terça-feira, 30 de novembro de 2010

Diário Resgatado

01/02/05 07:33 cama nova para Valentina... ela ficou muito feliz, mas faz uma bagunça na hora de dormir! alcança tudo sobre a cômoda, ontem derrubou um copo com água, um esparramo!
ontem foi o primeiro dia de aula de Antonella no colégio novo, Divina Providência (espero que o nome faça jus)

o que ela mais gostou, nessa ordem:
da biblioteca
do playground
da classe e,
da cadela

a biblioteca me emocionou, gostar de livros, gostar de ler me salvou a vida inteira e o gosto dela pelos livros me alegra, me tranquiliza, me
anima, me dá esperanças

playground e classe, normal
a cadela mora na entrada do colégio e segundo ela, ontem ela não teve
oportunidade de passar a mão, mas hoje, com certeza, vai tentar!!!

quando eu disse que havia ficado com saudades dela, pensando nela lá
na escola, com gente que ainda não conhecia ela me disse, firme como
uma rocha:
- mãe, não precisa né, a escola é o escritório da criança...

mais uma lição

Valentina segue falando tudo o que guardou esse tempo todo, e me
emociono cada vez que descubro que ela sabe falar coisas que eu nem
imaginava e que articula e que pensa e que já "trama"

quer ir cedo para a cama (porque é nova) e tarda a dormir está cada vez mais loirinha e linda e brava que não sei se terei forças para enfrentar

uma coisa é certa: estou cercada de vida inteligente e isso me deixará
jovem para sempre

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Luta


E quando quero estar feliz, mas uma tristeza me invade, ocupa cada espaço desprevenido e não vai embora?
Fico atônita.
Penso em rabiscar um verso.
Depois quero ler um livro e quando já estou em casa isso é tão fácil.
Mas essa tristeza não escolhe lugar.
Estou entre amigos escolhendo o que comer no almoço e de repente, ela me agarra um pé.
Em outras, em uma loja nova, cercada de estímulos por todos os lados e de um corredor a outro, um vão de espelho me assusta e quem vejo? Eu? Não. A tristeza escondida em meus olhos, fazendo tudo para se mostrar.
E quando quero gritar que não posso mais carregá-la comigo e os sons todos se tornam muito mais alto que minha voz muda?
Quero ouvir uma música. Uma música qualquer. Quero cantar uma música.
Quero rezar uma reza, resgatar uma foto engraçada, chamar uma amiga pelo celular.
E nada faz passar.
A tristeza é cíclica? Ela vem e vai? Não fica lá nem cá para sempre?
E quando quero estar feliz, mas um suspiro profundo vem me dizer que apenas espere, que não faça força, que a quietude ajuda, que a serenidade repousa em algum canto do meu coração, mas que já já vem me acudir?
E quando fico atônita e penso em rabiscar um verso, mas a tristeza não deixa?
Apenas consulto o relógio e espero, um dia vai coincidir.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Decisão

Escreveu um bilhete apressado.
Letras atrapalhadas, frases mal formuladas.
Correu pela casa reunindo coisas.
Preparou uma mochila infeliz.
Tomou o resto de suco que encontrou na geladeira.
Experimentou um biscoito, murcho.
Cerrou as cortinas, fechou as janelas.
Olhou para a planta desolada no vaso.
Deixou no corredor, na esperança de água de chuva.
Pensou em desligar o relógio da luz.
Releu o bilhete. Pensou em desistir.
Pensou em escrever outro bilhete.
Não podia perder tempo.
Uma buzina lá fora.
Um choro de criança no andar de baixo.
Olhou o porta-retrato no aparador.
Aparando a incerteza.
Quando foi que decidiu?
Por que decidiu?
Onde achou a caneta e o papel para aquele bilhete?
A boca secou, o coração disparou.
Saiu, fechou a porta tão devagar, como nunca conseguiu.
O tempo nublado encobriu também a figura solitária.
Desapareceu na confusão da cidade.
Apesar de nublado não choveu.
A planta ainda agoniza no corredor.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Os meus e os nossos bebês


