terça-feira, 31 de agosto de 2010

Acho que vou matar o Papai Noel


- Mãe, já sei o que vou pedir de Natal para o Papai Noel...
- Ah já? E o que é?
- Um Pain de pelúcia?
- Hum... mas pelúcia, você tem tantas, nós combinamos que...
- Eu sei mãe, pra ganhar uma pelúcia eu tenho que doar outras pelúcias e a gente pode fazer isso já no dia das crianças que é antes do Pain chegar
- Eu nunca vi nas lojas
- Mas não é de comprar, é de pedir pro Papai Noel
- Eu sei, mas é mais fácil pedir coisas que tem nas lojas porque senão o Papai Noel não dá conta de tanta encomenda
- Mas tem sim, tem no Japão, eu vi na Internet
- No Japão?

A conversa já não estava indo numa boa direção e ainda ganhou reforço da irmã:

- Não seja ingênua mãe, Papai Noel dá presentes por território, você pede e pronto!
- Não é bem assim não, e já expliquei que não é do nada que Papai Noel dá presente, os pais têm que pagar uma taxa, se não fosse assim, todas as crianças ganhariam presentes...
- Relaxa, até lá ela já mudou de idéia, não lembra que você já comprou coisas antecipadas no aniversário, no dia das crianças e na hora ela pediu outra coisa?
- E quem é esse Pain?
- É um vilão do Naruto
- Acho que Papai Noel não dá vilão não, é uma época de paz...
- É um brinquedo mãe, e ele não dá soldadinho e revolver de plástico?
- Acho que não dá mais não...
- Bom, eu já escrevi a carta e pronto!

Não sei não, tenho lido tanta coisa sobre os perigos da obesidade abdominal nos homens, Papai Noel tem isso, é obeso, tem certa idade e trabalha muito... Acho que vou matar o Papai Noel. Eu poderia explicar... Assim como o espanhol se foi, lembra dele, o seu hamster? O Papai Noel... Claro que para as crianças bem pequenininhas ninguém vai contar ainda, ele pode viver para sempre como o Saci Pererê, a Mula Sem Cabeça, mas agora os presentes virão da mamãe do papai...
Eu vou ver se conheço alguém que vai ao Japão ou se alguma loja de lá tem entregas aqui no Brasil!
Será?

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Campainha

Quando a campainha toca, chega alguma coisa.

Uma senhora de cabelo e vestido longos apresentando sua fé.
Um verdureiro apresentando suas alfaces frescas e sem agrotóxico.
Um amolador de facas.
Um menino vendendo rifa para a escola.
E, às vezes, uma história mais comprida.
- Moro do outro lado do bairro, tenho família, não passo necessidade, mas agora vivo uma situação mais delicada. Meu filho, adolescente, menino bom, estudioso, mas menino... veio descendo a rua do posto com a bicicleta... Sempre falei pra não fazer isso, que era muito perigoso, mas menino não escuta mãe, não é? Pois não é que caiu com a bicicleta moço? Um tombo feio, muito feio, bateu com o rosto no chão, perdeu a visão. Agora to juntando dinheiro pra fazer uma cirurgia lá em São Paulo que dizem que dá pra recuperar quase tudo. O governo não paga. Nossas economias não chegam. Então eu vou de casa em casa contando a história e arrecadando. Já temos quase tudo. Era vinte e dois mil, depois fizeram um desconto, caiu um pouco e agora já estamos quase lá. Faz meses que ele está em casa, esperando, não pode ir à escola, não pode fazer nada... E eu sou mãe, eu to tentando de tudo!
Uma mulher que recolhe garrafas e papelão para vender na reciclagem.
Um menino que entrega um folheto de supermercado.
Um homem que vende redes vindas diretamente da Bahia.
Uma menina que vende panos de prato bordados pela avó.
E, às vezes, uma história mais comprida.
- Pelo amor de deus, se eu estiver incomodando nem precisa me atender, eu to numa situação difícil, mas não sei da situação da senhora. Eu nem queria estar pedindo, mas já comecei a vender coisas em casa para ter o que comer. Vendi uma televisão, até um botijão de gás eu vendi esses dias. Sou formado ferramenteiro pelo SENAI, trabalhei dezoito anos com carteira assinada, mas quando sofri o acidente já estava há dois anos desempregado e o governo então não quer me aposentar por invalidez porque diz que não tenho direito. Ainda estou brigando na justiça, não me conformo, e os dezoito anos que trabalhei e contribui, não servem pra nada? Eu tenho cinquenta e dois anos, mas casei tarde, com quarenta e um e por isso tenho filhos pequenos, um de dez anos e um que vai fazer quatro por esses dias. Eu aceito qualquer coisa, só pra me aguentar enquanto não resolvo minha aposentadoria. Até pode ser algum alimento, mas é difícil carregar...
Usava muletas e não tinha parte da perna direita.
Debaixo de um sol de meio dia a pele morena e os olhos de um azul quase inútil.
Levou uns trocados e um boné.
Quando vivemos protegidos pelas guaritas e portarias de nossos condomínios sabemos menos da vida.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Reflexão


