quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ontem, véspera de hoje

Hoje, uma véspera de ontem.
Hoje faz 17 anos que fiz 30 anos.
Ser adolescente com experiência de adulto. É muito bom.
Algumas coisas não aprendi. Mas aprendi que não preciso levar a vida tão a sério! Ainda não tirei 10 nessa lição. Talvez eu precise de reforço.
Não importa.
Tenho anos.
Anos de estudo.
Anos de festas e viagens.
Anos de trabalho.
Anos cuidando das minhas meninas e do meu amor.
Segundos, horas, são pontos nessa manta de delicado crochet que é nossa vida.
Um nozinho ou outro pode aparecer, mas quando estendida na cama, com um raio de sol destacando as cores das linhas, que maravilha.
Tenho amigos.
Tenho livros.
Tenho um cão e uma gata.
Tenho palavras que não me deixam só.
E agora tenho sono e muitas felicitações para ler, reler, recolher e guardar para contar histórias no meu entardecer!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Stress

Parecia impossível que aqueles olhos pudessem ser duros.
Mas nada é impossível, já deveria saber.
A voz doce. Parecia inacreditável que pudesse traçar um panorama tão desalentador.
Mas traçou. E pontuou, flexionou, alterou e repetiu palavras, como se estivesse discursando para uma multidão.
Quando um engrandece em raiva apequena os outros.
Alguns pelo medo, outros pelo espanto. Outros apenas por decepção.
Parecia impossível que a conversa fosse enveredar por aquele caminho.
Mas os caminhos são tortuosos. Cheios de encruzilhadas. Alguns até cheios de armadilhas.
Nas fotos os caminhos são de sombra, árvores floridas, graminhas inocentes e um esquilo ou coelho entre folhagens.
Nas fotos as tristezas nem sempre estão em foco.
Nas fotos o sépia é quase sempre um recurso de máquina ou de algum editor de imagens.
Saiu ilesa, mas nunca mais inteira daquele encontro.
Quando subiu as escadas foi deixando para trás aquela sensação ruim e quando chegou ao outro patamar nada mais importava, a não ser o jogo de futebol que decidiria o campeonato.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Parece que vai chover

O ônibus não passa mais nesse ponto, de trem não dá pra ir.
O jeito é caminhar as oito quadras. Mas eu tenho medo de número par, então vou descer aqui e subir por ali, assim completo nove quadras.
Não adiantou muito, o lugar está fechado. Não tem cara de que fosse aqui, mas o endereço está certo.
Vai ver mudou.
O bar da esquina é horrível, mas é o único lugar onde dá pra comprar uma garrafinha de água.
Se tivesse copo eu preferia. Bebia e já jogava fora. Eu não aguento gente que bebe cinco litros de água e ainda anda com uma garrafinha pra cima e pra baixo.
A Maria diz que o médico dela falou que é assim que tem que ser.
Sei. A Maria tem m monte de doenças que eu não tenho.
Algum ônibus há de passar pra eu voltar. A pé acho que não vai dar.
Podia sentar um pouco aqui e descansar.
Descansada eu posso enfrentar.
Isso parece a minha vida.
Gente que tem tudo e não consegue administrar seus fracassos!
Igual patroa que implica com a empregada que não passou direito a blusa. Pra quê?
Vai ficar socada lá no armário porque não serve mais.
Aí, em vez de admitir que engordou quer brigar com a coitada.
Melhor perguntar se passa um ônibus aqui, parece que vai chover.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Mãos Cegas

Abriu a bolsa.
Sabia que não precisa de nada do que estava lá.
Olhou, procurou com as mãos cegas.
Sabia que não encontraria ali nada do que estava procurando.
Estava procurando a calma de dias passados.
A ternura das palavras ditas sem preocupação.
Procurava um jeito de desaparecer.
Um jeito de recomeçar.
Um jeito de reconhecer.
Abriu a bolsa, mas procurava dentro de si um novo jeito.
De olhar, de sentir, de falar, de tocar.
De contar que aquela história não tinha importância.
Que aquele momento foi muito infeliz.
Que aquele futuro que planejaram ainda era possível.
Procurou com as mãos cegas um caminho que sabia nunca estaria pronto.
Que nunca estaria livre de pontes rotas, de pedras silenciosas esperando a lua criar sombras.
Nunca se viu sombras tão lindas quanto às geradas pela lua.
Serenas, suaves.
Diferente das sombras do sol. Duras, marcadas. Irrequietas.
Abriu a bolsa enquanto passavam porque assim não precisava levantar os olhos.
As mãos cegas protegeram o coração daquele batuque ritmado e tudo passou.
Nunca mais seria como antes, mas pelo menos, agora, tudo estava de novo em seu lugar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

No segundo seguinte

- Você já tomou o leite?
- Sim, já tomei o leite. E já escovei os dentes e não vou levar blusa porque está um calor de 40 graus!
- Quando eu não estiver mais aqui para te perguntar essas coisas, você vai sentir saudades...
- Ai que melodramática mãe! Não pode só falar tenha um bom dia?
- Eu me preocupo...
- Não, você não se preocupa, você se ocupa de mim, isso sim. Acha alguma coisa que fazer, assim sossega.
- Mas você se atrapalha de manhã, chega a sair sem tomar o leite...
- E daí? Quando eu ficar com fome eu como alguma coisa, que diferença faz?
- Pra mim faz muita diferença, eu gosto de saber que está bem, bem alimentado
- Oh, já está me atrasando com essa conversa toda
- Você que começou. Era só responder: sim mamãe, já tomei o leite, obrigado
- Aff, Tchau!
- Volta tarde?
-