Isadora
Marina
Julia
Taís
Gustavo
Vittoria
Maria Eduarda
Felipe
Theo
Eduarda?
Nomes de bebês que me cercam.
Alguns já crescidos,
Mas nenhum de aniversário já anotado no calendário.
Outros que ainda nem vi.
Alguns em fotos de sorrisos banguelas.
Olhos que iluminam um futuro que vou desfrutar.
Alguns por chegar.
Aqui, lá e além mar.
Brotam como se flores fossem.
São um recado de que não preciso me preocupar, a vida segue seu curso.
De onde vim para onde vou.
Olho o rosto da minha mãe pequena, do alto dos seus oitenta anos e olho o rosto da minha caçula, do alto dos seus oito anos.
E minha moça, onze, que transformou minha existência.
Antonella, Valentina, não tenham medo da vida, ela escorre feito o riacho que se desvia dos obstáculos sem perder a graça dos movimentos.
Os bebês estão chegando.
Parabéns pra você.
Fada do Dente.
Papai Noel.
Papai do Céu, olhai por nós!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Poesia Velha

Vasculho papéis velhos atrás de uma poesia bonita que talvez eu tenha escrito em um momento inspirado.
Encontro duas respostas: ou nunca escrevi uma poesia bonita ou estou muito exigente e meu senso de hoje me faz mais crítica do que eu deveria ser.
Não encontro as rimas.
Não encontro as palavras finas.
Não encontro as dores de agora naquelas dores que tanto me fizeram chorar.
Ou eu era muito boba ou agora sou muito cética para entender tudo aquilo que marcou os papéis.
Tive uma máquina de datilografar. Por que não a conservei?
Medo do ataque das teclas ensandecidas e esquecidas.
Uma máquina nos enfrenta porque depois que nos entregamos aos seus registros, o que resta é rasgar o papel. Não se apaga como agora.
Teclas duras que exigem esforço e rapidez.
Mãos endurecidas.
Vasculho inutilmente papéis velhos.
No futuro hei de vasculhar arquivos.
Tão frágeis e apagáveis.
Apagáveis? Se não está segura uma tecla de busca.
O dicionário me olha inconformado.
Sou um bicho estranho abrindo esse livro pesado. Olham-me de rabo de olho.
De onde saiu essa?
Dias apagados.
Dias de chuva no final da primavera.
O verão espera lânguido a sua hora, enquanto eu vasculho os papéis.
Se encontrar, talvez tenha pudor de revelar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ritual

Não tenho um ritual de beleza.
Não descobri isso hoje, mas hoje isso me saltou como uma onda.
Perco amigos por piadas, mas não deixo que me percam, portanto, podem concluir que não tenho um ritual de beleza porque não tenho beleza.
Eu não me importo.
Gosto do banho e dos bons óleos pós-banho, é um processo só e economiza tempo.
Aliás, falando em tempo, ele me manda recados o tempo todo.
Uns fios de cabelo branco me acenam quando me penteio em frente ao espelho.
O desenho dos olhos quer escorregar cada vez mais em direção à boca.
As sardas quase sumiram ou foram encobertas por pele velha?
Não, que isso já é exagero, faço limpeza de pele.
E preciso das unhas sempre feitas. Os pés nas mãos dos podólogos.
O que não tenho é um ritual de beleza com um arsenal de cremes para tudo.
Mas uso protetor solar.
O que tenho é um ritual de coração.
Quando o tempo me olha complacente e me concede alguns minutos eu agarro uma das meninas e cubro de beijos.
Deito no sofá com uma delas no colo - que uma sempre me escapa - e peço uma história.
Olho seus desenhos, ouço histórias do dia a dia da escola.
Faço caretas. Disputo com elas o Enigma da Revista Recreio.
E se elas não estão sempre posso passear com o cachorro ou um jogar uma bolinha de papel para a gata.
Tenho um ritual de oração.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Novembros