Para que tantos sapatos se a graça era mesmo ficar descalço e pisar a grama, a areia grossa, a terra molhada?

E um armário entupido de roupas se confortável mesmo era andar em mangas de camisa, uma bermuda feita de uma calça velha cortada na altura dos joelhos?
E para que manter tantas cartas amareladas naquela caixa florida, já desbotada, de vez em quando espanada da poeira inevitável?
Esse tempo já passara.
Não deixou nenhuma cicatriz, nenhuma dor de chorar, mas também nenhuma medalha, nem um ato de heroísmo para contar.
Andou para cá e para lá.
Viajou.
Conheceu pessoas.
Esteve em festas.
Deu festas.
Aparece em uma série de fotografias guardadas em casas fechadas, de histórias veladas.
E ele mesmo coleciona uma série de fotos e em muitas delas sorrisos de pessoas que já não se lembra quem eram, quem são e mesmo assim, as conserva.
Para que tantos discos, CDs, se a graça mesmo é ser surpreendido pela música que toca no rádio. Estilos misturados, cantores consagrados, cantores que recém surgiram na internet. Entre músicas de antigamente e músicas de amanhã a publicidade engraçada de serviços do interior.
Para que uma dúzia de ovos?
Para que uma melancia inteira?
Modernos supermercados que pensam nos que vivem alone, como é chic dizer.
Para que tanta pressa de chegar ao futuro se ele é agora e é assim?
Cheio de coisas que se pode comprar, pagar, ter, colecionar, trocar, mostrar e tão vazia de alguém pra simplesmente abraçar, conversar, rir ou apenas ficar calado olhando o sol se por.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Horário de Verão

Saiu do trabalho com o dia ainda claro.
Esse negócio de horário de verão é ruim de manhã, mas muito bom à tarde.
Sol gostoso.
Sexta-feira, ele merecia uma cerveja.
Parou no bar do seu Osvaldo e tomou uma, depois outra.
Entre uma e outra uma branquinha.
O bar estava cheio. Uma converseira danada. Ele estava quieto, observando.
A Ivoneide tinha chegado com o namorado novo dela.
O sangue subiu.
Tantas vezes lhe fizera agrado e nada.
No começo ele pensou que ela estava apenas se fazendo de difícil.
Até fez prestação pra comprar um relógio da moda pra ela.
Ela aceitou, ele a convidou pro forró.
Ela disse que não podia, que o namorado ia chegar de viagem. Representante de vendas.
Ele quis pedir o relógio de volta, mais valia dar pra mãe que logo ia fazer aniversário.
Encabulou, não pediu.
Agora estavam lá, de mãos dadas, entre amigos, conversa fiada, gargalhada.
Ele se encheu de coragem e foi lá.
Falou tudo o que tava entalado na garganta.
Quando falou do relógio, o namorado levantou e deu um soco só.
Ele foi parar no meio do bar, nariz sangrando, cabeça girando.
Foi quando os guardas entraram.
Tinham parado pra uma água, um café e olha só, que saco, uma ocorrência.
Todo mundo pra delegacia.
O namorado da Ivoneide, apesar de ser o agressor foi liberado antes.
Ele porque estava mais bêbado que sóbrio ainda ficou por lá um tempo.
Meia hora depois o delegado liberou.
- Vai pra casa, nem vou registrar a ocorrência por embriaguês e desordem, mas vou intimar o namorado da Ivoneide por agressão. E larga essa mulher pra lá, ela já aceitou presente de muita gente por aqui, mas gosta mesmo é de malandro.
Foi para casa caminhando, o ar fresco da noite melhorando as idéias.
Amanhã de manhã, sábado, vou lá no centro comprar um relógio pra mãe.
E no dia seguinte, contando todas as economias, não entrou na relojoaria, entrou no beco ao lado e perguntou:
- aí, sabe quem pode me arranjar um 38?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Cada um do seu jeito

