quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Agosto e eu

E hoje o que se viu Agosto, foram pessoas despedindo-se felizes de você.
Como se não passasse de um tempo feio, de uma nuvem carregada pousada sobre alguns.
Mas não, eu sei que não.
Foram 31 dias como outros.
Acordos foram feitos.
Dias lindos de sol.
Pessoas se casaram.
Crianças nasceram.
Alguns fizeram sua primeira viagem internacional.
Outros sua terceira lua de mel.
Sabe Agosto, quando algo não vai bem, é duro procurar aqui dentro pela nossa alma que fica refém.
Então buscamos longe um culpado e por esses dias, pelo meado de cada ano é você Agosto, mês de mau agouro.
Para alguns é o culpado.
Para outros pode ser que seja eu!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Aniversário

fui encontrada
e depois encontrei
todo dia novo
um novo dia para festejar
andar juntos
de mãos dadas ou 
do outro
lado da calçada
não há um jeito certo de viver
há um eterno conhecer
coisas de que gostamos mais
coisas de que gostamos menos
o mesmo time de futebol
eu e todos os meus livros
você e todas as suas revistas e manuais
os filmes, as músicas
o vinho 
depois uma menina
e depois outra
a vida crescendo ao nosso redor
quando você nasceu
eu já tinha quatro meses
mas nem por isso eu sabia
mais da vida
mas sei hoje que sem você
ela não teria a graça que tem,
José

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Pedaço de poema

e se eu te disser uma palavra dura
saiba que ela não dura mais que alguns segundos
que depois ela me castiga a alma
mais do que qualquer olhar frio e gesto contido
e se eu te disser que uma palavra cura
pode acreditar porque tenho cicatrizes que posso mostrar
mas se eu ficar em silêncio
quando o silêncio pode ser devastador
então se afasta porque não tem amargura maior
que o abandono das palavras em noite escura
se eu te disser palavra dura
saiba que em mim não cura
a tristeza do teu olhar

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Papo de bar

- Escuta só, a minha lista.
O Armando quer livrar-se da corcunda, mas parece que não há jeito.
A Maria Clara reclama muito da perna esquerda, centímetros menor do que a direita. E não é estética, é porque dói muito as costas.
O Feliciano tem um dedo faltando, mas nem pode reclamar, foi uma brincadeira de criança na serraria!
A Darci sofre com o papo que lhe deixa com aparência de muito mais velha do que realmente é.
- Que lista é essa?
- Lista das pessoas que fui entrevistando Brasil afora para o meu trabalho de antropologia.
- Para concluir o que?
- Ainda não conclui nada, mas vou traçar um paralelo com os que nascem perfeitos e lindos.
- O conceito de perfeito é mais fácil descrever, mas como vai trabalhar "lindos"?
- Vou dividir em grupos, misses, modelos, pessoas comuns, atletas e por aí vai.
- Vai mesmo, vai bem longe.
- É.
- Olha, desculpe a sinceridade, mas eu não sei se esse seu trabalho vai servir para alguma coisa.
- É, talvez não. Aí podemos por os dois juntos na estante da sala.
- Que dois?
- O meu, de antropologia - "A boniteza encantadora dos feios" - e o seu tratado sobre nada...
- Hum... Melhor pedir outra cerveja.
- Ótimo, mas depois dessa vamos porque não quero perder a hora amanhã.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Adulto sozinho

Apanhou uma rosa, machucou a mão.
A mãe sempre dizia para não apanhar as flores.
Mas a rosa estava tão linda e fresca naquela manhã de sol insinuante depois de noite chuvosa que não resistiu.
A mãe já não estava mais.
Caminhou apressado para não perder o sinal verde e atravessar em segurança.
Tinha mesmo era vontade de se sentar em um banco de praça e olhar os pombos.
O pai implicava com os pombos.
Lembrou-se de uma casa em que morou e que uns pombos vieram se alojar no alpendre.
Uma confusão!
O dia estava tão lindo.
Um pecado alguém ter que se enfiar em um escritório em dia tão lindo!
Quem será que definia quem nasceria em cidade grande, pequena, em cidade de praia, em cidade de montanha?
Deus, destino, acaso?
O acaso era o mais poderoso senhor do tempo.
Estava sorrindo com seus pensamentos quando a senhorinha que também esperava para atravessar a rua elogiou a rosa.
Despertou.
- Então é toda sua, ela estava mesmo à procura de outra flor!
A senhorinha, cabelo quase azul, tentou recusar mas não resistiu.
Ele ficou tão vermelho que atravessou a rua quase correndo e quase sem ouvir o singelo agradecimento.
Ele não saberia mesmo o que fazer com uma rosa em escritório tão frio e inóspito.
Ficou pensando se aquilo que dissera poderia ser considerado poesia, depois não se importou mais com isso e apenas se desculpou com a mãe lá no céu:
- Viu Dona Eulália? Foi por uma boa ação!
E seguiu seu destino de adulto sozinho em cidade grande.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Tipo Sanguíneo

