quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Estado Sólido

Voltar ao estado sólido do amor.
Em um tempo em que não há estado melhor para se morar.
Pensar que já se passou da metade, que nenhuma metade é pior que um terço e que nada supera tudo que pode ser inteiro.
Inteiramente concentrada no que poderá ser é um estado sólido que nos impede de ver o que está sendo.
É agora, é aqui. Em cada segundo que se despede do inverno e se prepara para a primavera.
Coitada da primavera. Estação linda que se abre em flor, mas que no fundo, no fundo, sofre de uma ansiedade de passar rápido porque todo mundo, no fundo, no fundo, espera o verão.
Voltar ao estado líquido do choro que lava a alma.
Voltar ao que já foi na doce lembrança do porta retrato empoeirado.
Que imagens têm do passado?
Que cheiros, que cores, que amores?
Voltar ao estado de não estar.
Sentar e se emocionar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Esvoaçar

Não fosse o tempo que não te vejo deixar um rastro em minha memória eu não saberia mais que você existiu.
Tudo não passou de um pedaço da minha história. Um quadrinho talvez. Uma mudança de página e de repente um grande fim escrito no meio.
A foto amarelou.
A rosa murchou.
A janela bateu com o vento e um pedaço da cortina ficou gritando por socorro no alto do décimo quarto andar.
O livrou caiu, o marcador se perdeu e a história aproveitou para embaralhar-se.
Não fosse o tempo e tudo se resolveria.
O céu tão azul e límpido que não dura para sempre estaria até hoje no ar.
Memória hermeticamente fechada.
Um rastro na minha memória.
Estivesse você aqui e não teria um rasgo no meu querer.
Uma dor no peito.
Um amargor na boca.
Um tremor nas pernas.
Um novo pedaço de história pode ser escrito.
Uma aquarela no lugar da foto.
Margaridas no vaso.
Janela calçada para não prender a cortina, deixar a vida esvoaçar.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O atrevimento dos verbos

Gostar é um verbo atrevido.
Ele não nos deixa amar, quando muito nos deixa apreciar, aprovar, achar saboroso, agradável.
É transitivo indireto e, por isso mesmo, pede sempre um de para especificar.
Podemos gostar de pipoca, de sorvete e de maçã.
Podemos gostar de dançar, de cantar e de esquiar.
E podemos não gostar de muita coisa, de tanta coisa que nem vale a pena listar.
Mas, há outra acepção para o verbo gostar.
E ele, atrevido que é, não nos deixa lembrar assim, assim, no dia a dia e nos prega peças, e nos pega nas esquinas das provas de vestibular.
Gostar também é provar, experimentar, comer, degustar e aproveitar.
E quando é assim, ele é direto. Transitivo direto.
Por isso poderíamos dizer Ana gostou O sapato, mas era caro, não o comprou.
Então, mesmo que o gostar não goste, nesse caso, Ana experimentou o sapato!
E Ana ainda poderia gostar muitas outras coisas. Gostar sem de.
Entre gostar e amar existem nuances que ainda não se sabe explicar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Nem sempre

Etéreo, eterno, heterodoxo.
Irmanadas em sua forma física nada mais tinham em comum essas palavrinhas.
Assim também sucedeu com Luísa, Heloísa, Maria e Mariana.
Irmanadas em sua forma física de vogais e consoantes, nada mais tinham em comum essas mocinhas nomeadas assim.
Tantas letrinhas, tantas palavrinhas. Tantas considerações.
Dentro de cada mocinha percepções, ações e reações.
Doce Luísa de destino incerto, tantos sonhos rabiscados em papel.
Heloísa de mel, encarcerada, encenada em literatura de cordel.
Maria e Mariana. Misturadas desde o começo da vida entre pernas e braços que disputaram, respiraram univitelino. Homozigoto. 
Torvelinho, tornozelo, zelo e trovão.
Irmanadas em sua forma física nada mais tem em comum a tempestade e os que se salvaram porque eram bons de coração.