Tive filha única por três anos e dois meses, sendo que em nove deles eu já carregava alguém.
Portanto, estava tão atarefada com esse movimento novo da minha vida que não fui prestando muita atenção nas soluções que fui encontrando.
Mas...
Sempre cantei para que dormissem e no meu colo.
Músicas que eu mesma inventava. Ou uma que decorava de algum CD infantil. O repertório não precisa ser grande porque eles gostam da repetição.
Colo não deixa ninguém mal acostumado.
Se estou em casa, de licença para cuidar do bebê, porque vou recusar meu colo, meu carinho?
Ninava e ninava muito e depois, colocava no berço, apagava a luz, fechava a porta e só voltava daí a três horas para amamentar.
Nunca dormiram comigo. Nunca chegaram arrastando ursinho ou travesseiro para se aboletar na minha cama.
Só nos finais de semana, com todo mundo acordado, para farrear.
E cresceram bem, sem nenhum trauma.
Quando demoravam a dormir, mais fácil eu me acomodar (mal) na poltrona do quarto delas do que levá-las comigo.
Nunca dei beijo na boca das minhas meninas, tampouco o papai.
E sim, dei palmadas no bumbum.
Agora que estão crescidas, os truques são outros. Se restou um só bolinho e vão dividir a regra é: uma corta e a outra escolhe. Ahah, assim, se aquela que corta tenta ficar com o pedaço maior não terá chances.
As perguntas inevitáveis: gosta mais de mim ou dela? Quem é mais bonita? Quem é mais inteligente? São seguidas de repostas que destacam o diferente e o melhor entre elas.
Porque afinal de contas, eu tenho uma única primogênita e uma única caçula.
Se tivesse um do meio, teria que pensar em algo.
Sugestões?

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Beatriz

O avô saiu e a menina saiu atrás. Mas ninguém viu.
O avô parou em um botequinho, montado na garagem de uma casa vizinha e pediu uma cerveja para refrescar a tarde quente, de senhor aposentado.
A menina entrou no botequinho sem que ninguém visse e escondeu-se embaixo de uma mesa de bilhar.
A tarde quente deixava o asfalto com cara de molhado.
A mãe da menina chamou por ela uma vez, duas vezes e começou a preocupar-se.
A avó sentiu o coração bater mais forte e também saiu a procura.
O avô soube que procuravam por ela e também circulou por ali.
Os minutos foram crescendo, os olhos foram se arregalando!
A menina ouviu ao longe uma sirene de ambulância e pensou quietinha em seu esconderijo:
- minha mãe chamou a polícia pra dar uma bronca em mim...
E encolheu-se ainda mais em seu minúsculo espaço.
A mãe telefonou para uns e outros.
A avó já estava passando mal quando alguém viu uma perninha e ela foi resgatada do botequinho.
A mãe apertou tanto seu bebê, beijou tanto a sua menininha que já estava mais do que assustada com a proporção da sua brincadeira.
O tio, que não estava em casa, chegou inocente da história.
A mãe da menininha lhe conta a história e pergunta:
- Onde estava? Ficamos tão nervosos?
- Na chácara do Marcelo
- Eu nem sei onde fica, não sei o telefone...
E a menininha...
- Eu sei, é lá onde tem aquele monte de cachorro estampado!!!
Dálmatas? Vira-latas de todas as cores? O riso foi substituindo as horas de angústia e a travessura virou história.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Açúcar ou adoçante?

E pode ser que o dia acabe azul, se for uma tarde de verão.
E o que podem ver aqueles que me perseguem, sem mesmo saber que isso acontece?
Não posso deixar de pensar no dia em que uma pergunta simples desmoronou toda a história:
- Oi, o que temos para o jantar?
- Nada
- Você não está bem? Preparo alguma coisa, saímos ou pedimos alguma coisa? O que prefere?
- Nada
- Mas o que há?
- Só estava esperando você chegar para dizer que vou embora
- Por que?
- Por nada, nunca deveria ter vindo
- Mas você não veio... Nos conhecemos, namoramos, noivamos, casamos, isso não é vir, é construir. Por que não descansa e amanhã falamos, você está nervosa, confusa
- Não, não estou nervosa, tampouco estou confusa. Você tem mania de dizer como estou me sentindo e nunca percebe nada
- Mas nunca me falou nada a respeito de como está se sentindo, a vejo sempre bem, alegre, nunca poderia imaginar que estivesse infeliz a esse ponto
- Por que nunca repara em mim
- Não é verdade, não seja injusta... Você se apaixonou por alguém?
- Não, apenas me desapaixonei de você
- Mas isso é natural, a paixão é o ápice, depois vira um amor tranqüilo
- Virou uma chatice, eu vou embora, já arrumei todas as minhas coisas, o que vou levar agora já está no carro
- Eu não entendo
- Eu não esperava que entendesse, apenas não faça nenhuma cena
- Eu...
Não era verão, mas a tarde estava azul. Às vezes a natureza faz algumas concessões. Não posso olhar para os lados, me olham como se eu estivesse sempre do lado errado.
Não faço mais perguntas. Apenas coleciono respostas lacônicas.
- Açúcar ou adoçante moço?
- Açúcar.
Ainda que nada mude o amargor da vida, eu me concedo cafés como os que eu tomava antigamente.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Sem álibi