- Você sabe o seu tipo sanguíneo? O meu é O negativo.
- Sei lá, o meu é tipo ruim mesmo!
- Isso não existe e você precisa saber, é importante!
- Negativo não é ruim? Melhor não saber que saber que nem positivo é.
- Não é assim que funciona, como é bobo, não aprendeu na escola não?
- Não lembro, devo ter colado nessa prova.
- O negativo é muito legal, um médico me disse que ter O negativo é como ser cristão, é dar sem nunca receber...
- Como assim?
- Porque posso doar para todo mundo, sou doadora universal, qualquer outro tipo pode aceitar o meu, mas eu só posso aceitar igual ao meu. Tenho que achar outro camarada como eu se acaso eu precisar.
- Eu nem fico pensando nessas paradas não, credo!
- Eu penso de vez em quando.
- E você doa, já que é tão boazinha?
- Não, eu não posso, eu não peso 50 quilos.
- ãh?
- É, tem regras, tem peso certo, não pode ter tido algumas doenças, uma série de coisas.
- Você não pesa 50 quilos?
- Não, eu ocupo bem pouco espaço nesse mundo.
- Não tem aquela parada de que perfume bom está nos frascos pequenos? Pode usar isso pro seu sangue... Só rindo mesmo, cada papo de maluco.
- É, mas o tempo passou e a ambulância chegou... viu, você até esqueceu que está todo estropiado aí, larga esse capacete que vão te por na maca. Boa sorte e mais cuidado da outra vez!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Inveja

inveja. [Do lat. invidia] S.f. 1. Desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. 2. Desejo violento de possuir o bem alheio. 3. P. ext. O objeto da inveja: Era ele a inveja dos outros passistas, pela agilidade e elegância dos gestos.


A inveja é pecado.
Um dos 7 pecados capitais.
A inveja na forma de ciúme é proibida nos Dez Mandamentos da Bíblia.
E mesmo sabendo disso, eu confesso que tenho inveja.
E confesso porque acredito na remissão dos pecados.

Tenho inveja de um gesto. Um gesto simples e efetivo das mulheres de cabelos compridos.
Elas levantam as mãos, juntam os cabelos em um rabo de cavalo e glória das glórias, transformam aquele apanhado de cabelos em um coque que magicamente fica fixo com o mesmo cabelo. Sem presilhas, uma espécie de nó. Um encanto.
Um gesto.
Um movimento suave, muitas vezes descompromissado, como a mãe que mesmo sem interromper a conversa segura um menino pelo braço e interrompe o corre corre que atrapalha as visitas.
Tenho inveja desse gesto.
E não, não se trata de deixar o cabelo crescer, já que gosto dos cabelos curtos, cortes desestruturados, quase desalinhados! Não adianta.
Tenho inveja de quem é hábil no gesto de prender e dominar os cabelos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Vale um like, não vale?

Sou do tempo em que se esperava nove meses para saber o sexo do bebê.
Isso porque muitas vezes eram três ou quatro para confirmar que estavam mesmos grávidas as mulheres.
E, por isso, muitas vezes os nomes só eram escolhidos após o nascimento do pimpolho.
Hoje em poucas semanas se sabe tudo. Se é menino, menina, que cor de quarto vai ter, que quantidade absurda de roupas compradas em Miami para todas as estações praticamente até os dois primeiros anos.
E Miami não vai sair do lugar, até onde sei das previsões de alterações naturais.

