sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A metade da laranja

- Eu gosto da laranja não cortada, em gomos.
O cheiro é bom, a casca transpira o sumo e o cheiro fica na mão.
Eu gosto de bolo de laranja, de suco de laranja.
Eu gosto da cor laranja.
Eu gosto das sementes de laranja.
São pequenas e atrevidas, escorregadias.
Escondem-se entre os gominhos do gomão, aqueles que parecem pequenas joias e escorregam pra dentro de nossa boca.
Sementes de laranja já sonharam ser nossos dentes de leite.
- Ah, essa é boa e foi uma sementinha que te contou?
- Você nunca entenderia como eu sei essas coisas
- Para mim, basta entender que você gosta de laranja
- Eu acho pouco dizer gosto de laranjas...
- Eu acho muito concluir que a semente sonha ser nosso dente de leite, parece conversa que uma adolescente teria com um psicólogo
- Eu nunca iria a um psicólogo
- Por que não?
- Iria a um psiquiatra, mas não sei bem explicar  
- Hum... sabe que a semente de laranja quer ser um dente de leite, mas não sabe a diferença entre os médicos?
- Sei sim, só acho que não tem poesia na explicação e para você basta entender que eu não iria a um psicólogo, só isso
- Quer mais uma laranja?
- Quero

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Perguntação

Fazia perguntas como todas as crianças.
- quem desenha as linhas da impressão digital?
- tem gente que não tem linha na impressão digital?
- é de verdade que a cigana enxerga o que está escrito nas linhas da palma da mão?
- por que tem coisas escritas nas linhas da palma da mão?
- é como se fosse o nosso caderno secreto?
- mas, se é nosso caderno secreto, por que é que a gente não consegue ler e uma pessoa que nem conhece a gente sabe o que está escrito ali?
- dedo do pé tem impressão digital?
- e quem não tem mão, não pode tirar documento daqueles que tem que pintar o dedo e carimbar?
Gostava muito das linhas do corpo.
Roubava nanquim do material escolar da irmã e se divertia sujando mãos, cara e sofá.
- e essa marca na sola desse chinelo havaiana? é a impressão digital do chinelo?
- se ficar essa marca no meu bumbum aí eu vou ter impressão digital na bunda?
E quanto mais perguntava, menos sabia sobre as impressões digitais.
Quando caminha na areia da praia sempre vai rabiscando uma impressão que espera ser diferente de tudo o que vem vivendo até aqui.
Hoje é o dia Fernando, como está se sentindo?
Não sei. Tudo o que tinham para prender o meu pai, há 20 anos, era uma impressão digital.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Chácara

Gostava de futebol, mas não via nisso futuro, tinha consciência de que era um perna de pau.
O tio era médico, orgulho da família, ainda mais que era obstetra e tinha ajudado a nascer metade daquela gente da cidade pequena. O tio ajudava a nascer tanta gente e não tinha filhos.
Na família culpavam a tia, magrinha, frágil, a mãe não concordava e defendia sempre. A mãe defendia todo mundo.
Mas, o advogado era o pai.
O pai era um advogado respeitado, de vara de família. Não era sempre que um grande caso se dava, como o do ex-prefeito, mas sempre tinha lá uma pensão ou outra pra ajustar e até pedidos de emancipação. Gente que queria ir se embora até para outro país sem dar satisfação aos pais.
Ele nunca pensara nisso.
As profissões exigem muito estudo, muita dedicação. Ele ficava cansado desde os primeiros anos escolares, de estudar a tabuada. De ler livros então, só se safava porque a mãe lia para ele em voz alta e administrava as crises do boletim com o pai.
O que salvava era o fato de ser tão sossegado que não despertava a ira no pai, como o Jaime despertava no pai dele. As brigas homéricas do vizinho com o filho até ajudavam a acalmar as expectativas do pai.
No fim de tudo, a mãe o ajudou a convencer o pai de que comprar e tocar uma “chacrinha” era um bom negócio.
E assim se fez.
Ele cuidava de hortas lindas e vendia as verduras mais vistosas na feira de sábado e nas quitandas dos bairros.
Galinhas ciscavam no seu pé enquanto ele se sentava na varanda para tomar a fresca do fim de tarde.
Enquanto isso, na família se comentava:
- e o filho do Geraldo não deu em nada
Só uma prima distante que por ele suspirava defendia:
- é, não deu em nada, mas é feliz!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Assunto