Abriu a gaveta e começou a separar as roupas velhas.
Nem toda roupa velha precisava ir embora, mas era uma desculpa para limpar a alma.
Separou algumas camisetas, algumas meias, uma ou outra calça, um vestido para pensar. Uma saia.
Nunca usava saia. Tão charmosas as mulheres de saia, mas não ela. Sempre se achando com a silhueta comprometida.
Todas as fotos clássicas, mulheres de saia.
Fotos em preto e branco.
Peles tão brancas
Lábios tão carnudos.
Pernas tão longas e desenhadas.
Cabelos em cachos tão organizados.
Tudo o que ela não era.
A blusinha listrada safou-se mais uma vez.
Confortável com uma bermuda jeans em um sábado preguiçoso em que não se sai de casa.
A camisa branca.
O blazer azul... Esse sim.
Que idéia comprar uma peça dessa cor.
Cor de céu, que nunca combinou com nada, quantas vezes usou? Uma, duas, talvez?
Pensou em organizar o armário por cores.
Tirou tudo e foi esparramando na cama.
Tinha mais roupa do que pensava e quando pensava em se vestir não tinha nada.
Que coisa é essa que nunca temos nada e os armários andam sempre abarrotados de coisas que não servem para nada?
Aproveitou e trocou a calça, respingada de vermelho, por uma bermuta xadrez.
Sempre doara peças em campanhas de agasalho, para a auxiliar doméstica, para um ou outro que batera em sua porta.
Nunca foi de guardar bobagens, mas mesmo assim...
Precisava de uma blusa preta.
Nem formal, nem muito casual.
Seria uma boa idéia anotar em um papel tudo o que ia sentindo falta.
Um jeans escuro.
Uma camisa listrada.
A campainha tocou. Primeiro assustou, depois ponderou e resolveu não atender a porta.
Ninguém deveria vir visitá-la sem telefonar antes.
E se fosse o recenseador? Passaria depois.
Uma testemunha de Jeová arrebanhando ovelhas, logo iria embora.
Mas a campainha continuou tocando.
Espiou pelo olho mágico.
Uma mulher aflita, acompanhada de um soldado, gesticulava sem parar.
Voltou para as roupas.
O policial pediu que a mulher se afastasse e preparou-se para arrombar.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Poesia

Se me perguntar que cor, verde.
Se me perguntar praia ou campo, campo.
Se me perguntar animal, gato.
Se me perguntar sentimento, amor.
Se me perguntar arrependimento, rancor.
Se me perguntar palavra, ribanceira.
Se me perguntar número, sete.
Se me perguntar signo, touro.
Se me perguntar lado, esquerdo.
Se me perguntar flor, margarida.
Se me perguntar nome, nove letras.
Se me perguntar dor, palato.
Se me perguntar saudade, pai.
Se me perguntar amiga, muitas.
Se me perguntar livro, A Espera.
Se me perguntar inimiga, arrogância.
Se me perguntar doce, quindim.
Se me perguntar época, infância.
Se me perguntar quantos anos, 120.
Se me perguntar lugar, Besalu.
Se me perguntar lua, crescente.
Se me perguntar comida, pipoca.
Se me perguntar filme, Stanno Tutti Bene
Se me perguntar fruta, goiaba.
Se me perguntar irmão, Luis.
Se me perguntar irmã, três flores.
Se me perguntar sonho, de creme.
Se me perguntar roupa, pijama.
Se me perguntar em que momento, agora.
Se me perguntar bebida, água de coco.
Se me perguntar futuro, Isadora.
Se me perguntar..., tempestade.
Esparrama tudo, varre tudo, depois vai embora.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Perguntas & Respostas