Os novembros vão e vêm.
Uma de minhas amigas de adolescência, a Fátima, faz aniversário no dia 24.
Eu não a vejo há muitos novembros e tenho muita saudade.
Alguns novembros são de alegria, outros nem tanto.
Eu tenho pena dos meses de novembro.
Eles vivem entre a alegria do outubro, mês do dia de Nossa Senhora da Aparecida para os católicos, do dia das crianças, do dia dos professores e a euforia do mês de dezembro que dispensa apresentações: festas, presentes, alegria e esperança.
Os meses de novembro carregam o ônus da tristeza pelo dia dos mortos - aqui no Brasil - e de tempos em tempos pela dureza das eleições.
Vozes ásperas.
Os novembros vêm e vão. Como os cavalinhos do carrossel que não tem outra opção a não ser resignarem-se aos seus destinos certos, circulares.
Novembro tem trinta dias. Ele pensava ser mais feliz.
Em novembro aconteceu o episódio conhecido por Massacre de Jonestown, induzido por “Jim” Jones.
Em novembro morreu Zumbi dos Palmares, aos 40 anos.
Em novembro a cadela Laika entrou em órbita, lançada junto com o satélite Sputnik 2.
Laika não era seu nome e sim sua raça, ela se chamava Kudryavca e morreu horas após o lançamento devido ao estresse e ao superaquecimento do corpo.
Triste, muito triste.
É certo que coisas muito alegres acontecem, e dias interessantes, dia do designer, dia do músico, mas sempre entre coisas sofridas.
Os novembros vão e vêm e assim como as águas do mar eu respeito temerosa e o atravesso em equilíbrio.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aposta

Apostou no verde, mas deu roxo.
Jogou 10 e deu 11.
Nuna nada estava de acordo com o que pensava.
Pensava sim, tão forte que doía a mão.
Resposta: não.
Foi vivendo assim.
Levantando as 6h30 quando tinha sono para dormir até umas 8h00.
Comendo rápido aquela comida sem gosto dos kilos da vida, bebendo um suco sabor amarelo, porque qualquer sabor.
E tudo isso quando tencionava sentar-se e ser servido. Podia ser um alho&óleo, mas em prato bonito. Quente.
Um suco de amora. Não de polpa. Sonhava ver as frutinhas dançando antes da morte violenta no liquidificador.
Apostou no relógio, ganhou um par de meias.
Apostou no convite para a festa e passou a noite de sábado com a única cerveja esquecida na geladeira.
Foi vivendo assim.
Não ia desistir, vai que um dia a sorte resolve... melhor não apostar.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O moço do farol

Dia de muitos afazeres.
Um sol lindo.
Um cheiro de verão que se prepara para chegar.
Tudo ia bem.
Eu ia cantando no carro, na rua que desce com preguiça.
O ar condicionado gelando o espaço pequeno.
E ele estava lá.
Quando parei o carro no sinal vermelho não pude deixar de olhar para ele.
Ele deveria distribuir as balas e os chicletes nos retrovisores, mas estava sem forças.
Sentado no canteiro da árvore silenciosa e constrangida ele tomava um líquido verde de uma garrafa transparente.
Não estava bem.
Sentia uma dor que eu adivinhei e talvez apenas eu e mais ninguém.
Transpirava. Não era só o calor do meio dia.
Tinha dor.
Um moço. Um moço ainda. Braços fortes para vender coisas tão leves quanto balas e chicletes.
Melhor que bala de revólver, mas ele estava doente e eu não fiz nada além de acelerar o carro quando o farol abriu e pedir por ele.
Como saber se meu pedido foi atendido?
Certas coisas nunca se sabe.
Dores diferentes, algumas passam, outras apenas se retiram por um tempo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Não podia dormir sem rezar.
Mas sempre rezava com sono e por isso, tinha a impressão de que as preces valiam menos.
De manhã acordava disposta, mas aí não se lembrava de rezar, era tanta coisa pra ajeitar.
Conheceu a mulher loira, simpática, que lhe disse que rezava no trânsito, de manhã, enquanto ia para o trabalho.
Achou uma boa idéia, mas não era tão zen.
Logo na primeira tentativa alguns palavrões de trânsito se misturaram às preces e ponderou que era bem pior do que rezar com sono.
Comprou um santo e o instalou na mesinha de cabeceira.
Disseram-lhe que santo não funciona sem uma vela acesa, mas tinha medo.
Tanta gente morrendo em incêndios causados por vela.
O santo ficou lá, olhando para ela e para o relógio e colares que tirava a noite para dormir.
Foi então que ganhou o santinho com o cordão e achou que tudo se resolveria.
Não tirava mais do corpo a não ser por poucos minutos, durante o banho.
A amiga recomendou benzer. Ela não ia à missa. Então a outra ofereceu-se para fazer isso por ela.
Desconfiou.
Ficou de pensar.
Escondeu a medalha no sutiã e não se falou mais nisso.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Asa quebrada

