quarta-feira, 30 de junho de 2010

Oração

Ajoelhou-se para rezar porque a mãe estava vigilante.
E como percebia que ela o olhava pelo rabo do olho (quem inventou essa história de por um rabo em olho, que é órgão tão poético do corpo humano?) começou a balbuciar qualquer coisa.
Não gostava de rezar, mas a mãe explicava coisas de Jesus.
Entendia mais ou menos quem tinha sido esse cara, mas depois de tantos anos, será que ele ainda rondava por aí para se certificar de que as pessoas continuavam a amá-lo?
Tudo agora é tão diferente.
Não sabia se esse é o mesmo cara em todas as igrejas, se sim, por que tantas diferentes?
Mas a mãe não queria nunca explicar.
Não estava seguro se porque de fé cega não cogitava nem questionar ou se porque pressionada não saberia explicar uma porção de coisas.
Ele sempre desafiava em suas orações: se eu rezar uma ave-maria e um pai-nosso amanhã a professora de matemática vai faltar e a prova será adiada.
E cada vez que ele desafiava e nada acontecia desacreditava um pouco mais.
Mas não ousava contar isso para a mãe.
Seguia seu ritual de ajoelhar-se ao lado da cama antes de dormir, balbuciar uma coisinha ou outra, fazer o sinal da cruz ao acordar e ao passar em frente a uma igreja e isso era tudo.
A mãe prometeu comprar-lhe um terço de prata quando fizesse treze anos, mas ele preferia mesmo umas edições atrasadas de mangás.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Indiferença

Todos os assuntos foram se acumulando na mesa empoeirada.
Todos os cafés foram tomados, alguns mais quentes, outros mais amargos.
Todos os cigarros foram fumados, alguns até queimar os dedos, outros pela metade.
Todos os telefonemas foram registrados em recados eletrônicos nunca ouvidos.
Todas as queixas foram anotadas.
Todos os sonhos foram se empilhando na cadeira de palha.
Ia sair mas começou a chover. Olhou a rua mal iluminada pelo poste solitário, as gotas tentando limpar o vidro empoeirado da janela.
Escolheu um sonho e se agarrou a ele.
Riscou a primeira queixa que tentou interferir.
Ouviu o último recado deixado e ponderou.
Limpou o cinzeiro e resolveu que não ia descer para comprar outro maço.
Trocou o café pela água com gás que estava esquecida na geladeira.
Um assunto de cada vez.
Ia apenas ver um programa qualquer na TV.
Na manhã seguinte, esvaziar a mesa, ler todos os recados e recomeçar.
Se alguém tivesse se lembrado de agradecer ou parabenizar tudo teria sido diferente.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

recolho palavras

gosto de andar em silêncio entre a multidão
perdida no meio de gente que anda apressada
apreensiva com o vai e vem
senhoras em agasalhos esportivos
para quem a aposentadoria já chegou
mas e os sonhos? se realizaram?
algumas de cabeça baixa, um filho que se foi?
uma conta pra pagar?
grupos de pessoas que saem dos escritórios para almoçar
lagartos procurando o sol
ruas transformadas em calçadas, confusões de carros e
saltos que evitam os buracos
gosto de andar entre essa gente que vai perdendo palavras pelo caminho
vou recolhendo
palavras duras
palavras sussurradas
palavras que sem o contexto pedem uma poesia
uma esmola
um aconchego
palavras que ficam perdidas no ar
eu recolho palavras
tenho um monte delas
fico aflita quando perco uma
ou quando percebo que ela está machucada... o selviço acaba hoje
dói em mim
e a repito baixinho, mais de uma vez, com bastante carinho, até que recuperada eu a deixo livre
gosto de andar em silêncio entre a multidão
abarrotada de versos que um dia vou compor

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Será que vai chover?

