segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Februarius

Fevereiro é um mês que não termina.
Fica no meio do caminho, como quem não quer avançar porque tem medo.
É um mês tímido.
Toda gente espera por janeiro, primeiro mês do ano.
Todas as esperanças renovadas.
Todas as promessas a serem postas em prática.
Muita gente aproveitando as férias de verão, aqui no nosso hemisfério.
Mas mesmo nos outros.
Ninguém tira a primazia de janeiro.
Mês forte, com todos os dias, como se fosse o melhor cavalo do leilão, com todos os dentes na boca, escancarados de alegria.
Fevereiro não.
Fevereiro tenta terminar a cada quatro anos e mesmo assim fica faltando.
Em muitos anos se salva pela festa do carnaval. Festa pagã, mas festa. No nosso hemisfério, no umbigo do nosso hemisfério.
Esse ano nem isso.
Ficou apenas com o ônus da volta às aulas e entregou a festa para o mês de março com melancolia.
Fevereiro chora todos os dias.
Tentei cantar Geraldo Azevedo para animar fevereiro, mas nem a letra eu sei, o primeiro verso também não termina para mim.
Tchau fevereiro, a vida é mesmo assim, rasa para muitos.

Quando Fevereiro chegar
Saudade já não mata a gente
A chama continua
No ar
O fogo vai deixar semente
A gente ri a gente chora
a gente chora
Fazendo a noite parecer um dia
Faz mais
Depois faz acordar cantando
Pra fazer e acontecer
Verdades e mentiras
Faz crer
Faz desacreditar de tudo
E depois
...

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Para abastecer a alma

Procuro uma poesia
Que nasça dentro de mim
Mas que possa ganhar corpo
Crescer e encantar
Uma poesia que faça rir
Quem quer chorar
Que faça chorar quem
Não se entrega e sofre
Procuro uma poesia
Que possa ser de toda gente
Que minha mãe leia
E fique contente
Que minha filha leia
E não se envergonhe
Uma poesia que não use
Rimas pobres
Mas que não fique
Refém de palavras sem sentido
Procuro uma poesia
Enquanto o sol está lindo
Porque o inverno há de chegar
Que nasça dentro de mim
Mas que possa crescer
Por toda a parte
Uma poesia que ultrapasse
A minha vontade
Enquanto não encontro
Abasteço minha alma com
A poesia dos outros
Praticamente sem respirar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Procurando respostas

Gentil Lusia, este é o seu biorritmo do dia 24 Fevereiro, quinta-feira:

Hoje o seu nível intelectual é 98%: se você deseja pôr em prática os seus projetos, este pode ser o dia certo. O seu nível físico é 17%: não lhe convém dedicar-se a esportes radicais.
O seu nível emocional é 4%: convém que você adie questões delicadas!





Em algum momento, visitando algum site, fiz um cadastro para receber a previsão do meu horóscopo.
Eu acredito quanto sugere coisas boas e deixo pra lá quando não são tão boas.
Com as pessoas sou ligeiramente diferente, eu presto mais atenção quando me dizem coisas não tão boas, porque preciso melhorar, mesmo que não consiga eu presto atenção e me esforço, e sobre as coisas boas, observo, deixo que me façam bem, mas não a ponto de me fazer mau. Se é que me explico.
E desse cadastro que comentava passei a receber o gráfico acima.
Tão pessoal e tão público.
Tão singular quando já me chama de Gentil, uma maneira sutil de me lembrar que ser gentil é muito, mas muito importante!
Tenho guardado em uma pasta os meus gráficos.
O meu nível intelectual é sempre elevadíssimo, como o de hoje, 98%.
O físico varia, mas nunca é lá essas coisas.
Já o emocional. Sempre fico devendo nesse quesito.
Por isso hoje estou na toca, abrigada para não ferir ninguém.
Esperando que os astros equilibrem os meus índices, tentando ser sempre gentil, independentemente dos números que o gráfico me reserva.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Ele é lindo, sedutor e usa chapéu