Menina bonita quando chora parte o coração.
O sorriso vai embora, os olhos perdem o brilho.
Menina bonita quando fica doente
Aperta o coração da gente.
Eu quero trocar de lugar
Deixa doer aqui que já sei que vai passar
E eu faço mais força pra dor se cansar e me abandonar.
Menina bonita quando chora derruba orvalho
Menina bonita quando tem dor não quer saber de nada,
Nem mesmo do computador
O livro fica quietinho na mesinha de cabeceira
A luz tão baixa que a Etevalda quase pega no sono
Coruja preguiçosa, sempre na cadeira que se quer ocupar
Menina bonita quando chora parte o coração
Da mãe que está tão longe, mas que já vai voar para carinhar

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Calvin & Eu

Por que o papel higiênico acaba sempre na minha vez?
E a jarra de água na geladeira tem sempre menos de meio copo?
Por que o sabonete acaba na minha vez?
E, na minha vez, a máquina ou sistema param de funcionar na padaria.
Por que, quando não me lembro de onde conheço a pessoa, ela é sempre muito simpática e sempre vem falar comigo?
A fila em que estou com o carro não anda.
A moça do café não olha para mim.
Por que quando preciso falar urgente a pessoa desligou o celular? Se todas as pesquisas dizem que esse aparelhinho fica o tempo todo na mão das pessoas?
Por que quando escolho o modelo do sapato não tem meu número?
E a roupa não tem P? E o moço sempre diz: tem, mas acabou?
Por que quando quero A me oferecem B?
Por quê?
Calvin tem razão quando, em resposta ao pai que lhe diz que o mundo não é justo, responde:
- Eu sei, mas por que ele não pode ser injusto a meu favor?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Coruja

E hoje, o que mais posso fazer a não ser piar do lado de fora de um buraco feito no gramado, ao lado de um arbusto que posso chamar de quintal, se sou a mãe da menina que também adora contar histórias. Como essa, que pode ler aqui, mas que mais vale ler lá, no blog AntonellaNews. Novas janelas, novas palavras, amores velhos mas que não ficam amarelos e não acabam jamais!


Cachorro á vista!
Hoje eu estava lembrando da viagem que fiz para a praia. Fiquei numa pousada linda, e resolvi ver o mar. Mas quando eu voltei, para meu espanto, vi uma cena que parecia coisa de desenho animado: meu cachorro, Haku, NO TELHADO. Sim. O danado estava lá, andando com dificuldade sobre as placas do telhado da pousada. Aí pensei: "Nós devemos ter esquecido a janela do andar de cima aberto!". Isso porque a tal da pousada fornecia quartos com dois andares. Corremos, eu e minha família, para o bendito andar superior e o chamamos de volta. Ele voltou, pelo mesmo caminho que fez para ir. E adivinhe! Haku pulou na cama para saltar pela janela. Mas cada uma...http://antonellanews.blogspot.com

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Quintal

As frutas do meu quintal.
Tantos quintais. Dentes de menos, sardas de mais.
Mexerica. Pequenas e azedas.
Difícil descascar, gostoso sentir o maxilar se arrepiar do azedo.
Caldo escorrendo entre dedos compridos.
E amora.
O pé alto, tão forte, com frutas tão pequenas e delicadas.
Esparramadas no chão. Tingindo a terra de um vermelho de sangue.
Na camiseta? Para sempre.
Depois, manga e pitanga.
Pitangas debruçando na varanda, como quem quer entrar na cozinha para o chá.
Na casa branca, casa de boneca, abóbora que não é fruta, mas que cercava as bananeiras.
Laranjas.
As frutas do meu quintal.
Tantos quintais, nunca iguais.
Depois os quintais foram ficando na memória.
Saí do quintal, mas o quintal nunca saiu de mim.
E agora tudo de novo se renovando.
Não tem terra, mas tem vaso grande.
Hoje tenho no meu quintal jabuticabas que dividimos com os passarinhos.
Pitangas, vermelhas, de um doce azedo indescritível.
Goiaba, manga, limão.
E correndo entre tudo isso duas meninas, uma gata e um cão.
Um mundo inteiro num pedacinho de chão!  