Quando me casei ainda cursava a faculdade.
Não porque me casei jovem, mas porque fui mais tarde do que o normal para a faculdade.
Então, não sofremos de imediato a pressão do: quando vem o bebe?
Por parte de nossa família também não.
A minha porque já tinha vários bebês, não havia ansiedade e porque sempre lidamos bem com perguntas e respostas.
A de meu marido, apesar de ser o primeiro neto, porque respeitava nosso espaço, nossas decisões, também nunca nos cobraram.
Mas, chega uma hora, que não dá mais.
Terminada a faculdade, passado um ano, dois, três, ainda vai. Mas nove?
Tem alguma coisa errada e a enchurrada de perguntas é inevitável.
As reações sempre foram das mais cândidas às mais irritadas, por vezes, muitas vezes, chorosas quando já escondida no banheiro ou sozinha em casa.
Quando engravidei foi um alívio para todo mundo.
Mas a coisa não para por aí. Depois do primeiro bebê:
- não vai ter irmãozinho?
Na segunda gravidez, alívio para o irmãozinho e quando nasce outra menina:
- não vai tentar um menino?
E a vida segue. Para algumas pessoas é só um jeito de puxar conversa, quase como será que vai chover?
Mas para outras, pode deixar cicatriz. Todas as perguntas, antes da respostas, merecem uma reflexão.

terça-feira, 22 de junho de 2010

despedida

- você me espera?
- por quanto tempo?
- quem pode saber?
- mas tanta coisa pode acontecer, com você, comigo, como posso prometer?
- promete, se não der pra cumprir tudo bem
- mas não vou me sentir bem
- isso é culpa de católicos, você não é católica
- mas quem disse que isso é de católicos? eu me sentiria mal
- me espera, não pode ser tão ruim assim
- mas e se demorar muito?
- quem pode saber?
- você deveria...
- não, só quem sabe tudo é deus, se eu sair agora e for atropelado tudo terá acabado
- é, tem razão, e não terei que esperar nada
- você me ama?
- muito e você?
- eu também, na verdade eu sinto uma coisa que não sei bem definir, não sei como é amor, amor
- entendo, eu também não sei muito bem
- antes eu ficava desesperado por alguém, queria muito, muito e depois que conseguia, ia enjoando, enjoando e acabava
- eu sei como é
- agora não, quero ficar perto, cuidar de você, saber das suas coisas e não enjoo, tem sempre alguma coisinha mais
- por isso você quer que eu te espere?
- claro, se eu voltar e não estiver mais, o que eu faço?
- ah, encontra outra moça
- igual você não tem
- então tá bom, eu te espero, prometo, mas e você? promete que vai voltar?
- ah, mas isso é coisa que se pergunta? é claro que eu prometo, já tá prometido mesmo antes de partir
- e quando você vai?
- na terça
- porque na terça?
- não gosto das segundas, quarta é a do meio, quinta já é mais pro fim do que pro começo, na terça quase tudo passa em branco
- será?
- é, é sim
- mas dessa terça a gente não vai esquecer, não vai passar em branco!
- só enquanto eu não voltar, depois a gente esquece
- e quando voltar vai escolher que dia?
- sábado, sábado é dia de sol
- ah, é? sábado passado choveu
- mas desses a gente esquece, vou voltar em um sábado de sol
- vou te esperar

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Que futuro?

