

Interpretação de Sonhos

A Marina não sonhava nunca ou sabe-se lá se sonhava e não se lembrava.
Mas era muito criativa a Marina. Por isso, quando a Sonia, a vizinha de mesa do escritório começou a fazer um curso à distância de interpretação de sonhos, resolveu se divertir.
Todo dia a Marina tinha um sonho para contar para a Sonia.
E todo dia a Sonia fazia anotações, refletia, quiçá fazia contas, consultava os professores e no dia seguinte apresentava sua análise, veredicto, interpretação e recomendação para a vida.
Naquele dia a Marina balançou a cabeça... Sonia, você não sabe! Eu sonhei que tentava salvar um pato na beira de uma lagoa. Ele tentava me bicar, mas eu estava de galocha não acontecia nada. Pensava que ele estava em dificuldades, mas de repente, saiu batendo aqueles pés engraçados e rebolando a bundinha para mim. O que será que isso quer dizer?
Anotou, coçou o queixo, ajeitou os óculos. Dia seguinte:
Marina eu usarei esse case para minha prova prática no curso. Vou falar em pontos pra você porque ainda não amarrei a conclusão, mas imagino que esteja ansiosa então vamos lá!
- Beira de lagoa: lugar que tem começo, meio e fim, diferente de rio que desagua, de mar que cruza o mundo, lagoa é finito – você precisa encontrar o seu lugar!!
- Pato: bichinho que não faz nada direito, não é especialista, não voa bem, não nada bem e em terra também é desengonçado. Marina, você precisa encontrar um foco na sua vida. Quer ficar para sempre nesse escritório? Destranca a faculdade, procura um estágio, descubra alguma coisa que realmente gosta de fazer!!
- Salvar o pato do quê? Você nem identifica direito os problemas, por isso fica girando sem rumo.
- Galochas: protege, mas dificulta a caminhada. Esse escritório aqui protege teu aluguel no fim do mês, mas não deixa você ir muito longe!
- O pato se foi rebolando! As pessoas não estão nem aí pra você Marina. Não esperam sua ajuda porque também não estão dispostas a te ajudar caso você precise.
Marina, Marina, esse sonho foi muito revelador!
A Marina ficou impressionada com os pontos e as considerações. Ela não tinha sonhado, mas era uma análise tão certeira que ela sublinhou a palavra subliminar na agenda e ficou sem palavras olhando para a Sonia que só balançava a cabeça fazendo bico. Orgulhosa do seu desempenho.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Marque uma hora com Dona Inês

Dona Inês tinha um dos jardins mais bem cuidados da rua, quiçá do bairro!
Conhecia toda a gente, era delicada e gentil a Dona Inês. Mas, há pouco, virara motivo de conversas.
Costureira por longos anos, com clientes chiques, resolvera se aposentar.
Mas qual o quê, ela não pôde ficar parada. Precisou arrumar uma ocupação.
A filha não deu muita bola para a explicação dos planos da mãe. Já tinha muito com o que se ocupar, separada, três filhos e um emprego que defendia com unhas e dentes.
Pois a Dona Inês, que era católica, começou a frequentar toda e qualquer igreja, cultos e afins.
Assembleia de Deus.
Igreja Presbiteriana.
Centro Espírita.
Universal do Reino de Deus.
Adventista.
Luterana.
Visitou centros budistas e foi a sinagogas.
Comprou livros e mais livros sobre o tema.
Quando encontrava as vizinhas e as clientes na padaria, na farmácia, no açougue, a conversa era sobre o tempo, a costura que faz falta, lhe perguntavam sobre os netos e quando se despediam... Era um tal de “endoidou”, de “essa tá com um medo da morte que só vendo”, “essa não tem mais Jesus no coração”, essa isso e essa aquilo.
E piorou ainda mais quando toda a tarde aparecia um rapazinho na casa da Dona Inês que alguns diziam que era um rapaz que mexia com internet e computador, essas coisas de modernidade.
Mas de repente o mistério se desfez. Dona Inês tinha outra profissão, com placa na frente de casa com número de celular e até endereço de site!
Dona Inês agora era Consultora de Religiões. No site tudo se explicava. Você marca uma consulta, conta tudo, mas tudo mesmo para a Dona Inês e ela indica qual a melhor religião, crença, igreja que você deve frequentar! Às vezes em uma única sessão já se sabe, em outros casos, depois de cinco ainda nada! Ela diz que alguns casos são quase impossíveis porque a comunidade rejeita o indicado! Ela faz um encontro de almas e crenças!
Sabe de um tudo essa Dona Inês e parece que agora tem mais clientes do que na época das costuras. A vizinhança não deixa ponto sem nó e fala sem dó da Dona Inês, mas ela é muito espiritualizada e tudo releva.