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A reencarnação dos objetos

Algo está errado se reencarnar está associado à carne porque os objetos são coisas.
E reencarnação é o mesmo que Palingenesia – do grego palin que é igual à repetição, de novo, mais genes(e) que é igual a nascimento, portanto,  renascimentos sucessivos dos mesmos indivíduos. E aí pode não ser de carne.

E os objetos sempre carregam almas, eu sei, elas estão lá.
O galho que eu recolhi no interior da Bahia e que me acompanhou por toda a viagem - e depois comigo pelos cantos dos armários até que em uma mudança despedi-me dele com dor no coração do desapego - reencarnou no galho que minha caçula recolheu na beira da praia.
Ela o chamou de Rei Arthur e por todos os dias em que passamos entre sol e preguiça ela cuidou dele como quem cuida de um animalzinho.
Um galho tem alma.
As pedras que meu pai e eu recolhemos por nossos caminhos carregam muito do carinho que nos uniu.
As pedras não têm filhos.
As pedras não têm lágrimas.
As pedras não têm alma para quem não sabe olhar.

O Rei Arthur ainda não reencarnou em nenhum outro galho que tenha cruzado nosso caminho em um passeio ou viagem de férias. Pode ser na próxima vez.
E é a reencarnação porque não é qualquer galho.
Um galho nos salta aos olhos e nos fala ao coração.
Por desapego não podemos colecionar e porque não os colecionamos enfeitam nossa existência e assim vamos acreditando nas coisas que nos ensinam os nossos corações.
É uno.
Mas me vejo em meus iguais.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Desesperança

A saia rodada, o cabelo enrolado.
Dedos esticados e a mão sempre alerta.
Pegava sonhos em qualquer lugar.
E tinha olhos de um castanho raro.
Que olhavam muito mais do que queriam ver.
E tinha a pele aveludada.
Branca no inverno, menos branca no verão.
Mas branca.
Como branco era o sorriso. Fácil.
A saia rodada confundindo o medo.
O cabelo em espera sinuosa.
Sonhava em terceira pessoa, esperava sempre mais.
Os olhos castanhos não perderam o brilho,
Mas perderam o rumo quando o futuro chegou.
A pele aveludada perdeu o viço.
O sorriso não desapareceu, mas ficou menor.
Os sonhos em terceira pessoa ficaram pelo caminho.
O futuro chegou torto, de um jeito diferente.
A saia rodada ficou emoldurada na foto.
O cabelo enrolado em um coque.
Não há mais nenhum sonho em nenhum lugar.
E a vida caminha sem sair de seu trajeto.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Autor

Queria contar uma história bem longa, mas não tinha tempo.
Pensou em escrever um livro, com capítulos, escreveria aos poucos e assim poderia escrever tudo.
Levava bloco e caneta e anotava idéias.
Nunca deixou de anotar nada do que lhe parecesse bom para o livro.
O primeiro personagem, Eustáquio.
Quem era ele? Um marceneiro.
Ou talvez um eletricista.
Lembrou-se do moço que fora consertar o chuveiro.
Fazia pequenos consertos, mas também trabalhava na prefeitura com a fiação elétrica e também estudava. Fazia faculdade - engenharia elétrica - e pretendia trabalhar nas usinas hidrelétricas.
Não era um personagem, era um moço que tinha estado em sua casa. Com planos, com objetivos muito claros.
Deixou o Eustáquio de lado.
Não poderia escrever tanto sobre um único personagem sem que se envolvesse com outros.
Outra hora anotou que a mulher de Eustáquio poderia ser a Daniela.
Moça morena, trigueira, faceira. Hum, bonita demais?
Não. Elas existem, são assim mesmo. E são carinhosas.
As moças das revistas são diferentes.
E, seguramente, são mais tristes que a Daniela do Eustáquio porque se forem a uma festa e não saírem na revista da semana a depressão é grande.
Guardou o bloco. Tampou a caneta. O trem já estava quase chegando e ele tinha tanta coisa pra fazer no cartório.
O nome do primeiro bebê que registrou naquele dia... Eustáquio.
Levou um susto, levantou os olhos do computador e olhou para o pai que, meio sem graça, justificou:
- é, feio, esquisito, mas sabe como é, é o nome do meu sogro, morreu sem conhecer o menino, vamos chamá-lo de Neto
Apenas sorriu. Pensou em falar sobre o bloco, o sonho, o personagem, mas a fila estava grande e ele apenas finalizou o documento. 