Tinha feito uma boneca de batata e uns pauzinhos que encontrara no quintal.
Ela já estava ficando arroxeada, então, era preciso uma caminha com algum resto de pano que a mãe deixara perto do tanque.
O pauzinho molhou, inchou e por isso, amputar a perna.
A boneca estava perdendo as linhas que lhe serviam de cabelo.
Ah, como a vovó Sonia que além de doente ficou careca.
Pobre boneca, iria viver tão pouco e por isso mesmo apertou-a com carinho em seu peito.
A camisetinha branca ficara manchada. Alguns furinhos. As outras meninas davam risadas.
Quis dar um beijo na boneca e teve um pouco de nojo.
Mas depois, lembrou-se que o vovô Otávio lhe beijava as bochechas mesmo quando a mãe lhe acudia limpando o nariz escorrendo.
O que significava que quando uma pessoa gosta da outra gosta até mesmo das suas melecas.
Apertou a batata inchada contra os lábios.
Pegou uma canetinha vermelha e alargou-lhe os lábios, ampliando seu sorriso:
- patrícia, esse pode ser o seu nome, e mesmo doentinha você precisa ficar feliz porque a mamãe te ama viu?
Continuou brincando.
A mãe, de vez em quando, espiava pela janela, estava costurando, reformando uma camisa, encurtando uma calça para transformar em bermuda, tirando a manga de um vestido pra lhe dar uma outra cara e aguentar mais um verão.
Os olhos nem tinham tempo para encher de lágrima.
A boneca de cabelo, praticamente na caixa, espiava com inveja da patrícia.
- mãe posso brincar com a Regiane?
- quem é essa?
- minha boneca de cabelo
- ah, não, vai sujar, olha só sua mão! deixa ela aí enfeitando a sua cama
- mas mãe, a patricia morreu, eu tô triste e ela também, olha só a cara dela, sufocada nessa caixa!
- e se estragar?
- e se não estragar e eu crescer infeliz?
- pode pegar, pode ir, mas lava essa mãozinha!
Sorrisos se abriram, o coração da Regiane disparou.
A mãe não conseguia abandonar seu passado tão presente de privações e reservas para o futuro.
Que futuro?

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Luto

De luto e em silêncio por JOSE SARAMAGO.
Seria uma heresia desenhar palavras, ainda que para ele, heresia não coubesse no contexto.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A lua e eu

Corto a estrada.
Noite fria de outono.
Há outros carros, mas não estou interessada neles.
Sei os trajetos, as ultrapassagens, os descuidos.
Sei de tudo.
O que me distrai é a lua.
A lua pisca para mim já na saída da cidade.
Ela sabe que pode me guiar.
Ela sorri.
Ela sorri um sorriso luminoso e me convida a esquecer os atropelos do dia a dia.
Tem alguém mais apressado?
Pode passar. Eu conheço as regras das pistas de rolagem.
Ela me acompanha. Brinca comigo nas curvas.
Posiciona-se para me surprender quando penso que já ia desaparecer.
Olho pra ela.
Encantada como se estivesse em uma lenda indígena.
De repente dou de cara com ela.
Surge brincalhona, nem preciso saber em que quilômetro estou, sei que vou chegar.
A lua não me deixa esquecer que tudo o mais é tão pequeno.
Que não importa que língua eu falo, que história eu conto, que dança eu danço, que cor eu gosto.
Ela está acima de qualquer coisinha dessas e não se importa, não quer nada em troca.
Desconfio que ela e eu gostamos da mesma frase de Clarice:
Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Eu não desenho

Não sei desenhar.
Os desenhos me perturbam.
Quando eu era criança, na catequese, a lição era desenhar uma santa ceia.
Quem em seu juízo perfeito pode pedir isso?
Fiquei apavorada.
Era muito aplicada até nas lições da catequese ou seja, fiquei apreensiva com um dever que eu sabia que não seria capaz de realizar bem.
Minha irmã Lúcia, mãos de fada para desenhar.
Eu sempre admirava uma casa linda, enorme que ela havia desenhado e escrito la maison, assim, em francês, bem chique.
Pedi a ela que desenhasse a tal santa ceia. Desenhou.
Caprichada, detalhada, mas para mim, horrorosa. Talvez porque eu não tivesse feito.
Talvez porque fosse bem diferente das linhas retas de la maison.
Eu sempre tão porco espinho!
Joguei o caderno no chão, rasgou, tentei apagar, ficou sujo. Um caderno retangular, com capa vermelha de camurça, em quanto tempo terá sido consumido? Gostaria de tê-lo agora.
Meu pai, um desenhista habilidoso. Brincava com as duas mãos, desenhando figuras diferentes ao mesmo tempo em ásperos papéis de pão. Desenhava árvores lindas e talvez por isso, em um exame psicotécnico de renovação de habilitação a psicóloga pediu: desenhe uma árvore e um homem.
Fez a árvore. Entregou. Onde está o homem? Pergunta com um misto de enfado e irritação.
- atrás da árvore, é tímido...
Mas em segundos, com o papel de volta, desenha um homem. Não uma bolinha com pauzinhos representando pernas e pés.
Os desenhos que encontro em minha casa.
Eu mesma retratada por meu amado, me achando linda, e ele: ah, não é nada, foi olhando uma foto.
E minhas pequenas? Mãos ágeis mas de movimentos suaves, traços firmes. Detalhes. Caminhos que me cercam de desenho.
Desenho apenas palavras mas nem sempre elas me bastam e por isso, continuo parasita dos traços dos que amo e dos que me amam porque sempre muito generosos.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Você existe?