- Por que algumas pessoas perguntam coisas se não querem saber a resposta?
- Como assim?
- Ah, sei lá, cara, tem gente que pergunta uma coisa e quando você vai responder a pessoa corta o papo ou vira pro lado e puxa conversa com outro cara
- Vai ver que não era pra responder
- Não entendi
- Ué, se a pessoa pergunta: oh bacana, como é que ta? Você só tem que responder tudo bem. Não é pra começar a contar que ta mal, que brigou com a namorada, que a conta ta estourada, que o chefe é um bundão e você quer trocar de emprego, essas coisas
- Ah tá, mas se a pessoa perguntou
- Perguntou por delicadeza
- Pra mim a delicadeza é ouvir a resposta ou então dá uma aceno, um sorriso e só... Eu tô sempre fora desses papos aí de convivência social
- São uns códigos estabelecidos e...
- Não tá escrito em lugar nenhum isso aí, quer dizer que se eu não entro nessa parada aí eu tô fora? Não me enquadro?
- Mais ou menos
- Daqui a pouco vão criar um nome bacana e chamar de patologia e o mal educado segue na mesma
- Você é muito exagerado
- Mas você viu só, eu perguntei uma coisa e você respondeu, eu falei outra, você rebateu, é assim que devia funcionar cara, não o maluco perguntar e quando você vai responder ele sai falando outra coisa
- Tem gente esquisita pra todo gosto
- Diálogo... Gosto da composição dessa palavra, das vogais e consoantes que se misturam. Fala entre duas ou mais pessoas... conversação... colóquio... troca ou discussão de idéias...
- É isso aí
- É isso aí mesmo, não tem paciência para a resposta não pergunta. Você não acha que é mais fácil entender se a pessoa é inteligente pelo tipo de pergunta que faz e não pela resposta que ela dá?
- Preciso de mais tempo para responder essa...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Maria Olinda

Vivia de devaneios e porque vivia de devaneios não percebia muita coisa ao seu redor.
Despertar não trazia marca de fadiga já que desperta tudo fazia para logo não fazer nada e apenas sonhar.
Vivia mais dentro dos sonhos do que na beira da pia lavando pratos.
E enquanto estendia a roupa no varal podia cantar repetidas vezes a estrofe de uma música qualquer.
Não percebia o tempo roendo sua vida como traças escondidas no fundo do armário.
E porque pensava que era feliz, era feliz e nada mais. Simples assim.
Sossegada entre o ter e o ser não se desesperava quando optava por ficar em casa, lendo um livro, a ir ao casamento de uma prima de terceiro grau. Mandava um presentinho e adeus preocupação com vestido de festa, salto alto e maquiagem, cabelo em coque banana no alto da cabeça.
O gato esparramado pelos tapetes da casa. O vira-lata agradecido, recolhido na feira, machucado, tão silencioso e caridoso, em sua caixa de papelão, rabinho sempre pronto para festejar.
E porque vivia de devaneios não se importava com a maledicência das vizinhas que cochichavam ao vê-la passar: lá vai a esquisita, não sabe um nada do que acontece nessa rua, se um dia ela precisar de ajuda, quem vai ajudar?
Ah, mas ela teria muita gente com quem contar!
Vivia de devaneios, mas era moça simpática e sorridente, nunca deixava de cumprimentar, do que não gostava era daquele costume de ficar no portão, inventando coisas enquanto o arroz queimava no fogão.
E era um sonho que se realizava.
Moça simples, mas bonita, casada, a casa arrumadinha, cheirosa, o marido sempre de quinze em quinze dias mais ou menos a visitar.
Quando escutava o ronco do caminhão era quando deixava os devaneios de lado para se dedicar, e o Amadeu só pensava que quando os guris chegassem aquele sossego todo ia acabar e era bem provável que outro emprego, de viagens mais curtas, ele fosse arrumar.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Minha irmã Laís