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

E assim foi

Ele era alegre, mas de vez em quando ficava triste. Isso é normal. Acontece com todo mundo.
Ele não gostava muito do nome dele, mas também isso não era importante. Ele tinha muitos apelidos.
Na escola um, em casa outro, no trabalho um terceiro. Ele se divertia e estranhava quando, na sala do médico, alguém o chamava pelo nome.
Tinha também um sobrenome.
Tinha visto num filme ou lido em algum livro um personagem que dizia que era melhor ter um nome comum. Para os que têm nome comum nunca há muita expectativa e por isso vivem melhor, mais para si.
Mesmo alegre ele foi ficando cada vez mais triste. Já não parecia tão normal, mas não sabia se acontecia com todo mundo ou só com ele. Não queria perguntar. Não tinha com quem conversar sobre isso.
Algumas pessoas observaram, algumas fizeram uma graça ou outra com esse estado de espírito, mas depois o deixaram em paz.
Ele já não tinha ânimo para o trabalho, mas não deixava de cumprir todos os compromissos.
Já não tinha mais vontade de ir ao jogo de futebol. Ficava trabalhando até mais tarde e depois escorregava para casa, torcendo para não ser visto pelos amigos.
Já não se ocupava em programar o final de semana. Preferia ver um pouco de TV, ficar quieto no quarto e só.
A mãe também não se importou.
Ela também tinha um nome bem comum.
Ele foi ficando cada vez mais triste. Um aperto no peito. Comprou uma camisa. Não melhorou.
Foi ao cinema. Filme bom, mas...
Folheou umas revistas. Deitou e não conseguiu dormir.
As costas reclamaram de tanto descanso. Pensou nos comprimidos que a mãe tomava para dormir.
Resolveu tomar um.
Demorou pra fazer efeito, tomou mais um, e outro e mais outro, tomou quase o vidro todo.
Deitou e dormiu para sempre.
Foi assim que ele morreu, o Adamastor.
De uma tristeza que não se identificou.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E foi assim

Ela não gostava de seu nome, mas ninguém precisava saber disso.
Quando se apresentava ela o dizia em alto e bom som, com firmeza, por isso ninguém suspeitava.
Ela não gostava de ficar sozinha.
Estava sempre agarrada à saia da mãe quando era bem pequena e quando foi crescendo foi se cercando de primos, primas, irmãos, amigos.
Depois namorou e casou cedo.
Desse primeiro casamento teve uma filha.
Por que não gostava de ficar sozinha, depois que se separou logo arrumou um namorado.
E depois outro, mesmo ainda tendo o primeiro.
Não gostava mesmo de ficar sozinha e não gostava de seu nome.
Um dia, ela estava sozinha no carro, mesmo não gostando de ficar sozinha.
Voltava não se sabe de onde, talvez de uma reunião, talvez de uma conversa animada com a mãe, talvez de um encontro romântico, talvez de uma reunião na escola da filha. Não se sabe.
Não gostava de ficar sozinha, mas nem por isso compartilhava tudo o que andava fazendo.
Só se sabe que um dia, quer dizer uma noite, ela chegou sozinha de carro.
Esses detalhes foram contados pelo Seu José. Ele viu quase tudo e não pode fazer quase nada, a não ser lamentar.
Pois então, ela chegou sozinha de carro e enquanto esperava o portão abrir o sujeito apontou a arma e pediu o carro.
Ela nem abriu o vidro, o portão acabou de abrir e ela entrou de uma vez. Estacionou.
O Seu José ficou encolhidinho na cabine, ia chamar a polícia, mas não viu mais o sujeito, esperou um pouco até tudo se acalmar e ia interfonar para ela antes de qualquer coisa.
Ela também deve ter esperado um pouco no carro.
Depois deve ter descido devagar porque para alcançar o elevador era preciso passar em frente ao portão.
Andou com firmeza, pensando que o susto tinha passado, mas não!
O sujeito estava lá, agachado, bufafa de raiva e não hesitou em atirar.
Foi assim que ela morreu, a Quitéria.
Ela não gostava de ficar sozinha, mas não ficou. Deixou outros para trás. Muitos outros.