Sonho que conheci uma mulher,
De pele branca e cabelo escuro,
Longos cabelos, como eram longas as suas saias
E olhar profundo, como profundo eram os sentimentos que levava no coração.
Talvez por isso andasse mais curvada que curvilínea
Sorriso que antes de ocupar o espaço pedia desculpas
E sonho que essa era a mulher mais inteligente que já cruzara meu caminho
E meu enigma era entender porque nem toda gente via isso e porque, ela mesma, escondia-se atrás de si mesma.
Será que se escondia? Ou será que eu não a descortinava?
Mulher de um carro só, de direção única, de levar qualquer porta de Kombi que se atrevesse a abrir-se em sua frente.
Mulher de pensar falando sem correr o risco de magoar ninguém porque de pensar suave
E tão forte como nunca vi igual.
Sonho que conheci uma mulher singular que me presenteou com um botton (broche para mim e para ela que não somos mais que caipiras) que dizia:
cuidado, sou adolescente
Quando engravidei
E já pressentia o que me aguardava porque sorrindo depois me dizia: você não tem uma filha, você tem um case
E falava outras coisas, algumas impublicáveis, que bem começavam com im para definir mulheres de fino trato.
Sonho que conheci essa mulher e que ela não fugia dos meus emails
Será que voltou para a França? Porque a mulher que sonhei conhecer esteve lá para descobrir plus de vie
E essa será a minha busca, alguém pode tê-la visto em algum lugar, mesmo que através de um espelho falso.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Enigmático

Aprendi o significado da palavra enigmático em um conto, em um livro de escola, quando estava no quarto ou quinto ano escolar, já não me lembro.
Chamava-se O Pombo Enigmático e contava que um pombo ia se casar com uma pombinha.
Ela estava nervosa e andava de um lado para o outro porque o noivo estava atrasado.
Impaciente, chorosa, ela já estava indo embora quando ele chegou, caminhando suavemente e quando ela lhe indagou o porquê do atraso ele simplesmente respondeu:
- a tarde estava tão linda que eu resolvi vir caminhando...
E era isso. O enigma era a escolha que ele havia feito, não havia a palavra enigmático no meio da história e nem era preciso.
Nunca mais perdi de vista essa palavra.
Sempre fui solidária com a escolha do pombo enquanto todos achavam um absurdo.
Recolhi meus comentários, olhando pela janela alta, aquele retângulo de céu azul, fiquei ausente da discussão acalorada de meninos e meninas em um embate que não era a questão central.
A tarde, para mim, é sempre tão linda, tão azul, que continuo caminhando e não sei bem se um dia cheguarei.
* O Pombo Enigmático é um conto de Paulo Mendes Campos

sexta-feira, 11 de junho de 2010

As vidas que desconhecemos

Achou que tinha apenas cinco minutos mais e precisava registrar suas memórias.
Ligou a filmadora, apoiou na beirada da mesa, sentou-se no sofá que arrastou sem esforço para ficar no ângulo.
Ajeitou o cabelo, molhou os lábios com a língua e apertou o botão.
A luz piscou, intermitente, até disparar sua função "gravar".
Ninguém estava lá para gritar: ação, gravando e então disparou.

