sexta-feira, 11 de junho de 2010

As vidas que desconhecemos

Achou que tinha apenas cinco minutos mais e precisava registrar suas memórias.
Ligou a filmadora, apoiou na beirada da mesa, sentou-se no sofá que arrastou sem esforço para ficar no ângulo.
Ajeitou o cabelo, molhou os lábios com a língua e apertou o botão.
A luz piscou, intermitente, até disparar sua função "gravar".
Ninguém estava lá para gritar: ação, gravando e então disparou.

- nasci pequena, tão pequena que minha me enrolava muito nos cobertores de flanela que não me lembro como se chamam com medo de que eu escorregasse quando alguém me pegava no colo -
fui uma bebê sossegada que mamava e dormia e fazia muito, muito coco, de tal sorte que minha mãe, marinheira de primeira viagem, me levou ao médico achando que eu não ganharia peso nunca porque não devia ter alguma coisa que regulasse ou se aproveitasse do alimento - quanta ignorância... mas eu cresci, não muito como se vê até hoje, mas sempre quieta num canto brincando com uma latinha vazia qualquer - sem irmãos para atormentar minha infância solitária, sob o olhar invejoso da vizinha seca de útero que nunca pode ter filhos - deus sabe o que faz, dizia minha mãe para aumentar as intrigas da ruela daquele bairro esquecido da cidade - fui para a escola e escondida entre os médios desempenhos fui de ano em ano até terminar o colegial e olhar com enfado para a possibilidade de cursar uma faculdade - meu pai, do alto de seu posto estável no banco do brasil não sonhava para mim outra coisa senão passar no concurso e trabalhar com ele, por pouco tempo porque se aposentaria em breve, enquanto minha mãe sonhava me ver casada com o filho do médico que era o homem mais rico da cidade - e não aconteceu nem uma coisa nem outra - adolescente, tímida, escondida atrás de minhas espinhas fugi com o daniel que era filho do dono da marcenaria e voltamos já casados no civil sob protestos, lágrimas e fuxicos, para viver em dois cômodos no fundo da marcenaria - não tivemos filhos e isso sim foi uma benção porque agora estou aqui contanto tudo isso porque vou me matar - vou tomar de um gole só esse copo de veneno e quando o daniel chegar vai me encontrar mortinha da silva porque eu bem sei que ele anda de namorico com a lucila, aquela magricela da padaria mesmo depois de ter me feito juras de amor até me arrastar para a rodoviária, então...
...
- Marlene, cheguei, o almoço tá pronto? Tô com pressa porque o pai vai entregar uma encomenda e eu vou ficar sozinho na marcenaria

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