Ficava sem assunto quando não tinha campeonato de futebol.
Um dia, sentado à toa no sofá, passou a mão em um livro que a filha deixara e folheando resolveu começar a ler do começo.
E leu um capítulo e outro.
Pegou um marcador diferente e sinalizou onde o abandonou para jantar.
No dia seguinte escreveu um bilhete para a menina explicando o outro marcador e na hora do almoço contou para os camaradas parte da história que estava lendo.
Alguns prestaram atenção, outros nem tanto. Uns poucos gostaram e quase todos estranharam o assunto.
À noite retomou a leitura, mas no dia seguinte não comentou nada mais da história com os camaradas.
O que fez foi um caminho diferente para chegar até o depósito e aí sim, na hora do almoço contou que resolveu arriscar um caminho mais longo, mas que fluía melhor e que ainda tinha visto a saia de uma morena levantar com o vento.
O assunto movimentou o almoço e todo mundo prestou atenção, comentou, riu e a conversa seguiu. Um ou outro falou menos, até porque, palitavam os dentes.
Terminou a leitura e arranjou outro livro que andava por ali, as meninas liam demais.
Numa quinta-feira qualquer o assunto do almoço começou com a pergunta:
- E aí Felinto? Viu o jogo ontem?
Ele quase engasgou tentando encontrar uma desculpa... então os campeonatos já tinham recomeçado?
Que diabo de dia é hoje?

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Mudança

Avenca. Orquídea. Margarida. Samambaia.
Cravo. Renda Portuguesa. Rosinhas. Olha... Copo de Leite. 
Dália. Onze Horas. Rabo de Gato... Como será que se chama de fato?
Como vai ficar o jardim até que a casa seja vendida?
Não sei. Pensei que você estava rezando, não falando de nome de flor. Isso tudo é nome de flor?
A mãe ia querer que cuidássemos do jardim.
Eu não tenho tempo.
Eu quero ficar aqui.
Você tem sua vida e entre sua vida e aqui existem alguns quilômetros.
Mas ela ia querer que cuidássemos do jardim.
Precisamos vender a casa.
Podemos por uma condição, de que o jardim seja mantido.
E você virá checar? Sei... Deixa disso. Tira umas fotos.
Ela deve estar ouvindo a gente.
Mãe, eu nunca gostei de flor, lembra? Sempre apanhava por causa delas, quando quebravam com as boladas que me escapavam. A coisa toda é com a Rita.
Então eu vou ficar Tarcísio. Não venda a casa. Eu vou me mudar pra cá.
Eu vou cuidar do jardim.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Combate

Terminou o banho despreocupadamente e, quando abriu o box, ele estava lá.
Enxugou-se sem tirar os olhos dele.
Calçou os chinelos secos, se enrolou na toalha.
Movimentos leves, quase coreografados.
Ele parecia ignorá-la completamente.
O movimento foi rápido, o braço imprimiu força bruta e a mão espalmou o azulejo com vontade.
Quando olhou para o resultado, qual não foi sua surpresa ao não ver nada. Absolutamente nada.
Olhou em volta entre curiosa e furiosa e não demorou muito para localizá-lo.
Fechou a porta. Por aqui não sai.
Arrogante. Atrevido. Ágil.
Tentou uma vez mais com a mão, depois com a toalha. Nada.
Pensou nas tarefas do dia, atrasada como sempre. Desistiu.
Quando pousou a mão na maçaneta para abrir a porta ele pousou quase no mesmo lugar anterior.
E dessa vez a palmada foi certeira.
Abriu a torneira, lavou a mão com a água bem fria. Passou a mão molhada no azulejo, voltou a lavar a mão.
E então se arrependeu. Sabia que em algum momento seria picada por aquele pernilongo, mas não precisa ter acabado com ele assim, que não deixou nenhuma mancha de sangue na parede.
Pobrezinho, morreu com fome.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Crush