- nasci pequena, tão pequena que minha me enrolava muito nos cobertores de flanela que não me lembro como se chamam com medo de que eu escorregasse quando alguém me pegava no colo -
fui uma bebê sossegada que mamava e dormia e fazia muito, muito coco, de tal sorte que minha mãe, marinheira de primeira viagem, me levou ao médico achando que eu não ganharia peso nunca porque não devia ter alguma coisa que regulasse ou se aproveitasse do alimento - quanta ignorância... mas eu cresci, não muito como se vê até hoje, mas sempre quieta num canto brincando com uma latinha vazia qualquer - sem irmãos para atormentar minha infância solitária, sob o olhar invejoso da vizinha seca de útero que nunca pode ter filhos - deus sabe o que faz, dizia minha mãe para aumentar as intrigas da ruela daquele bairro esquecido da cidade - fui para a escola e escondida entre os médios desempenhos fui de ano em ano até terminar o colegial e olhar com enfado para a possibilidade de cursar uma faculdade - meu pai, do alto de seu posto estável no banco do brasil não sonhava para mim outra coisa senão passar no concurso e trabalhar com ele, por pouco tempo porque se aposentaria em breve, enquanto minha mãe sonhava me ver casada com o filho do médico que era o homem mais rico da cidade - e não aconteceu nem uma coisa nem outra - adolescente, tímida, escondida atrás de minhas espinhas fugi com o daniel que era filho do dono da marcenaria e voltamos já casados no civil sob protestos, lágrimas e fuxicos, para viver em dois cômodos no fundo da marcenaria - não tivemos filhos e isso sim foi uma benção porque agora estou aqui contanto tudo isso porque vou me matar - vou tomar de um gole só esse copo de veneno e quando o daniel chegar vai me encontrar mortinha da silva porque eu bem sei que ele anda de namorico com a lucila, aquela magricela da padaria mesmo depois de ter me feito juras de amor até me arrastar para a rodoviária, então...
...
- Marlene, cheguei, o almoço tá pronto? Tô com pressa porque o pai vai entregar uma encomenda e eu vou ficar sozinho na marcenaria

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Deixamos passar

cheetah - Valentina


Quando chego em casa as meninas sempre têm uma história para contar, um desenho para mostrar, uma descoberta.
E vivem hiperlinks como ninguém. No livro O Diário de um Banana o personagem narra uma passagem de sua vida, mencionando que tinha medo do escritor Shel Silverstein, uma passagem engraçada, muitas vezes lidas.

Dia desses:
- Mãe, advinha! O Shel Silverstein existe e é mesmo um escritor, um de seus livros mais famosos é A Árvore Generosa, vamos comprar pela internet?
E o mais legal: eu já tenho um livro dele, olha aqui! E me apresenta orgulhosa: Fuja do Garabuja, um livro escolhido lá pelos idos de 2009, quando foi lançado.

De outra feita:
- Mãe, eu quebrei sem querer um garfinho da Valentina e ela foi no meu quarto, rabiscou todo o meu desenho do Naruto e ainda escreveu: o Naruto é um completo idiota!
No que a infratora se defende:
- É, mas você deixou pra extravasar a raiva!
Espero pela palavra final que não demora:
- É verdade mãe, eu editei essa parte pra ficar mais dramático!

Por que é que só percebemos que a forma mais simples de felicidade se apresentou quando estamos lembrando, relembrando, contando e não no momento exato em que a estamos vivenciando?

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sonho, sonho?

- Eu tenho um sonho.
- De doce?
- Não, de ser uma pessoa feliz, tranquila e se fosse de doce eu seria gorda
- Qual é o problema de ser gorda?
- O mesmo de ter o cabelo liso, que quem tem quer ter encaracolado e quem tem encaracolado quer ter liso
- Não, porque quem é magro não quer ser gordo
- O quê? Isso é o que você pensa, trabalhei com um cara que era até normal, mas queria engordar e fazia de um tudo, quando ia na academia, todo mundo falava da taxa zero de gordura como se fosse o máximo e ele ficava deprimido
- Eu queria ter o cabelo enrolado
- E eu queria ter os olhos azuis
- Ah, eu queria ser mais alta, só fui alta quando morei no nordeste, as outras pessoas eram mais baixas que eu
- Mas eram morenas
- É, eu de um branco bem feio, não daqueles branquinhos que deixa as meninas como bonecas de porcelana
- Eu não gosto dos meus pés, não tem curvas, olha
- Nossa, que feio, nunca tinha reparado, mas olha o meu, a curva é tão acentuada que não é todo sapato que fica bom porque fica um buraco aqui
- É mesmo, fica esquisito
- E orelha de abano?
- Eu não tenho, nem você
- É, mas quando eu estava no colégio eu gostava muito de um garoto, ele era lindo e inteligente mas eu nunca namorei com ele porque ele tinha orelha de abano e todo mundo ria dele
- E ele era lindo?
- Era, as orelhas não atrapalhavam muito porque o cabelo assim jogadinho disfarçava um pouco, mas como eu estava dizendo, eu tenho um sonho
- Qual?
- Conseguir estabelecer um dia e depois desse dia me prometer ter paz para sempre e nunca mais permitir que nada ou ninguém me magoe
- Isso é um sonho?
- Pra mim é
- E por que precisa de uma data? Não pode começar hoje?
- Não
- Por que?
- Porque já é tarde, precisa começar de manhã
- Então amanhã?
- Acho que sim, vou pensar