E assim como contei o quanto gosto do Saci Pererê quero contar que eu não gosto do Boto Cor de Rosa.
Ele é cor de rosa, ele é liso, ele engana as pobres donzelas.
Ele é caçado.
Ele não é bem quisto.
Ele usa a beleza para tirar proveito.
Ele seduz com mentira.
Ele é ladino.
Dizem que quem come carne de Boto Cor de Rosa pode ficar louco.
Eu não gosto do Boto Cor de Rosa.
Talvez porque eu não tenha crescido naquela região.
Talvez porque não tenha sentido o frio na barriga de medo de dar de cara com o moço mais lindo da comunidade.
Um moço que usa chapéu sempre, para esconder sua condição de metade homem e metade boto.
Talvez ele não me escolhesse porque sempre encanta e seduz a moça mais bonita da comunidade.
E talvez porque, aparecendo ele sempre nas noites de lua cheia, próximas das festas juninas, eu estaria mais interessada em pipoca do que em moço bonito.
Eu não gosto do Boto Cor de Rosa.
Não gosto dos subterfúgios da beleza pela beleza.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Ele é preto, aleijado e fuma

Eu adoro Saci Pererê.
Eu acredito em Saci Pererê.
Ele é gerado em um tronco de bambu, por sete anos e quando nasce vive setenta e sete anos fazendo travessuras.
Quando morre se transforma em cogumelo, daquele venenoso que chamam orelha de pau.
É possível dominar um Saci se conseguir tirar o gorro dele e também é possível prendê-lo em uma garrafa.
Mas para que fazer isso?
Isso sim seria uma crueldade.
As brincadeiras dele não são para tanto!
Ele adora assoviar e ficar invisível.
Eu também, mas só sei assoviar, não sei ficar invisível por mais esforço que eu faça.
Ele domina os insetos que nos atormentam, como mosquitos e pernilongos.
Eu preciso aprender a dominar esses últimos.
Ele gira em torno de si feito um pião e provoca redemoinhos.
Eu queria aprender.
Ele conhece profundamente as propriedades medicinais das ervas e das raízes da floresta.
Se precisar pegar alguma para algum chá é preciso pedir permissão, porque se não ele preparará armadilhas.
Inventaram para ele um dia nacional, que é 31 de outubro, com a intenção de minimizar o culto às bruxas, importado. Mas ele não gostou.
Eu gosto do Saci.
Eu acredito no Saci.
Ele é preto.
Ele é aleijado.
Ele fuma.
Ele tripudia.
E ainda por cima, usa um gorro vermelho.
Digamos que essa cor não conversa politicamente comigo.
Mas eu gosto dos sacis.
Preciso de um pedaço de terra para cultivar bambus e acolher os cogumelos, mas para conseguir essa terra não pretendo procurar um acampamento do MST.
Gosto de traquinagens, mas nem tanto.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Entre borboletas e mariposas

Entrei na página pessoal do Facebook de uma amiga para cumprimentá-la por uma conquista e li:
“A felicidade é como uma borboleta. Quanto mais você a persegue, mais ela se esquiva. Mas se você voltar sua atenção para outras coisas ela virá pousar calmamente nos seus ombros. Thoreau.”

E então pensei nas borboletas que já encontrei no meu caminho.
Na borboleta incrivelmente grande, colorida e linda que minha caçula ficou admirando até o papai fotografar.

No apelido borboleta que minha amiga de juventude ganhara da mãe porque parecia flutuar e estar em muitos lugares.

E no ser que fotografei, sem foco, sem luz, com medo de espantar, no sábado de sol, no batente da porta do quarto do fundo, quase esquecido no quintal.

Uma borboleta ou uma mariposa?
A minha boa notícia que vai chegar?
Comecei a semana quietinha esperando as borboletas pousarem.

O céu decorado com um sol esplendoroso nos avisa que o verão se prepara para partir.
Gosto do horário do verão. Ele se foi no último sábado.
Eu não persigo exatamente a felicidade, eu quero estar em paz com as flores, os espinhos, a chuva, o sol, o branco e o preto, o doce e o amargo.

Estou esperando a borboleta pousar, tenho medo apenas de ser tão igual a tudo que ela não me veja e bata as asas delicadamente e parta sem que suas patinhas façam cócegas em meu braço.