Chegou em casa na hora certa e como era certo, foi deixando as coisas pelo caminho.
A bolsa na sala, um não sei o que na cozinha onde foi beber água, as sapatilhas no corredor até chegar ao quarto.
Deu um beijo estalado na mãe.
- que agitada, nem esse calor de 40 graus te desanima?
- no
- e como foi na escola?
- tudo bem...
Não cresceu como a mãe esperava, mas não era nanica. Não era gorda, mas estava longe de ser magra.
O macacão laranja não era exatamente a peça que a mãe escolheria se ainda a ajudasse a se vestir para a escola, mas evitava discussões inúteis.
- pode fazer o caminho de volta e recolher as coisas que foi deixando pelo caminho mocinha?
- já, já mãe, preciso procurar uma coisa aqui no Google... peraí
Não bisbilhotava as coisas da filha, mas era preocupada e vigilante.
- e o que é essa coisa tão importante, posso saber?
- crush... meu professor de matemática me disse que eu estava parecendo uma garrafinha de crush e o outro ainda disse delícia... quero ver como é
A mãe entendeu.
Ela ainda teria que refinar a busca porque as imagens das novas embalagens não entregariam nada assim tão fácil.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Enredo

Era elegante.
Bonito não, com lábios finos, nariz adunco. Mas elegante sim. Alto, magro.
Nadava. Não vários estilos porque aprendera a nadar no ribeirão.
Apesar da aflição da mãe, escapava com a turma da rua e era um tal de nadar pra cá e pra lá, diversão garantida nas tardes quentes de verão.
Por sorte, todos os que iam sempre voltavam. Um arranhão ou outro, coisa boba.
Não era um craque na bola, mas a pelada com os moleques era sagrada e, por isso, nunca passou vergonha com a bola nos pés.
Tênis não jogava. E pra isso tinha sempre uma desculpa que nunca causou estranheza.
Sabia usar os talheres.
Era muito educado.
Falava inglês e já visitara alguns países.
Jogar golfe não combinava com seu jeito quase desconcentrado de ser. Era o que ele imaginava que os outros pensavam, mas era exatamente o contrário.
Tão calado e misterioso, poderia ser um bom parceiro!
Andava de bicicleta. Fácil.
Comia frutos do mar com requinte e moderação.
Nunca falava de seus colégios. Nunca falava de seus acampamentos ou de suas lembranças da Disney, de suas viagens, da casa dos avós.
Nunca mostrava fotos de sua turma ou de seus irmãos. Tinha uma foto com a mãe e o pai, a quem lembrava muito, tão descontextualizada que nada se poderia concluir.
Era calado. Fazia parte de sua elegância.
A sua eloquência guardava para o seu analista, com quem falava, chorava, desabafava, sorria, repensava, mas até onde se sabe nunca foi capaz de resgatar a verdade.
Entre os seus, de agora, não pegava bem ter sido pobre. Nadar em ribeirão, morar em vila, estudar em escola pública e nas férias vadiar roubando frutas e procurando mamonas para o estilingue.
Era apenas elegante.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O menino da feira