terça-feira, 8 de junho de 2010

A morte dos outros

Nossa impressão digital é única. Nos distingue.
Nossas percepções também.
Quando somos muito diferentes buscamos alguns iguais, mesmo que poucos, para entender nosso universo.
Nossas mortes são experiências profundas.
Como uma impressão digital se instala em nossa alma.
A cultura dos povos desenha traços ligeiros na reverência. Alimentos para uns, flores para outros, resignação, indignação, velas.
Para os mortos que conhecemos.
Para os mortos que não conhecemos, sensacionalismo.

- quem morava nessa casa?
- uma família que entristeceu muito
- por que?
- a mãe pediu a menina que fosse ao açougue comprar uma carne, ela trouxe o pedido errado, a mãe ficou brava, deu um tapa na bunda e mandou ir trocar, não tinha mais que sete anos, foi chorando, atravessou a rua sem ver, não voltou
- então eu não quero morar aqui

- mãe, ouvi o trem bater muito forte, acho que pegou um carro
- fica aqui, não vai sair!
- vou lá ver
- não vai
- moço o que aconteceu?
- sai pra lá menina, o carro vai explodir!!!
pai e filha saíram machucados, a mãe ficou presa, puxada, escorregava, o fogo consumiu tudo
- quem era?!?

- escuta, você precisa ir visitar a sua amiga Marcia, o pai dela faleceu
- mas não estava doente, o que houve?
- subiu no telhado para arrumar a antena de tv e caiu
- mas a casa é baixa, ele é tão moço, é tão brincalhão
- não é mais

A morte nos ronda, atrevida. Cumprimos nossa jornada e seguimos nossa caminhada por isso, é melhor ser feliz agora.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Crime

Ficou paralisada com um pedaço de pano na mão.
Não sabia como reagir. De repente lembrara-se de tudo. De tudo aquilo que certamente foi mais saudável esquecer.
Daquilo que tantas vezes a indagaram sem sucesso achando que ela simplesmente não queria falar.
Mas não, ela não se lembrava mesmo.
E agora, depois de tanto tempo, ao pegar o pano para limpar o chão lembrou-se de tudo.
Como um filme que com a rotação acelerada vai mostrando as imagens com som distorcido, não ouve mas entende tudo o que está acontecendo.
Era isso. Então era isso que tinha se passado.
Caminhava pela calçada desviando dos buracos, com a sacola pesada, o sol escaldante criando gotas de suor na testa quando sentiu o puxão.
A sacola rasgou, algumas beterrabas rolaram vermelhas, o pé dobrou e uma dor lancinante confundiu-se com a luz do sol que a cegou.
O mato seco, restos de tijolos que lhe machucavam as costas, a mão áspera tapando a boca, mas os olhos registraram aqueles olhos.
Olhos negros de branco encardido.
Olhos tortos de homem perdido.
Cicatriz em forma de m na testa suada, de pele áspera.
E não viu mais nada depois que um pano sujo tapou olhos, boca e nariz e não importava o quanto tentava livrar-se tudo foi se apagando até que acordou no hospital.
Não sabia como tinha ido parar ali nem quanto tempo fazia. Dolorida, assustada, com a mãe rezando a um canto.
Largou o pano enojada.
Sentou-se na cadeira da cozinha e tomou um gole do café esquecido na garrafa térmica.
Os olhos encheram-se de lágrimas, as mãos cravaram as unhas mal feitas na palma da mão.
Desenhou um m no ar e jurou encontrar aqueles olhos fedorentos.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Somos o que nem sabemos