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Os bichos do meu caminho

Pelas ruas do bairro alguns cães meus conhecidos.
O menor, mais atrevido, um baixinho de cor preta que olha para os lados antes de atravessar a rua e adora instigar os que ainda estão atrás dos muros e portões.
No almoço, as pombas tão mal queridas em sua existência sem remédio. Eu observo as mais gordas e as mais magras, as de cor cinza com colar esverdeado, as brancas tão sujas da cidade.
No pet shop os cães para doação. O filhote tímido com cara de lobo, a cadela cor de mel que sabe que precisa daquele olhar para ganhar um lar.
Não posso fazer contato visual porque meu coração fica pesado e dolorido por muitos dias.
Os vira-latas são lindos, são queridos, só precisam de um lar, comida e carinho.
Esses dias, olhando para um deles, as meninas já entusiasmadas o papai até sugeriu:
- um bom nome para um vira-lata é Paraguaio, não é?
E a vontade era de levar o Paraguaio para casa, tão simpático nos olhando pelo vidro, já sobre uma cadeira que o expunha melhor.
Querer não é poder. Será que não?
Mas depois disso tudo, um alento: o cavalo já não está só.
Já bem perto de casa em um grande terreno, o mato, às vezes alto, alimenta desde que me lembro um cavalo branco, um pangaré magro, sempre cabisbaixo. Que tinha um companheiro marrom, que algum dia sumiu, deixando o branco ainda mais cabisbaixo.
Eu passei a olhar de viés, com medo de ver a tristeza naqueles grandes olhos negros.
Mas hoje, hoje pude olhar bem porque outro companheiro chegou. Outro pangaré branco.
Já posso ficar mais tranqüila sabendo que quando chove, faz frio, eles podem se aproximar e trocar impressões sobre a vida.
Sobre a vida humilde de serem os cavalos de alguém que provavelmente os usa para o trabalho.
A vida pode ser humilde, dura, o que ela não pode nunca é ser sozinha.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Eu levo a sério as promessas

Somos eternos quando nos vemos refletidos.
Ontem, ao dar um beijo de boa noite em minha primogênita ela me disse:
- mãe, escrevi uma letra de música, eu deixo você ler se você não chorar
Peguei o papel.
A letra desenhada construía estrofes, em inglês.
De um sentimento tão profundo que entendi o porquê da promessa de não chorar.
E não chorei.
Eu levo a sério as promessas.
Aqueles versos ficaram em mim.
Fiz uma cópia que repousa em minha mesinha de cabeceira por esquecimento.
Queria tê-la aqui comigo.
Não poderia reproduzi-la, não ainda, porque de novo eu prometi diante da menina que para disfarçar uma timidez que raramente aparece pediu:
- não torne pública... é duro ser uma star!
Somos eternos quando nos vemos refletidos.
Aos onze anos eu não mostrava minhas folhinhas rabiscadas para minha mãe ou irmãs mais velhas, mas eu as escrevia com o mesmo sentimento de quem já viveu mais do que consta na carteira de identidade.
Outros tempos.
Eu levo a sério as promessas, mas posso dizer que uma das frases da música diz que o tempo não apaga o amor.
É uma pergunta retórica, mas... a vida não é surpreendente em cada segundo?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Ser e ter que parecer

Tempo de ser e tempo de entender que as coisas acontecem rápido demais.
Sabemos, mas não processamos, ou não usamos no melhor momento.
Convencer outrem de que você é melhor do que parece na discussão boba da farmácia.
Convencer outrem que você não é simpática em tempo integral, mas que no decorrer do período o humor, a graça superam momentos de tensão, que a intenção de ajudar é sempre presente.
Que dizer não é necessário e muitas vezes ele vale por um sim recompensador lá na frente.
Tempo de querer sossego na agitada vida moderno.
Tempo de querer educar para a paz, sem perder o brilho nos olhos pelas conquistas.
Trocar os caderninhos pelos online da vida. Não retive o latim aprendido nas aulas de lingüística, mas as palavras de inglês pululam entre online e off-line.
Convencer-se a si de que não precisa convencer outrem, apenas ser.
Tudo o que acontece, simplesmente acontece.
Se estivermos prontos, o professor aparece.
Se estivermos felizes, ao nosso redor tudo parece mais leve.
Quando olhamos nosso retrato em situações vividas percebemos tudo o que poderíamos ter feito diferente.
Nem sempre somos em algumas poucas horas tudo o que podemos ser na média de nossa existência. Não sei se gosto da média, da moda ou se os picos são bons para nos fazer enxergar os contrários.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Feijão