Sou do tempo em que esperávamos uma ligação e se não estivéssemos em casa a esperança era de que o pai não atendesse o telefone, caso fosse um namoradinho novo.
Os telefones tinham disco, gancho, local de destaque na casa e bloquinho e caneta para os recados.
Era uma unidade familiar.
Bem depois as secretárias eletrônicas foram uma revolução, uma inovação!
E hoje, os telefones são unitários, cada um tem o seu e ele até faz chamadas, mas o que mais importa é que ele faz muitas outras coisas, uma lista enorme, que nem vale a pena mencionar.

Sou do tempo em que se esperava receber cartas com notícias da família. Cartões postais dos viajantes.
Não se esperava receber um telegrama, na maioria das vezes eles traziam más notícias.
Hoje o correio eletrônico circula poderoso e no fundo assustado com os programinhas de comunicação instantânea, as redes sociais e que tais.

Sou do tempo em que esperávamos muito para ver as fotos feitas em um passeio ou um momento especial.
Esperar o filme acabar e parecia uma eternidade... 12 fotos, 24 fotos. Depois levar para revelar, esperar alguns dias e finalmente desfrutar o prazer de ver as imagens. Nem todas boas... diga-se de passagem.
Hoje é tudo digital e instantâneo e as fotos ficam melhores e as muito ruins são deletadas.

É, sou do tempo em que deletar não era um verbo, por isso não deleto minhas memórias, eu as armazeno de um outro jeito e compartilho e por isso vale um like, não vale?

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

DNA

Meu pai anotava em caderninhos coisas do cotidiano. Ainda temos um em que se lê a data em que ele levou meu irmão para cortar o cabelo pela primeira vez.
Também eu vou anotando coisas do cotidiano. As meninas cresceram depressa demais e já não dou conta.
Visito anotações para fazer descobertas e constatações.
Como são tão diferentes sendo tão iguais quando dormem!
Minha primogênita sempre com a argumentação em ordem e o queixo levantado.
Em um passeio fora da cidade, depois de uma traquinagem e uma bronca se sai com essa:
- Ah, é? Tudo bem. Não vou voltar com vocês, vou procurar uma família nobre pra mim! 
Aos quatro anos!

Já a minha caçula, olhar de lado, voz mansa, bastava pedir alguma coisa que a resposta fosse não e imediatamente ela mesma completava:
- não, é mais tarde!
- não, é amanhã!
- não, é depois!
Aos quatro anos! Fazendo parte da solução. Apaziguando. Evitando confronto.

Mesmo DNA. Mesmo leite com chocolate. Mas livros diferentes nas estantes, brinquedos diferentes. Mesmos filmes, mesma assinatura de revista infantil. Mesma escola, mas atividades diferentes.
Mesmo amor.
Galhos de minha árvore genealógica.
Só espero que cresçam e floresçam na medida exata do que entenderem ser a felicidade.
Não precisa mais.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Medo de algumas respostas

Pensando bem, às vezes é melhor não pensar
O recado que não chegou completo,
A lista que não saiu
A indiferença da caixa do supermercado - coitadas daquelas mulheres transformadas em box!
O ser que com duas pernas boas para na vaga do deficiente.
Há caminhos para escolher, por que simplesmente não ser escolhida
sem ter muito o que pensar?
Se há escolha, há renúncia
Se há renúncia, haverá sempre um ponto de interrogação: e se?
E, pensando bem, é melhor não pensar.
Os esforços que não resultaram,
o sorriso que foi demais,
o afeto que foi de menos,
o cansaço de ter que ter e fazer e acontecer, quando simplesmente
uma porção de galinhas ciscando no quintal era tudo o que se poderia ter.
Pensando bem, quando o coração estiver assim, apertado, talvez seja melhor não escrever.

Talvez bastasse ler Fernando Pessoa...
"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretem. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."

E os meus rabiscos, o que será que são? Quem não quer ouvir mentiras, que não faça perguntas...
Às vezes, é melhor não pensar!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Ezequiel

Era melhor naquilo que o mandavam fazer. Quando já estava "aprendido" decidia fazer do seu jeito. E era aí que a coisa desandava.
Ele se achava criativo, mas não para começar do zero. Depois que alguém lhe dava uma direção aí seguia seu próprio caminho - mas já concluíra que acabava voltando sempre na contramão.
Fazia planos, idealizava, se concentrava, se imaginava tão diferente!
Não se reconhecia no espelho. Era tão melhor em seu conceito - tão brilhante em suas expectativas e tão opaco em suas realizações.
Foi ficando cada vez mais quieto, cada vez mais cabisbaixo, cada vez mais amuado e mesmo quando o verão chegou nada o alegrou.
Era melhor naquilo que o mandavam fazer e então ordenou recolher-se. Nunca mais foi visto o Ezequiel, de tal forma que nem soube que a Dolores gostava dele, daquele jeito mesmo, simples, bem homem pra casar.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Laís