Quantos anos você tem?
O que vai ser quando crescer?
Essas são as primeiras perguntas que começamos a responder por nossa própria conta, já conscientes das respostas, mesmo que digamos que quando crescer seremos astronauta, pop star, um gênio, etc. Há varias opções de respostas.
Gosto mais da opção nenhuma das anteriores.
Hoje o politicamente correto é responder: vou ser feliz.
Depois as perguntas começam a se complicar, já não temos respostas para muitas delas até chegar a situações em que perguntas e respostas são ensaiadas, e quem errar fica em desvantagem no jogo.
Por que eu?
É uma pergunta que fazemos quando algo de ruim nos sucede.
Quantas pessoas será que se fazem essa mesma pergunta quando algo de muito bom lhes acontece?
Eu me pergunto isso às vezes. Do mais inútil-fútil ao mais complexo dos bens.
Por que eu estou tomando esse sorvete delicioso, nessa tarde preguiçosa, enquanto essa moça tão bonita tem que me vender o sorvete e atender um bando de adolescentes mal educados que fazem algazarra tentando confundi-la na conta para que alguém fique sem pagar?
Por que eu tenho uma menina de 11 anos que é um aprendizado diário de vida e além dela outra menina de quase 8 anos, criatura meiga, inteligente e perspicaz que olhando de tal forma tenho medo de acreditar?
E por que eu, justo eu, não consegui falar por telefone com minha irmã caçula que ontem fez aniversário? Em sua leonidade vai me dizer que soube que eu liguei, que não tem importância, mas por que eu, justo eu não insisti em outros números, em outros horários, em outros kilômetros que já separam há muito tempo nossas traquinagens?
Laís, vamos brincar de Vera? Faz de conta que eu te fiz um bolo de chocolate e te dei algumas contas especiais para fazer um colar!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Quando dói

Decidiu desistir.
E foi uma decisão tão forte que decidiu continuar.
Se era forte para parar, não seria forte para continuar?
E continuou.
Tentou uma vez mais.
Não estava exatamente como planejou mas seguiu.
Uma palavra, depois outra.
Uma frase, depois outra.
Subterfúgios. Fugidios pensamentos em espiral.
Por um sorriso no rosto e sair por aí.
Contar uma história velha, uma velha história que sempre diverte.
Não tenho seguidores, tenho amigos que me acompanham.
Não tenho um verso novo desde que o lado direito se rebelou.
O lado esquerdo revelou-se, ainda não supera mas não me abandona.
Já é hora.
Vou ali, mas volto já.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Desconforto

Com que cara vai me olhar se eu não tiver cara pra encarar.
Com que respiração vou ler o texto se não sei pontuar.
E como vou acenar aquele adeus que não espero se o braço não ultrapassa a linha da cintura.
Tudo já está escrito, não há porque se preocupar.
Se é assim porque me sento e não cai o pão?
Porque me levanto e não aparece na minha garagem aquele carrão?
É e não é!
Nem todo mano tem razão certo mano? Certo.
Agora tem mano até na seleção.
Não deu certo o rascunho que eu fiz.
Joguei no lixo sem rasgar.
Caiu na mão de um aprendiz.
Vi o meu rascunho em arte final se esboçar.
Tentei ignorar.
Sei por onde é que a boa coisa se mina.
Conheço essa mina e sei que ela não dá ponto sem nó.
Eu costuro. Tenho linhas compridas e coloridas, grossas, eletrizadas, linhas para qualquer pipa.
Nem toda pipa levanta vôo.
Nem todo papo é bom.
Nem todo texto tem lógica
Nem todo gato é mimado.
Nem todo cão é fiel.
Conheci um cara que conheceu um cara que conheceu outro cara que tinha um primo que tinha um cão que não tava nem aí pra ele.
Nem todo cão magro é desnutrido.
Nem todo ganso tem medo de pato.
Nem todo túnel tem luz do outro lado.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Apesar de Tudo

Tenho vontade de dizer o que não posso.
E o que posso dizer não tenho vontade.
Assim aprendo a silenciar.
Foram necessários tantos anos para isso, mas valeu a pena.
Fico. Observo.
Estou do lado de cá. Mas concordo com o lado de lá.
Entendo os olhares, entendo as entrelinhas.
Não quero defender o que está em minhas mãos.
Porque não acredito, porque não é verdade, mas é o que tenho.
Então apenas seguro.
Não admiro.
Não deixo cair nem machuco. Mas não posso acariciar.
Posso ver partir sem deixar cair uma lágrima.
Tenho vontade de concordar. Mas não de criar um problema maior do que o que já está estabelecido.
Então apenas mantenho olhos atentos.
O almoço que não tive.
O lanche que pareceu pouco.
A sobremesa que trouxe um alento.
Não quero estar aqui. Quero estar lá.
Mas não posso atravessar a ponte. Nem a passarela.
A passarela mais esquisita que já atravessei até hoje fica em Caracas.
Levou-me do Hotel a um Centro de Convenções onde ouvi Hugo Chaves fazer o menor discurso de sua vida.
Depois de danças locais o sorteio da Copa América.
Era uma quarta-feira, dia de San Valentín, um fevereiro de 2007 e eu queria estar lá, apesar de tudo.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Se for preciso

