quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Pitoco

Era Pitoco o nome do cachorro.
Foi o que ele conseguiu dizer entre soluços.
Quando Dona Alzira foi varrer a calçada deu de cara com aquele molequinho sentado na sarjeta, com a cabeça baixa apoiada nos braços cruzados sobre o joelho e que se sacudia todo de tanto chorar.
- hei menino o que foi que houve?
- foi o Pitoco
- que Pitoco?
- o meu cachorro, ele veio atrás de mim, eu corri pra atravessar a rua e ele não conseguiu passar, o carro pegou, o Pitoco, o meu Pitoco
- e onde ele está?
- a moça do carro levou ele pro médico de cachorro, mas não quis me levar porque falou que a minha mãe ia ficar brava
- e onde você mora?
- agora eu moro aqui, até ela voltar

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Reencontro

Acharam-se nas redes sociais e depois de um tempo resolveram se encontrar.
Marcaram um almoço.
Ficaram ansiosas.
As perguntas femininas semeadas pela inquietação eram: será que engordou? será que fez alguma plástica? será que pintou o cabelo? será que as unhas estão bem feitas?
No dia marcado uma esperou pela outra um pouco mais do que gostaria, mas não se aborreceu.
Uma vinha de casa, de deixar filha na escola, a outra vinha do trabalho, mas de nenhuma posição da qual pudesse se orgulhar.
Escolheram um restaurante mais pelo poder falar do que pelo cardápio.
Eram muitos anos para por em dia.
Parecia que seria um longo bate-papo, mas no fim foi quase um monólogo.
Daquela que, há pouco separada, contou toda a história de como foi, citando personagens totalmente desconhecidas para a outra que aproveitou e comeu.
Um estranhamento. Um desconforto.
Café e sobremesa.
Sorrisos sem brilho.
A despedida foi no estacionamento com promessas de se visitarem em casa, juntar as crianças.
Nunca se deu.
Um quê de nossos sonhos leves não deram certo, o futuro que imaginamos não chegou. Não vamos confrontar nossa existência.
As redes sociais evoluíram. Uma delas migrou.
Ainda não encontrou o perfil da outra, mas valia a pena.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Fuga

Andou de lá pra cá, de cá pra lá e não tinha nada a dizer.
Voltou da escola mais cedo, com o joelho ralado.
A mãe, espantada, perguntou o motivo, mal ouviu a resposta e seguiu estendendo a roupa no varal.
Foi para o quarto que dividia com os outros dois irmãos.
Olhou para cá, para lá e pela janela através da cortina de pano barato.
Tirou o lanche da mochila e comeu.
Encheu o tapete de farelo.
Não gostava de tapete, sempre tropeçava, ficava desarrumado e era motivo para as broncas da mãe.
Mãe... Pra que cuidar tanto de uma casa tão pobre e tão feia? Precisava limpar tanto? Por tanto pano na janela, no chão, se era tudo pano velho?
Apertava o coração com medo do padre que dizia que ter inveja era pecado.
Ele tinha inveja do Sérgio. Que tinha uma casa linda, que tinha tênis de tudo quanto é tipo, sempre tão novos e limpos. Tinha a mochila mais bonita da turma. Nem levava lanche, comprava de tudo na cantina todo dia.
Ele tinha inveja. Tinha medo, mas tinha inveja.
Era por isso que tinha dado tanto nele pouco antes do intervalo, quando se esbarraram no corredor.
Não era motivo. Todo mundo falou. O professor, a diretora. Suspenso. Ele que sempre fora tão tímido e quieto que quase invisível? 
Queria poder nunca mais voltar para a escola e olhar para o que não tinha.
A mãe chamou para almoçar. Ele saiu pela janela pensando em nunca mais voltar.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Assombro

E quando se olhou no espelho perguntou:
- quem é essa senhora que está usando minhas pérolas?
E então uma vida toda ficou para sempre aprisionada naquele olhar doce e sem futuro, porque o passado estava todo lá.
Em outro momento, perguntando por que Nicolau não chegava para jantar, a filha arriscou:
- mamãe, o papai já se foi
- foi para onde se nem chegou?
- não está mais entre nós
- isso é óbvio, não o vejo em lugar nenhum!
- não, mãe, o papai morreu há alguns anos
O silêncio cresceu.
Decidira ser honesta depois de, em ocasião recente, dar uma desculpa qualquer sobre a ausência do pai e ser pega no flagrante lapso da boa memória:
- porque está mentindo para mim? sei que seu pai morreu
Não sabia mais como lidar com as palavras.
Ela, com a memória.
Uma solidão compartilhada, escorregadia, perdida e encontrada para sempre.
Tinha 79 anos e teria cada vez menos com o passar dos dias.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Raro objeto