Aniversário da minha irmã caçula.
Já passou dos cinco anos, dos dez, dos vinte, dos trinta e já passou...
O tempo corre feito um rio, indiferente ao que fica pelas margens. Flores florescidas ou já envelhecidas.
Pedrinhas ou pedregulhos.
O rio segue seu caminho indiferente aos que o atravessam.
O rio apenas é.
Mas nenhum rio é capaz de lavar as minhas memórias.
O bebê que chegou naquela tarde de sol era o bebê mais lindo que eu já vira.
E assim cresceu. Cabelos aloirados, pele macia.
E embalava todas as brincadeiras que nos permitiram criar laço tão forte.
Vera.
Casa montada no quintal.
Caçadas no pé de abóbora.
Jogo de tênis com raquetes de plástico.
Salada de couve colhida da horta.
Travesseiros vestidos com camiseta transformados em bonecos gordos.
Eu só não podia fazer nada quando ela, arredia e leonina, desafiava minha mãe porque não concordava com a hora do banho. E já limpa e cheirosa passava terra na barriga para depois limpar-se na colcha da cama, impecavelmente arrumada.
Nessa hora, toda minha travessura ficava apenas assistindo pelo menos uma confusão em que eu não era o foco das atenções!
Minha irmãzinha nunca cresceu aqui dentro do meu coração!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Discretione

O mínimo que podia fazer era ficar quieto e esperar a poeira baixar.
Sacou o caderninho do bolso e anotou: procurar a origem da expressão "esperar a poeira baixar".
Ficou quieto na cadeira e só a arrastava de leve para seguir o raio de sol.
Lá dentro alguns andavam de um lado para outro.
Se isso não resolve, porque tumultuar?
Outros ficavam sentados, mas perguntando como foi, com os olhos espantados, a boca aberta e a mão tentando esconder os dentes mal arranjados.
Quando a poeira baixasse ele talvez diria o que sabia.
Ainda não decidira se espontaneamente ou apenas se fosse chamado a uma sala e interrogado.
O fato era que não tinha nenhuma participação, a não ser saber mais ou menos o que se passara justamente por conta de sua discrição.
Anotou de novo no caderninho: verificar se em latim é o descriptione ou discretione... mas no fundo sabia que era o segundo, escrever no bloquinho era um prazer irresistível e por isso sempre arrumava alguma coisa para anotar.
Estava nisso quando a Diretora Eleonora sentou-se a seu lado e entre amorosa e severa afirmou:
- Seu Luigi, sabemos que sabe algo, pode nos contar? É para o bem dele.
Sem pestanejar ou planejar respondeu:
- De fato! O Agnelo conheceu uma senhora muito distinta pela internet e fugiu para morar com ela, mas não sei  mais nada, como se chama, onde mora, ele só me disse que ainda tem setenta e nove anos, é capitalizado e que ninguém pode obrigá-lo a ficar aqui. E eu concordo. Ele tem saúde e juízo.
- Obrigada, vou falar com o filho dele, mas eu sabia que essa história de acesso a internet ainda ia me arrumar confusão!
Ele balançou a cabeça e anotou no bloquinho: aprofundar conhecimento sobre a internet.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Tarde para uma tarde

Ficava olhando para o pedaço de papel em cima da mesa e depois deles buscava os lápis que descansavam na tarde morna, tão organizados no porta-lápis preto.
Sentia que as palavras rondavam sua cabeça.
O silêncio acariciava a mão, tudo era um convite para escrever um poema.
Estava com medo dos poemas.
Eles andavam carregados de mágoa.
As palavras que se juntavam nada mais faziam que desnudá-la.
Deixar aparentes todas as dores, toda a decepção, toda a espera sem sins nem nãos.
Estava com medo das palavras.
Indomáveis.
Inquestionáveis quando se arranjavam em frases que poderiam até parecer desconexas, mas que revelavam toda a conexão de uma vida quase sem alegria.
Ficava olhando o pedaço de papel. São arrogantes os papéis quando desafiam.
A janela fechada. O vidro tão limpo. A mesa tão grande para tão pequena figura.
O azul fechado da tarde quieta.
Rabiscou um poema, mas não sabe por onde ele anda.
Talvez tenha seguido um rumo diferente, talvez esteja feliz!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Eu e a alma das coisas