Não tinha pensado em nada, mas teria palavras caso precisasse delas.
O tempo passa e o conceito de tempo passa muda conforme o que se espera viver e o que já se viveu.
Quando estava esperando, o relógio parecia parado.
Quando precisava chegar e o trânsito não andava, o relógio parecia enlouquecido a marcar segundos e mais segundos, minutos e mais minutos.
Tudo é questão de ótica.
Tudo é questão de ponto de vista.
Tudo é questão de percepção.
Já se pegara rindo pelo mesmo motivo que a fizera chorar em outros tempos.
Um livro novo na cabeceira.
Um suco de sabor exótico no almoço.
Um sorvete no café da manhã.
Um passeio a pé pelas ruas do bairro.
Um final de semana feliz.
Sem nada mais do que um filme velho na TV.
O silêncio das palavras que não precisaria usar.
O momento certo em que diria não.
A hora exata em que diria adeus.
Aflita com a chegada desse instante.
E se apenas esperasse sem planejar e ensaiar chegaria mais rápido esse momento?
Não tinha pensado em nada, mas teria palavras caso precisasse delas.
Sempre salva pelas palavras. Mais pelas que não disse do que pelas que disse, atrapalhada que ficava quando calculava mal o tom.
O tom, a quantidade, a combinação entre verbos, advérbios, adjetivos, pronomes e artigos.
O inusitado da vida nunca lhe surpreendera para fazê-la rir, só para fazê-la chorar, mas jamais desistira de procurar a chave que altera essa rotação.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Tutto il meglio!

Misturo coisas que sei com coisas que não sei.
Assim aprendo algumas, esqueço outras e brinco comigo de quebra cabeça.
Se eu soubesse fazer um bolo de chocolate eu poderia surpreender as crianças em uma tarde fria.
Se eu soubesse desenhar eu poderia enviar um cartão para a amiga distante.
Se eu soubesse dançar eu poderia espantar a tristeza em uma tarde de sábado.
Se eu soubesse compor um verso eu poderia recitá-lo em um sarau.
Se eu soubesse nadar eu poderia atravessar o rio.
E se eu soubesse atravessar o rio eu poderia subir na goiabeira e disputar as frutas com os passarinhos.
Se eu soubesse cantar eu poderia apagar uma mágoa que ainda resta.
Se eu soubesse tricotar eu poderia escolher as cores do cachecol.
Se eu soubesse preparar panquecas eu poderia servir um chá para as amigas.
Se eu soubesse escrever um conto eu poderia fugir do meu canto.
Se eu soubesse falar francês eu poderia ir além do jê suis fini.
Se eu soubesse coser teria um vestido verde de flores para o verão.
Se eu soubesse dirigir eu iria muito mais longe.
Se eu soubesse cavalgar eu teria onde deixar a lágrima escorrer.
Se eu soubesse me maquiar eu teria menos olheiras para esconder.
Se eu soubesse ler as linhas da palma da mão eu teria feito outros planos.
Se eu soubesse fazer planos eu talvez não tivesse encontrado o meu caminho.
Tutto il meglio!
Tanti auguri per te!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma dúzia de anos