- A Margarida não pode ir à feira porque está cozinhando feijão e tem medo de deixar fogo aceso com panela cheia no fogão. E ela tá certa. Lembra da Claudete? Tava cozinhando lata de leite condensado na panela de pressão e explodiu tudo. Quebrou vidro, machucou a mão dela muito!
- Ah, mas aí é que tá, se ela não estivesse lá que se explodisse sozinho, sem machucar a mão
- Ai Doralice, mas você sempre põe uma pitada de chatice na sua conversa, né? Você nunca pode concordar com ninguém, sempre quer ter a última palavra, é de admirar você!
- Eu não, só acho isso, você falou uma coisa que não combina e eu quis falar.
- Você não quer ir à feira pra Margarida?
- Eu não, ela é muita pão duro! Uma vez eu fui e não encontrei as coisas do jeito dela ela ficou reclamando, vou não!
- Eu também não posso ir porque ainda tô com o pé inchado
- Por que é que a Margarida começou a cozinhar o feijão tão cedo? Não podia ter ido à feira antes?
- Eu acho que ela ainda não tá recuperada
- Dessas coisas a gente não recupera nunca Salete
- É triste né?
- É, eu acho que enquanto o feijão fica chiando na panela ela fica lembrando dele
- Será?
- Ele gostava de feijão, gostava de quando abria a panela comer quentinho com pão, sabe assim, tirar o miolo e encher de feijão?
- Eu também gosto
- Ai Doralice, mas eu falando de uma coisa tão triste e você logo se pondo no meio do assunto, você é terrível!
- Eu não... é só que eu também gosto de pão com feijão e não é muita gente que gosta e agora é menos ainda...
- Ele era bonito
- Era
- E era bom moço
- Era mesmo
- Uma mãe, um pai nunca devia ficar enquanto um filho vai
- Isso é
- Vamos nós duas na feira? Eu escolho as coisas, você carrega a sacola junto pra não pesar e doer meu pé
- Vamos
- Ô Margarida, dá aqui a lista da feira que Doralice mais eu tamo indo
- Margarida?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Gosto de varrer o quintal

Gosto de varrer o quintal.
O silêncio quebrado apenas pelo ruído da vassoura no chão.
E as coisas vão se juntando. Destino final.
O sol forte, um céu tão azul.
Uma poeira leve.
Folhas secas que já cumpriram sua principal função.
Folhas ainda verdes que sucumbiram ao vento ou a brincadeira das meninas ou da gata.
Sementes que não vão brotar.
No meio disso tudo uma abelha.
Nada abelhuda.
Talvez vergonha da colméia, aquela que não voltou com a missão cumprida.
Ali, quase escondida entre aquele lixinho inocente.
Enquanto varro meus pensamentos seguem o movimento do vento.
Ele quer brincar comigo, mas não é hora para isso.
Vou reunindo tudo em um montinho.
Não precisava varrer o quintal.
Mas varrer o quintal é também varrer umas teias de aranha de sentimentos amarelos que ameaçam sufocar.
De ver voltar à ordem e depois observar o atrevimento da primeira folha que vai cair.
Gosto do barulho da vassoura.
Gosto do movimento cadenciado.
O ruído da vassoura no chão quebra o silêncio que pode haver no quintal.
A vida doída das folhas que caem e das abelhas que não voltam me interessa.
Posso gostar de varrer o quintal enquanto a vida e a morte discutem suas diferenças.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Não vou escrever

Hoje não vou escrever nada.
Porque estou cansada, porque sou muito rígida comigo mesmo e com esse trato de escrever em todo dia útil.
Porque estou ansiosa.
Porque a chuva fraca aqui, forte ali não permite um passeio à Torre de Pedra.
Porque nunca escrevi um discurso e acho que já é hora de escrever.
Hoje não vou escrever nada.
Porque queria comprar um sapato novo e não fui.
Porque o email que espero não chegou.
Porque a resposta ainda não foi sim.
Porque a outra resposta ainda não foi não.
Não vou escrever. Estou cansada.
Tenho muitas coisas pra decidir.
Não sei onde estacionar o carro.
Não sei quanto tempo levo pra chegar.
Não sei por que ainda preciso revisar.
Hoje não vou escrever nada porque não quero deixar a má impressão de que escrevo qualquer coisa só porque tenho que escrever.
Estou rebelada, não vou escrever enquanto não me convencer de que tudo vai voltar a andar com mais vagar e sossego.
Onde estão as peças do meu quebra-cabeça se estavam todas aqui e nenhum vento soprou?