Não gosto de ver pequenos pedaços de sabonete.
É um jeito indigno de terminar uma vida tão cheirosa.
Pedacinhos desgarrando-se da grande barra que foram e derretendo sozinhos no ralo indiferente.
Água fria ou água quente, não importa.
Tenho pena dos pequenos pedaços de sabonete. Os líquidos me fazem sofrer menos.
Assim como sofro menos com os tubos cheios de creme dental.
Dói em mim apertar tanto plástico já tão magrinho em busca de uma última porção.
Amassado, desfigurado, já ao lado do substituto, saudável, imponente, sem saber que seu futuro será o mesmo.
A arrogância da juventude em tudo se vê.
E também me apiedo do gomo da tangerina que cai sem ser degustado.
Logo alguém grita: joga no lixo, ah deixa pra lá, olha o cachorro gosta! E o destino daquele que se desgarrou se transforma.
Tanto tempo flor em botão, pequeno fruto, chuva e sol, colheita, longo caminho para nos deliciar e enquanto os irmãos gomos cumprem a função, se desgarra e termina assim, humilhado.
Não gosto dos destinos alterados. Não gosto dos destinos premeditados. Não gosto dos destinos cumpridos por inércia.
Eu tenho a alma das coisas, mas pouca gente acredita em mim.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Revés

Podia sentir a brisa fresca
enxergar o azul do céu sem manchas
apenas com nuvens leves para não sobrecarregar.
Podia cheirar a rosinha que nascera
sem cuidados no canteiro quase abandonado e
condoer-se do seu rosa pálido.
Podia sentir a água límpida lavando a garganta
porque palavras não se lavam.
Palavras se levam no coração como boa recordação
e no fígado para os momentos de raiva.
Toda gente tem momento de raiva.
Toda gente tem momento de alegria.
Toda gente tem momento de silêncio.
Toda gente tem momento de amor intenso, desses que até doem.
Toda gente tem momento de  tristeza.
Toda gente tem momento de fé.
Mesmo os que não acreditam em deus nenhum tem fé nessa sua descrença
de tal forma que tem mais fé do que alguns fiéis.
Toda vida tem um viés.
Todo caminho tem um atalho.
Toda subida tem um platô de descanso.
Toda saudade tem um momento de não lembrar.
Toda poesia tem um quê de mal versar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Otávio

Preferiu caminhar pela calçada do lado da rua que tinha sol.
Frio de final de inverno.
Céu tão azul, nenhuma nuvem para desenhar nada.
Mas em dado momento era preciso atravessar.
Parou e esperou o sinal verde.
A luz piscou, as pessoas caminharam apressadas, mas ficou ali parado.
Por alguns segundos não soube quem era nem para onde ia.
O estômago formigou de medo.
Virou a cabeça para a direita e para a esquerda tentando perceber se alguém o achara estranho.
Concluiu que estava quase invisível, até porque na correria do dia a dia os encontrões eram comuns.
Resolveu voltar.
Preparou um chá e ligou para o meio-irmão.
Era hora de pedir ajuda.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Onde é que vende?

Há 13 anos o coração do velho Nicolino jogou a toalha e parou de bater.
Em uma semana tudo aconteceu e ele se foi.
Quando teve o primeiro ataque cardíaco não pensei em nada, apenas tomei um avião e fui vê-lo.
Fiquei olhando para ele naquela cama de hospital, pálido, com os olhos azuis ainda brilhantes e falamos apenas de coisas interessantes.
Levei algumas revistas.
Comentei que traria novas pedras para a coleção de cidades de Portugal para onde eu iria em férias.
No final de semana voltei para casa.
Uma semana depois refiz a viagem mais triste da minha vida.
Pronto. Isso é tudo.
13 anos são suficientes para relembrar do momento doloroso.
Agora ficarão apenas as coisas boas e inusitadas que ainda me espantam e me enchem o coração de alegria.
Como o dia em que fomos juntos ao colégio em Presidente Prudente, recém chegados de Tupã, porque a diretora havia dito que não tinha vaga porque não tinha cadeira... E ele me fez acompanhá-lo para ouvi-lo dizer:
- bom, imagino que quem ensina 28 alunos pode ensinar 29, principalmente porque a minha filha aprende rápido, pode ver o histórico da outra escola, e se não tem carteira, não tem problema, eu compro uma, onde é que vende?
Na volta as aulas, lá estava eu, estudando no melhor colégio recomendado... público, obviamente, e nem foi preciso comprar uma carteira!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Eu, formiga

