terça-feira, 28 de outubro de 2014

De assalto

Tinha um frio na barriga desde que nasceu.
Mas levou mais de cinquenta anos para entender que o frio na barriga era só medo do futuro.
O futuro nunca chega. A gente vai vivendo devagar e tem a sensação que o futuro vai acontecer como uma apoteose.
Como quando vamos dormir em noite de tempestade e acordamos com um céu claro, azul vibrante, sol brilhando de ofuscar o olho mais escuro que se pode encontrar.
Quando entendeu que o frio na barriga era medo do futuro começou a listar os “ses” e quase se desesperou.
E se tivesse largado os estudos, se casado com o primo do sítio e apenas criasse galinhas?
E se tivesse estudado inglês, alemão, francês e se tivesse feito jornalismo e viajado o mundo escrevendo histórias maiores.
E se tivesse tido filhos?
E se tivesse tido um gato, um cachorro ou mesmo um papagaio?
E se tivesse se atrevido a beijar aquele moreno na quermesse da igreja?
E se tivesse prestado um concurso público e tivesse um trabalho burocrático e silencioso onde o problema maior seria atualizar os carimbos no final do ano?
E se tivesse frequentado a igreja e se tornado uma voluntária?
E se tivesse se tornado uma nadadora de mar aberto?
E se tivesse aprendido a sambar e se trabalhasse o ano todo só pra juntar o dinheiro pra fantasia e pra passagem até o Rio de Janeiro em todo fevereiro?
Por mais que listasse os “ses” o frio na barriga não passava.
Quando esquentou foi de repente e ela demorou um tempo para entender que o menino que pedia a bolsa no ponto de ônibus tinha uma faca bem afiada.
Morreu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.