Hoje faz uma dúzia de anos que você se foi.
Eu queria que tivesse visto essa foto, te lembraria os velhos tempos da fazenda, ainda que esses homens não sejam aqueles tios, primos, irmãos, colonos.
Fazia parte da minha lição saber quantos cabiam em uma dúzia, em meia dúzia, você se lembra?
Somávamos juntos a caderneta do armazém e depois isso virou tarefa minha, assim como ir sozinha ao banco pagar a conta de água e de luz, para seu orgulho.
As coisas mudam tão rápido não é?
A última Copa que assistiu ficou com a França...
Em 2002 nós ganhamos e você não estava mais lá, no sofá, com uma bacia de pipoca.
Eu estava, acompanhada de uma menina que você não conheceu, porque ainda não tem uma dúzia de anos, tem apenas 11 e com um barrigão enorme que você teria adorado ver.
Desse barrigão saiu outra menininha, que dorme como você, de barriga para cima, fazendo o quatro com as perninhas.
Depois, em 2006, a nossa Itália foi quem levou a Copa e agora, em 2010, foi a Espanha. Eu torci pela fúria, já em abril/maio decidi que seria assim. Não imagina o que me atormentaram por isso, mas eu fiquei lá, dona de minha “taurinidade” e ganhamos. Foi a primeira fez que um país ganhou o Mundial tendo perdido o primeiro jogo. O primeiro título deles.
As meninas torceram pelo Brasil, as crianças precisam ser livres para aprender a escolher.
Fora os Mundiais muitas outras coisas aconteceram! Nossa família cresceu. Chegaram Gabriel, Maria Isabel, Felipe e agora, Isadora está a caminho.
Visitei muitos países, mas não recolhi mais nenhuma pedra para a sua coleção.
Doze anos. Hoje o dia está nublado, frio, a garoa cai com delicadeza.
Quando percorro as estradas no meu trajeto diário, lá está você, em cada sinalização, me perguntando: e essa placa? O que quer dizer?
E por que agora eu não posso ultrapassar esse carro? A resposta está no chão...
Seria cair no lugar comum dizer que tenho saudades então, todo dia eu invento uma história ou resgato uma em algum lugar da memória. Era assim que vivíamos, de histórias.
Conto para as minhas pequenas muitas vezes a mesma história, como você fazia comigo e o engraçado é que, como eu, elas também acham graça em cada repetição.
Ainda não contei para elas que, na escola da fazenda, você se sentava perto da janela para ficar de olho no alçapão e que uma vez pulou por ela para olhar o passarinho incauto que tinha sido apanhado. Talvez nesse final de semana.
Mas elas já sabem que viajávamos juntos e que você parava na beira da estrada para que eu pudesse recolher algumas flores de são joão, aquelas bem laranjas, que florescem por essa época do ano, para levar pra mamãe.
Uma dúzia de anos sem você. Suportáveis porque vive em mim pai e porque me ensinou que amor não tem tempo ou hora, não tem duração mesmo que um dos dois vá embora.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Personagem

Sou Sophie vivenciando uma velhice que não é a sua, desvendando mistérios que são maiores que os sonhos, acompanhada de Cabeça de Nabo, que mais intriga do que acompanha, que mais assombra do que aconchega.
Sou Sophie na caminhada solitária, nos encontros que desvendam vidas que podem ser vividas.
E sou Chihiro cercada de medo, desaparecendo pelas mãos de um caminho desconhecido, agarrada a um Haku que não define bem ou mal, apenas existe no mundo encantado dos rios.
E sou Mei adormecida no colo macio de um Totoro protegido da chuva por uma folha.
Por uma floresta que circunda e esconde. Por uma dor que adormece em um canto escondido dos sonhos. Um caminho, um atalho, um beco, uma vida inteira dentro de um buraco de amor.
E poderia ser Coraline adivinhando a outra mãe, o outro pai, o outro jardim tão cheio de flores, a outra cozinha tão cheia de guloseimas, a outra cama tão cheia de sonhos e poderia, como Coraline, trocar toda a perfeição que rouba a alma pela realidade que esculpe coração. E fígado eu acho.
E poderia ser Mogli e esconder a cara na barriga de Balu para aprender que o necessário somente o necessário o extraordinário é demais e enquanto Baguera não vem...
Eu sou Haru salvando gatos e despertando em Muta a história antiga que deveria ser esquecida. O corpo leve e o gesto pesado. O gesto leve e o corpo carregado de transformações. Os pelos que se eriçam. A novidade que não vem, a surpresa que espanta.
O mundo encantado que me encanta e me recolhe nas horas em que posso escolher ser outro alguém.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fim

Pegou o chapéu e saiu.
Não queria levar nada mais além do chapéu.
Pensou em alguns papéis, mas seriam inúteis.
Pensou em algumas fotos, mas o fariam chorar.
Foi saindo devagar.
Pensou em algumas músicas que cantavam esses momentos, mas não se achou personagem de um melodrama.
Hesitou por um segundo ainda segurando a maçaneta, mas saiu.
Não olhou para trás.
Não deixou bilhete.
A única proteção, o chapéu.
Para os cabelos que rareavam, para as idéias que explodiam.
Sem remorsos.
Sem medo.
Pegou o chapéu e saiu com a coragem que levou anos para reunir.
A escolha é sempre nossa.
O momento é sempre dos outros.
Não importa o rumo, importa o primeiro passo.
Não importa o primeiro passo, importa que seja em outra direção.
Não importa em que direção, importa que leve pra longe.
Pegou o chapéu e saiu.
Poderia ter dito tanta coisa.
Poderia ter esperado o domingo, o dia das tristezas.
Poderia ter tomado mais um copo d água.
Poderia ter respondido a única pergunta que se fez.
Mas não queria levar nada mais além do chapéu.
Nem papéis, nem fotos.
Conseguiu dizer até de repente, mas sabia que desapareceria para sempre.
Mal ouviu a porta que se fechava silenciosa atrás de si.