Pudim de leite com furinho e caldinho que enfeita o prato.
Quindim.
Doce de leite com coco.
Cocada.
Sorvete de chocolate com laranja.
Sorvete de chocolate com menta.
Morango com chocolate.
Suspiro.
Doce de mamão.
Doce de abóbora.
Bolo de milho.
Um de cada vez.
Uma porção pequena.
Um doce depois de alguma comida que não importa muito qual é.
Um docinho qualquer depois de uma longa reunião.
Um pedacinho qualquer depois de uma tristeza profunda.
Porque a cabeça dói.
Porque esqueci de gravar um programa.
Porque não deu certo um qualquer coisa que eu programei.
Indulgência.
Dizem que tenho paladar infantil.
Qual o quê, isso é coisa de psicólogo.
Tenho paladar caipira que gosta do gosto decidido, de um doce bem doce e bem generoso, que se põe no centro da mesa e que todo mundo pode comer a porção que lhe cabe.
Eu, formiga.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Histórias mal contadas

Descobriu depois de muito tempo que não tinha nascido daquela mãe.
Descobriu porque a irmã, que não era irmã, descobriu e fez um escândalo e aproveitando-se da situação a história verdadeira apareceu para todos os envolvidos.
Não ficou chateado como a menina.
Não, de maneira nenhuma. Ficou apenas agradecido por ter sido acolhido por aquela família que tinha uma casa confortável, piscina para o verão, bons cobertores para o inverno e a geladeira e os armários repletos de boa comida.
Escola, passeios, brinquedos.
Ela sofreu. Encolheu. Quis encontrar sua verdadeira história.
Mas nada havia para satisfazer essa vontade. Não por maldade, apenas porque as coisas foram acontecendo.
Tão diferentes em suas reações e tão iguais em suas origens.
Tinha as bonecas mais bonitas que já vi e adorava brincar com os meus cacarecos, queria levá-los embora para meu desespero.
Histórias mal contadas. Vidas entrelaçadas. Nada mais se descobriu.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Gilson

Era palhaço o Gilson.
Não se pode dizer que de segunda categoria, mas palhaço.
Animador de festas em buffet infantil, contratado para festas em escolas, no shopping no dia das crianças.
Até em comícios o Gilson já trabalhou.
Palhaço.
De um mau humor e uma cara amarrada incompatíveis com a profissão de palhaço.
Mas um personagem.
O Gilson queria mesmo era ser ator. Fazia peças na escola e depois teatro amador.
Sonhava com o teatro profissional, depois a televisão, cinema, entrevistas em jornais e revistas e uma biografia para a eternidade.
Pois nada disso se concretizou e ele ficou apenas sendo palhaço.
No bairro ninguém sabia.
E a mãe e a irmã não se arriscavam a comentar, ai esse mau jeito do Gilson podia acabar não se sabe como.
Especulações, muitas.
Uns diziam que o Gilson era travesti, que saia muito aos finais de semana, sempre calado e carregando uma bolsa de viagem.
Outros achavam que ele era investigador de polícia, desses que nem podem dizer o que são porque correm riscos.
Havia até os que achavam que o Gilson era prostituto de mulheres velhas e ricas.
Nunca perguntavam nada a ele. Quando ia à padaria, ao açougue, à farmácia. Cumprimentos rápidos e secos para manter o mínimo de cordialidade e nada mais.
O Gilson andava chateado, cansado, sem perspectivas.
No último sábado trabalhara das sete da noite até as dez horas. Voltando para casa, com frio, entrou no bar e tomou um conhaque. Depois outro.
Foi o que bastou para deixá-lo meio tonto, esquisito, já que nunca bebia. Foi para casa.
Na rua, ainda meio tonto, esbarrou em um adolescente, parte de um grupo. O menino gritou:
- hey palhaço!
Ele apenas pensou: é, é o que eu sou.
E seguiu seu caminho sem arrumar confusão.
Um palhaço, o Gilson.