Gostava de sentar e olhar o tempo perdido em seus pensamentos, desde menino.
Naquela época rabiscava o chão com um graveto qualquer, agora brinca com as correntes de ouro penduradas no mesmo pescoço branco, só crescido.
Nunca tivera sorte na vida. Era um moleque magrelo, canela fina e apesar de sempre ter comida na mesa, o bife era pequeno e de vez em quando e, fruta, só as mangas do quintal.
Nada daquelas maçãs de conto de fadas que via na feira, ou os morangos das caixas que às vezes carregava na mão, como preciosidade.
Jogava bola com o Tadeu, mas nunca tiveram uma bola nova igual a do Rodrigo, que jogava sozinho, feito bobo dentro do quintal.
E bicicleta então, ah que vontade de ter uma novinha, cheirando a plástico da fábrica, a óleo igual de carro.
Bicicleta até o Tadeu tinha e até o deixava andar, mas era comprada de segunda mão e já tinha sido do irmão do Tadeu, vê lá se isso dá algum gosto?
Agora, de vez em quando conta as correntes e pensa em comprar mais uma, bem grossa, e aí usar só ela.
Ia à escola, mas tinha tanto sono que tudo embaralhava. Ser pobre não é defeito, dizia sua mãe. Mas ela nem tinha estudado, não sabia nada da vida, escutava essas coisas na igreja e repetia. Talvez pra doer menos. Era inocente sua mãe.
- hei menino, tá no mundo da lua, é? quanto cobra pra levar meu carrinho de feira até em casa? Moro depois da linha, deve dar uns cinco quarteirões...
Demorou pra responder, despertado de sua decisão, mas a resposta foi firme, como se preparada em banho maria como o pudim de muito de vez em quando.
- hoje não vou cobrar nada não, também moro lá praqueles lados e não vou mais trabalhar aqui de levar carrinho de feira, mas bem gostava se a senhora me desse um moranguinho desses...
Eduardo, é assim que as pessoas pensam que ele se chama.

  

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mimado

Mimado.
Tinha fomes específicas.
- não quero almoçar isso, quero macarrão com molho de atum
E ela, tão solícita, apesar do  branco do arroz ofuscar, do strogonoff amaciar qualquer estômago, relativizava o pedido fora de propósito
- ah, é assim mesmo, às vezes a gente tem fome de alguma coisa e outra até dá enjoo, eu sei bem como é, e é tão fácil de fazer, leva tempo nenhum...
- a senhora sabe como é? sempre provocava a filha mais  velha inconformada, a senhora que cresceu à base de polenta sabe como é? mimado, esse cara é mimado isso sim que ele é
E foi assim aos dez, aos quinze, aos vinte quando voltava nos finais de semana, aos trinta quando vinha só no Natal, e quando teve que vir fora de época porque...

Ficou na cozinha, mexeu nos armários, nas panelas, nas gavetas, fritou um ovo de qualquer jeito e foi misturando num tanto de arroz que jazia na panela, porque jazia para sempre os seus mimos numa lembrança qualquer.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O cão

Era religioso apenas com o horário de passear com o cão.
Não importava chuva, chuvisco, garoa. Noites estreladas e noites quase ensolaradas no horário de verão.
Mais que um passeio era uma rotina de oração aos seus pensamentos, que podiam se concentrar no vazio de apenas ser e caminhar.
Uma prece por noite. Um cansaço revigorante escondido atrás do que diziam ser um excelente exemplo de dono de bicho. De um cão saudável e feliz.
Tempo e terço, contas rezadas solitariamente.
Quando o cão adoeceu as preces se misturaram e ficaram confusas.
Quando a coleira sobrou inerte na área de serviço ele voltou a ser ateu.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Anastácia

Anastácia bordava, mas não vivia. Narrava uma biografia que construíra para ter a ilusão de uma vida melhor.
Cada ponto no tecido uma cena.
A garota sentada aos pés, descabelada e com a boca suja de manga gostava de ouvir as histórias, mas não sabia se acreditava.
Capítulo Um.
Eu nasci no mês mais lindo do ano, maio, mês das noivas...
- mas você nem casô Nastácia...
Não importa! Eu era uma bebê linda e gorducha de cabelos loiros, cheios de cachos e olhinhos bem azuis!
- mas você nem é dessa forma Nastácia, tem olho preto, cabelo preto...
Antigamente as crianças nasciam assim, bem lindas e depois iam mudando, não vê que hoje ainda algumas crianças nascem carecas e depois ficam bem cabeludas?
- mas olho muda de cor?
Eu era a caçula de cinco irmãos meninos e meu pai me tratou sempre como uma princesa!
- e princesa não tem coroa não Nastácia? cadê a sua?
Anastácia balançava a cabeça, nem que sim nem que não.
Um ponto forte, um ponto frouxo.
Deixa pra lá moleca, vai arranjar o que fazer!
Capítulo Dois.