Vadiava pela rua em uma tarde ensolarada.
Vadiar é um termo pesado para um menino de oito anos que já estudou pela manhã e está sem os amigos e entediado.
Caminhava pelas ruas dos quarteirões vizinhos à sua casa em uma tarde ensolarada.
No quintal de terra da casa silenciosa, muitos brinquedos descansavam à sombra de uma árvore.
Olhou de um lado, olhou de outro. Abriu o portão de madeira sem fazer ruído e rápido como um coelho fechou a mão em um dos carrinhos e fez o trajeto de volta com o coração aos pulos.
Mais tarde, em casa, já de banho tomado escutou palmas. Quando apareceu na porta para espiar, já o grupo falava e gesticulava muito.
A mãe segurava a ponta do avental.
Eram três meninas e um menino. A maior delas contava que da janela da sua casa vira quando ele entrou no quintal e roubou o carrinho.
A mãe chamou.
Com as perninhas bambas já veio com o carrinho na mão e contou que encontrou na calçada e que tinha trazido consigo para ninguém pegar e que ia devolver no dia seguinte.
Ninguém acreditou.
As meninas foram embora falando alto e gesticulando.
Ele sentiu as orelhas quentes e vermelhas.
A mãe perguntou mais uma vez o que havia acontecido e ele repetiu a mesma história.
Ela não acreditou, mas não fez nada. Tinha tanto o que fazer, tanto com o que se preocupar.
Achou que era coisa de criança e que a vergonha que ela enxergava nele já poria as coisas no rumo.
Ele repassa a história uma e outra vez. Pensa em contar para o terapeuta, mas quando se senta na sala, tudo o que lhe ocupa a mente é um jeito de conseguir levar aquele abridor de cartas de prata. Tão raro objeto, tão precioso objeto que ainda será seu!

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O sonho do João

Gostava de ser palhaço de circo, mas era pedreiro.
Ela gostava de ser professora, mas era costureira.
Gostava de ser cantor, mas era encanador.
Gostava de ser médica, mas trabalhava no balcão da farmácia.
Gostava de ser engenheiro, mas era mecânico.
Gostava de pintar quadros, mas era passadeira.
Gostava de ser marinheiro, mas era balconista na lanchonete.
Ela gostava de trabalhar no banco, mas era ascensorista.
E ainda diziam que logo isso ia acabar, tudo moderno, lá precisa de alguém o dia todo pra apertar um botão?
Ele gostava de ser caminhoneiro, mas era pipoqueiro, não sabia ler não senhor.
Gostava de ser bailarina, mas era babá.
Gostava de ser locutor de rádio, mas era metalúrgico.
Gostava de ser advogado, mas era chaveiro.
É, tirando um e outro com história bonita que aparece na revista e no rádio quem tem fome de comida não tem tempo de correr atrás de sonho não.
Era isso o que a mãe do João falava todo dia porque ele queria tocar guitarra na televisão.
Ela falava que isso também era coisa que ele escutava na música do rádio.
Ah João... não é cem por cento das coisas que a gente tem que ouvir da mãe não!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Doce de Abóbora

A avó fazia doce de abóbora com coco. Ela adorava.
Quando penteava seus cabelos repartia ao meio e ela ficava com uma cara gozada. Mas deixava assim mesmo.
A avó rezava o terço, ela fechava os olhos e ficava rolando as continhas entre os dedos, vez ou outra mexia os lábios, meneava de leve a cabeça.
A avó adorava tomar sopa, mesmo no verão. Ela deixava esfriar, tomava depressa para acabar logo e quando a avó ia dormir comia uns biscoitos na despensa.
A avó gostava de passar roupas. Ela aproveitava a quietude e lia poesias para a avó.
Viviam bem. Viviam juntas. Os únicos momentos de tensão, ansiados e postergados, eram os momentos em que experimentava perguntar sobre a mãe.
A avó enchia a boca de doce de abóbora e fazia sinal de que com a boca cheia não podia falar.
E a questão engordava a menina, que já não brincava na rua por não conseguir correr.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A dona Angela e a Maria Inês