Ele se chamava Diogo.
Eu o chamava de "seu" Diogo, porque eu era criança e ele era adulto e crianças respeitavam os adultos chamando-os de senhor e senhora ou dona.
Ela se chamava dona Joana.
Eles eram nossos vizinhos.
Quando nos mudamos de Osvaldo Cruz para Tupã, eles eram os nossos vizinhos da direita.
À esquerda não tínhamos vizinhos. Era o "quintal" de uma serraria e eu o espiava louca de vontade de pular naquele monte de pó de serra que se acumulava por lá.
O homem da serraria me dava muitos toquinhos de madeira com os quais eu construía mundos!
Mas, voltando ao casal seu Diogo e dona Joana, eles nem sabem disso, talvez eu mesma só tenha descoberto agora, mas eles me ensinaram uma das coisas mais importantes nesse emaranhado de vidas que compõem as famílias.
Eles tinham um único filho, o que perto da nossa composição de cinco filhos mais pai e mãe era bem diferente.
E ele era preto. Preto, bem preto. Que preto é o nome da cor, como branca, bem branca é a minha cor.
E ele era adulto. Um moço bem forte de sorriso tão largo, tão bonzinho e atencioso que eu achava que ele por ser preto de pais brancos e tão gentil nunca tinha sido bebê, eu achava que ele tinha aparecido assim na vida do seu Diogo e da dona Joana, para alegrar a vida deles que deveria ter sido triste sem ter nenhum filho bebê.
E foi assim que eles me ensinaram sem saber que para ter família nem sempre é preciso parir.
O seu Diogo jogava na loteria esportiva toda semana e coleciona todas as suas apostas em caixas de sapato.
Enquanto tivemos contato não tive notícias de que ele tenha ganhado alguma coisa.
A dona Joana foi quem disse a meu irmão onde ele poderia encontrar um filhote de gato amarelo quando eu adoeci de saudades do meu gato que ficara em Osvaldo Cruz.
Seu Diogo e dona Joana recebiam a visita de uma mulher muito elegante, que tinha uma filha muito linda que se chamava Laís, de onde se originou o nome de minha irmã caçula, Laís, linda como a menina dos cabelos longos que visitava dona Joana e que, não brincava comigo porque não podia se sujar.
O João me surpreendia brincando no quintal, fazendo sanduíches com sementes de colorau e se dispunha a experimentá-los e elogiar o meu trabalho. Ele era um bom cliente da minha lanchonete de bolinhos de barro enfeitados com flores.
Eles foram anjos que passaram pela minha infância. Dos defeitos que certamente tinham, dada a condição de humanos, não consigo me lembrar.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Meias

Eu gosto de meias listradas.
Eu gosto de meias de bolas.
Eu gosto de meias coloridas.
Bola de meia. Divertidas até o fim.
Durmo de meias até no verão.
Minha amiga Rositta, mala cheia de meias sensação.
Meias coloridas, meias diferentes, meias para qualquer estação.
Minha sobrinha Beatriz demorando demais e a mãe a socorrer:
- Precisa de ajuda?
- Eu tô enroscada na calça-meia! Inversão!
Loja de meias, diversão.
Minha família espera a chegada de um novo bebê, Isadora ou Murilo?
Não sei, mas sei que muitas meias há de ter.
Meias fofinhas, meias de bichinho, meias vermelhas, outro dia fiquei com um punhado delas na mão.
Minha caçula Valentina em uma manhã de frio protesta:
- mãe, essa meia não, quero a meia de manga comprida!
Para meia 3/4 uma nova definição.
Meia xadrez, meia escorregadia, meia que vicia.
Meus pés gelados confidenciam segredos para as meias que reinam em minhas gavetas.
Eu sem meias não sou inteira.
O mundo das meias é um mundo sem fim.