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Seguranças

Os ternos são mal cortados.
Os cabelos são mal cortados.
Os olhos maus não revelam a verdade.
São assim os guardas que guardam não sei o quê, na rua onde passo de manhã, a caminho do trabalho.
Mas se os ternos são mal cortados, a postura de quem está de bem com a vida é incrível.
Estou aqui trabalhando.
Estou aqui cuidando do que não é meu, mas quando vou para casa, posso ficar de chinelo e bermuda, posso tomar uma cerveja na calçada com os carnês das prestrações em dia.
Estou aqui e posso te impedir de estacionar o carro.
Estou aqui e posso te dizer onde fica a rua...
Estou aqui e adoraria que, pelo menos uma vez, me dissesse bom dia.
São assim os guardas que guardam aquela casa.
Importantes em suas funções.
Felizes porque tem para onde ir quando acordam.
Nem imaginam que monitoro seus costumes mal ajambrados e seus cabelos mal cortados, mas que vejo poesia naquele bate-papo casual com o aposentado que passeia com o labrador.
O que será de cada um deles quando essa rotina desaparecer? A rotina das vidas que cruzo me ensina que há história em cada detalhe, eu só quero olhar!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Detalhes

Todo mundo é esquisito nos detalhes.
Eu não bebo água suficiente, mas rezo por uma água de coco.
Eu leio bula de remédio, como quem lê um romance.
Eu leio manual de instruções dos equipamentos eletrônicos.
Eu paro no farol amarelo.
Eu priorizo o pedestre na faixa.
Eu me junto a um grupo na fila, mas eu não furo, eu pago na minha vez.
Eu não gosto de falar no telefone, nem no fixo, nem no celular.
Eu sou falante com platéia, mas sou tímida entre poucos.
Eu tenho medo de dirigir nas ladeiras.
Eu ouço a Voz do Brasil enquanto meu programa de esportes não começa.
E eu também leio as plaquinhas de avisos nos lugares por onde ando, principalmente para encontrar pérolas como a da fotografia.
Repara bem, há instruções bem claras sobre tipo de ocorrência, que número chamar e o que informar, mas se não souber qual o centro de custos não tem bombeiro que apague o fogo da vaidade de quem acha que sabe mandar!
É, todo mundo é esquisito nos detalhes.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Termômetro

Quando era criança parecia tão mais fácil se quando ficássemos doentes pudéssemos olhar pra dentro do corpo e identificar o que havia de errado.
E ainda acho.
Não gosto dos subterfúgios que nos adoecem.
Da febre que chega como uma cobra silenciosa e de repente nos aquece e nos prostra.
A garganta que saboreava tudo se intimida, dói, range.
Os olhos embaçam, perdem o brilho.
Não gosto.
Não gosto de ficar doente.
Eu não fico de cama. Eu fico de sofá porque me recuso a não estar desperta.
Quero aquietar por livre arbítrio.
Não ser obrigada a descansar.
A cabeça pesa, os olhos querem fechar.
Não gosto.
Quero rir, conversar, mas tudo me cansa, os dedos ficam pesados.
Se pudesse encarar a febre de frente.
Mas ela não se entrega ao termômetro, se esconde atrás das minhas orelhas.
A semana ainda é longa.
A noite está quente e se prepara para também espirrar.
Gosto da noite chuvosa.
Não gosto de estar febril.
Tudo fica distante como quando minha mãe chamava e eu pensava duas, três, quatro vezes... conto ou não conto que minha cabeça dói?
E quando me decidia ela se adiantava:
- o que foi? parece com febre, a cabeça dói?
Minha mãe sempre sabia tudo, não era preciso conseguir olhar pra dentro.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Para alguns

Hoje é sempre resultado de ontem.
Amanhã será sempre o que restou de hoje.
Uma decisão a cada momento.
Um tempo de pensar e um tempo de refletir.
O que entra no automático e o que dói para decidir.
Acordar é fácil, levantar é difícil.
Entrar no banho é fácil, sair é difícil.
Dirigir na estrada é um prazer, já encontrar o primeiro farol!
Dizer bom dia é bom, não ouvir a resposta é determinante.
Hoje é sempre o que vamos tecendo nos pequenos gestos.
Ser feliz é agora não se acumula pra depois.
Respirar é a todo momento, respirar fundo é considerar.
O amanhã é sereno se o sorriso abre caminho,
se os passos são grandes ou pequenos dependendo das pedras
do caminho.
O ontem vai ficando em sépia.
As fotos vão se acumulando nas caixas antigas e agora nos
servidores que mais assustam do que servem.
A resposta é agora em tempo de paz.
Enquanto esperamos podemos olhar o girassol dançar
sua coreografia única.
Hoje é sempre resultado de ontem.
Amanhã será sempre a véspera transformada em realidade.
Para alguns.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Ruiu aos 39