A dona Angela sempre espiava a Maria Inês limpando a casa.
Ela gesticulava, falava, mesmo estando sozinha, arrumava o cabelo.
De um cômodo a outro, sendo entrevista pelas janelas abertas, segurava a vassoura com afetação e antes de varrer o chão com firmeza, como acreditava a dona Angela que era o certo, parecia mais estar varrendo um piso precioso, que não podia arranhar.
E de novo ajeitava o cabelo e fazia bico como quem ia beijar.
Parava, olhava fixamente para um ponto e de repente fazia uma careta, como quem ia chorar.
A dona Angela pensava se acaso a Maria Inês não estava ficando meio doida, ou mesmo se não era o caso de perguntar se ela via e falava com espíritos. Mas, como perguntar isso sem explicar que ficava sempre espiando?
A Maria Inês quando acordava para arrumar a casa já a Dona Angela tinha feito tudo isso e até as sobras do jantar para aquecer no almoço já estavam sobre o fogão. É que a dona Angela fazia o jantar fresquinho porque o filho trabalhava o dia inteiro, não almoçava em casa.
Um dia, dona Angela estendendo roupa no varal e espiando a janela da Maria Inês, deu de cara com essa que vinha sacodir um tapete.
- Bom dia
- Bom dia dona Angela! Passou protetor solar no rosto pra estender essa roupa com esse sol danado?
- Não precisa, é só um minutinho
- Ah, precisa sim, até na sombra!
- E você, que tanto se sacoleja e faz careta enquanto limpa essa casa menina, é doida é?
- Sou doida de vontade de trabalhar na televisão! Ai dona Angela, limpar a casa, lavar roupa, fazer comida é tão chato, pra me distrair eu ponho uma música e vou fazendo como se eu estivesse aparecendo na novela. Por isso faço careta, arrumo o cabelo, tudo o que faço é para as câmeras e para os meus telespectadores!
- ah, entendi, e em que canal que passa?

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Homem Bom

E quando morreu tornou-se um homem bom.
A mulher não enumerou as coisas que a irritavam como toalha molhada na cama, quando ignorava o guardanapo e limpava a boca na barra da toalha de mesa. Coisas pequenas.
Nem as coisas grandes vieram à tona como quando, embriagado, lhe dava uns sopapos e jogava os pratos pelo chão sempre reclamando que não tinha carne. No dia seguinte acordava para ir trabalhar e lhe falava para pagar a conta de luz como se nenhuma sombra tivesse manchado a noite anterior.
Os amigos da oficina também só se lembravam das piadas e do jogo de dominó no intervalo de almoço. Nada dos gritos histéricos quando as ferramentas não estavam limpas ou no lugar certo. Nem do dia em que atirou uma chave de fenda em um vira-lata que só queria fazer amizade. O Ramirez adotou o bicho e levou pra casa, coitadinho, todo assustado.
A mãe não chorou, porque já tinha partido havia dois anos. Ninguém imaginava que fosse morrer cedo. Mas, quando morreu, tornou-se um homem bom, como costuma acontecer com todo homem que trabalha, paga impostos e uma coisa aqui e outra ali é que enerva e tira dos trilhos.
No dia seguinte ao seu enterro continuava sendo um homem bom aos que ainda davam os pêsames à dona Etelvina. Mas isso ia durar só até que a Margarete vencesse os 200 metros entre o ponto de ônibus e a casa do Tadeu, para onde arrastava os dois moleques e ia reivindicar que algum dinheiro fosse destinado a eles porque era o Tadeu que lhe pagava o aluguel e lhe botava comida na mesa!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Fruta na fruteira

Fruteira é coisa que guarda fruta.
Lapiseira não é coisa que guarda lápis, guarda grafite, assim, deveria se chamar grafiteira.
Mas, grafiteira pode ser a menina que faz grafite.
Grafite, aquelas pinturas no muro que alegram alguns e entristecem outros.
Há os bonitos e há os feios.
Tornozeleira não é coisa que guarda tornozelos, é uma pulseira que tanto pode enfeitar como pode denunciar.
Pulseira guarda pulso, só quando no pulso está. Então, quem guarda quem?
Macieira é árvore que dá maçã.
Macieira pode ser de macio?
Não tem fruta na fruteira e estou com fome.
Quando estou com fome e não tem fruta na fruteira é porque não tem mãe em casa.
Quando não tem mãe em casa eu bem que posso pegar um saco de batata frita e ver um filme qualquer com os pés no sofá.
Posso? Posso, mas não devo. Vou fazer mesmo assim, depois, quando ela chegar eu conto tudo pra ela, que mãe eu não posso enganar.