terça-feira, 17 de março de 2015

Reunião

Aurora quer se casar.
Tatiana quer comprar uma casa.
Helenice quer um emprego de maquiadora em uma emissora de TV, para viver perto das celebridades.
Olga quer que o filho pare de se drogar.
Glaucia quer que o chefe seja demitido.
Patrícia gostaria que a filha entrasse na faculdade passando em primeiro lugar.
Leila quer se separar.
Fabiana gostaria de visitar Paris com Olavo.
Sonia gostaria que o marido morresse.
Denise quer tirar carteira de habilitação sem ter que pagar.
Joana quer mudar de país.
Marina quer que o resultado do exame dê negativo.
Berenice quer a vaga de chef do restaurante onde trabalha.
Cecília quer engravidar.
Elisa gostaria de ganhar na loteria.
Ivone quer fazer uma plástica no nariz.
Neide gostaria que a sogra aceitasse viver em um lar para idosos.
Regina quer se ver livre dos remédios para dormir.
Deus distribuiu as fichas aos santos de devoção das meninas e encerrou a reunião dizendo que espera os relatórios finais na reunião do próximo ano.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Ah Alzira...

A Alzira era uma menina comum.
Tirando o fato de se chamar Alzira. Nascera no mesmo dia em que a bisavó e a avó, emocionada, sugeriu o nome.
A mãe não gostou, mas estava fraca de tanto esforço para parir menina tão pequena que nem opinou.
O pai que andava às turras com a velha, mas que precisaria dela nos cuidados da casa, da mulher e da filha, capitulou.
Ele, de fato, queria mesmo um moleque então tanto fazia.
Alzira não era feia nem bonita.
Nem magra nem gorda. Nem alta nem baixa. Uma menina comum.
Não tinha cabelos loiros cheios de cachos. Não tinha covinha num rosto redondo e rosado.
Alzira não tinha olhos azuis nem verdes.
Alzira não era nem muito morena nem muito branca.
Alzira chorava quando tinha fome, mas não fazia escândalo.
Quando começou a andar, a falar, quando deixou as fraldas, quando começou a escovar os dentes sem ajuda foi desaparecendo dentro de casa. Alzira não dava trabalho. Era uma menina comum, uma menina quieta.
Se as meninas da rua chamavam para brincar, levava sua boneca, sentava e brincava.
Se não chamavam, pegava sua boneca, sentava em um canto e brincava.
Alzira não dava trabalho. Alzira era uma menina comum, crescendo e desaparecendo sem brilho nenhum.
Na escola não era a primeira aluna, mas também não era das piores. Uma menina quase invisível. Por isso, a mãe levou um susto imenso quando na reunião de professores foi chamada na sala ao lado por uma diretora carrancuda que a advertiu: a Alzira precisa de freio! Pois ela levanta a saia e mostra a calcinha para os meninos e até mesmo para o professor!

sexta-feira, 13 de março de 2015

José Otávio

O menino não gostava do que tinha. Não gostava do que calçava, do que vestia, do que comia, dos poucos brinquedos que tinha. Olhava sem brilho para a casa que brilhava de limpa, mas que era pobre, muito pobre.
E porque não gostava de nada falava pouco, muito pouco.
Não reclamava porque sabia que a mãe choraria.
Não gritava porque sabia que chamaria atenção para si.
Era um menino encolhido em si mesmo. Mais olhos que boca. Mais ouvidos que nariz, mais queixo que testa.
Era um menino bem bonito escondido na sujeira das brincadeiras de rua. Bola, bate-lata, polícia e ladrão, pneu.
Mas não eram brincadeiras alegres. Ele arremessava a bola com força, mirando as costas de qualquer um. Gostava do barulho da bola ardendo a pele de quem gritava. Qualquer um.
Corria pra dentro quando a mãe chamava.
Tomava um banho porco sem esfregar atrás da orelha e no meio dos dedos dos pés como a mãe recomendava.
O menino não gostava do que tinha e a despeito disso foi crescendo calçado, vestido, alimentado, até começar a deixar de lado o caminhão de plástico que ganhava no natal.
A mãe se esmerava para ter um menino estudado, mas era pobre, muito pobre.
Mesmo encolhido cresceu. A mãe nem se deu conta do momento em que o perdeu. Batia com os punhos no moço da polícia que confirmava os dados.  O menino não gostava mesmo do que tinha, nem do nome, José Otávio.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Verbear

Pensou que pensava sem já fazer muito sentido.
Gostava de transformar as palavras em verbos. Qualquer palavra que já não fosse um verbo.
Verbear palavras é sempre tão mais fácil quando se sabe o que dizer, mas as palavras se escondem, escapam ligeiras. Elas não querem a responsabilidade de corroborar o que há entre o olhar e a boca, o fígado e o coração, as mariposas do estômago e o balançar dos pés.
Inventar palavras também já não é desse tempo que é tempo só de reduzir.
Não a pó, a vc, tá, tbém, pq. Palavras cortadas, magoadas.
Pensou que pensava, mas já não passava de um desfilar de sentimentos.
Embrulhado quando frio.
Esparramado quando calor.
Amar é mais. Pensar é pouco.
Verbear ajuda a transitar pela indelével tarefa de ser.