Estava quieta, ouvia o vento e a canção chorada sem lamentar.
Olhava o tempo escorrer por entre os dedos sem ânsia e sem medo
de provar, aprovar, comprovar.
Chamava o silêncio de quietude da alma e estampava o rosto
com um riso para inveja alheia e deleite seu.
Ruiu. Roeu. Corroeu o sossego e instalou no peito um coração inquieto.
Um riso nervoso de adolescente.
Uma ansiedade que formiga as mãos.
Uma tempestade que percorre todo o corpo e se instala nos joelhos
provocando uma dança sem graça, disfarçada, sem ritmo.
Tudo isso tem um número: 39.
É o limite, é a barreira, é o número mágico da cama elástica,
que joga para cima com leveza, segura quando volta,
mas não há mais nada a fazer.
Estava quieta, despreparada para a inquietude, acreditando no
domínio do sobressalto. Ruiu.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Tempo

Quero um tempo mais ameno.
Um tempo de respostas mais rápidas.
De almoço mais lento.
Um tempo para ver um filme novo.
Quero um tempo mais enquadrado
no que precisa ser modificado.
Uma resposta que me tire da cadeira.
Um tempo sem pernilongos.
Quero dias de descanso para os pensamentos.
Um tempo de frases curtas,
mas de sorrisos longos.
Quero um tempo de mãos que acenam
na chegada.
Quero um livro novo.
Quero uma poesia de duas linhas.
Um suco gelado, mas sem pedras de gelo.
Um jantar quente e um despertador desligado.
Quero um tempo mais ameno.
Se eu ficar quieta ele vai chegar.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Salvo pelo gongo

E se hoje eu não escrevesse nada?
Hoje que estou cansada, sem idéias, perdida em pensamentos que não querem fazer sentido.
Quem se daria conta?
Eu.
Eu e minha cobrança de mim mesma.
Eu devia levar a vida menos a sério.
Estudar, por exemplo, a origem da expressão salvo pelo gongo.
Dizem que na Inglaterra, a combinação da bebida alcoólica com o tipo de metal da taça derrubava uma pessoa de tal modo que muitas vezes era dada como morta e enterrada.
Como rapidamente precisam tirar os ossos para dar lugar a outros mortos, percebia-se que algo tinha dado errado. Para evitar isso, começaram a amarrar um lado de uma fita no braço das pessoas que morriam e a outra ponta em um sino e uma pessoa ficava sete dias de plantão. Se o morto-vivo acordasse e fizesse movimentos seria logo socorrido - daí a expressão saved by the bell.
Gosto das expressões. Gosto de saber suas origens.
Ontem usei essa expressão com o manobrista do estacionamento e não soube explicar a origem.
Gosto de perguntas inteligentes. Elas me estimulam.
Hoje eu já sei.
É, eu devia levar a vida menos a sério.
Estou preocupada, de fato, com os quero-queros em Campinas.
O Santos estava jogando com a Ponte Preta e um casal deles estava desesperado tentando proteger os filhotinhos.
E, entre o peixe e a macaca, que empatavam em um a um, eu torço para os quero-queros. Tomara que eles sejam salvos pelo gongo do apito final!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Destino retorcido

Estava sozinha quando eu entrei.
Quase bem cuidada.
Uma ou outra folha amarela, aceitaria água sem cerimônia, um calor típico de verão atípico de tão quente.
Vaso bonito.
Rodas de acrílico transparente indicando que ela não atrapalha a limpeza da sala.
Quase não nos falamos, mas pude perceber o seu constrangimento.
Parecia temer as perguntas que meus olhos formulavam:
- mas a quem parece bonito esse tronco submetido à tortura da trança?
- são três ou quatro mudas obrigadas a crescerem juntas, contrariando a natureza dos siameses que só almejam se separar?
- que dor é essa que deixa cicatriz quando os galhos que querem crescer precisam ser cortados para não atrapalhar a harmonia da obra?
Constrangedor olhar para ela com um misto de pena e admiração.
Já sem chance alguma de levar uma vida normal, crescer, abrir os galhos para me abraçar.
Não, a ela coube apenas o destino de ocupar um canto na sala desprovida de charme.
Uma mesa redonda, três cadeiras, dois quadros com fotos da construção branca de Carlos Paez Vilaro, Casa del Pueblo, em Punta del Leste. Já estive lá.
Mas nem a lembrança dessa viagem gostosa, nem  a conversa agradável conseguem desviar minha atenção do destino das coisas que, ainda que vivas, não podem se valer de humanidade.