- Alô? Sim, sou eu. Como? Não, sou eu, é que, eu... Por favor... Não, não diga isso
- Mariano? O que foi? O que aconteceu? Fala!!
- Minha mãe... Minha mãe...


terça-feira, 19 de abril de 2011

Maria José

Maria José era uma mulher de fibra.
Não tinha preguiça nenhuma. Cresceu em família pobre, mas dessas que não economizam comida.
Pelo menos uma vez por semana a mãe fazia uma panelada de carne com mandioca e as crianças cresceram coradas.
Trabalhadoras.
Maria José não estudou muito. Aprendeu o nome, tirou documento, até votava, lia uma revista ou outra, mas nada desse negócio de romance.
A Maria do Carmo sim era doida por esses romances que comprava na banca de revista, mas Maria José não.
Ela se cansava.
Trabalhava por conta, era faxineira em várias casas, em bairros longes, de casas bonitas e mulheres nem tanto, mas exigentes.
Maria José acordava cedo. Dependendo do dia tomava até três conduções para chegar ao trabalho e quando chegava... ah... nada de escutar rádio, ver revista da patroa, conversar com a empregada ou a babá ou com a faxineira da vizinha. Essa piorou.
Fazia o serviço concentrada, com cuidado para não quebrar nada, com esmero pra ficar tudo perfeito.
Era muito cuidadosa a Maria José.
Em maio ela começou a trabalhar em uma casa nova, indicada da Ivoneide, que fora trabalhar com o marido na banca de café e bolo.
A dona da casa saia de manhã para trabalhar e voltava à noite, deixava bilhetes pela casa toda, faça isso, faça aquilo e a Maria José, além de fazer, ia respondendo todos os bilhetes com sua letrinha feia.
Ela se firmou em mais essa casa e adorava.
Um dia, no quarto onde ficavam as roupas para passar, a Maria José encontrou uma sacola com roupas e um bilhete dizendo que ela poderia levar para ela, se não se importasse, eram roupas que poderiam servir para ela ou para algum parente.
Um bilhete delicado, quase se desculpando por ter tanto para dar. A Maria José até achou graça.
Trabalhou ainda mais contente.
Em casa se fechou no quartinho e experimentou. Tudo cabia. Uma maravilha.
E, no fundo da sacola, ajeitadinho, estava o vestido vermelho de decote V.
A Maria José quase nem pode acreditar. Era lindo! Ela ficou parecendo uma artista de tão direitinho que o vestido ficou.
Lembrou da Denise que vivia falando que ela tinha um corpinho de quem faz ginástica o dia inteiro. Ela riu, e então não era verdade? Esfregar chão, janela, passar aspirador, andar depressa quando o ponto de ônibus era longe... E isso não era ginástica?
Ficou se olhando no espelho. Uma belezura.
Naquele fim de semana a Maria José foi à missa.
Ela nunca ia, aproveitava para dormir um pouco, descansar.
Mas onde mostrar aquela coisa rica se não na missa aonde o povo todo do bairro ia pra isso mesmo? Pra ver as roupas?
A Maria José foi à missa tão elegante que o Edgar até comentou:
- Acho que ela "enrico"... Antes ela gostava de mim, quando era mais moça, será que ainda gosta?

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Foto Reflexão


Deixamos para trás um rasto.
Um rastro.
Um rastilho.
De histórias com finais felizes, outras inacabadas, outras com finais que pediríamos a um gênio que nos deixasse alterar.
Caminhamos em direção a um horizonte.
Fonte de outros tantos rastos, quando alcançado.
Se quando caminhamos o que miramos é apenas o reflexo daquilo que queremos conquistar, é nossa a decisão de continuar ou de parar.
Mas não há descanso, só descaso.
Ir e vir pode não levar a nenhum lugar.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

No princípio era o verbo

Não conheceu o pai.
Cresceu entre mãe, avó, primas, tias, tios e o avô lá no canto, sempre resmungando.
Enquanto comia, brincava e dormia aninhado com a mãe, não concebeu a ausência do pai.
O primeiro ano na escola causou certa estranheza.
Depois desconforto.
Depois dúvidas. Perguntas. Ausência. Vergonha.
Nas comemorações do dia dos pais, os cartões eram para o avô, mas tão sem sentido, ele apenas olhava, recebia um abraço frio e pronto.
Começaram as perguntas.
Elas sempre ficaram sem respostas.
Foram fases de desengano.
Fases de desespero.
Fases de olhar apenas o presente e o futuro, mas aquela coisa sempre como uma sombra negra.
Um i sem ponto é uma aberração. É? Não tinha mais certeza.
Tentou com a mãe várias abordagens.
Concluiu que era egoísta e não teve forças para arrancar dela a verdade.
Ela se foi.
Construiu sua própria família.
Tudo muito identificado.
Um dia resolveu contar para outras pessoas.
Dividiu uma pergunta com o universo.
Ele ainda não respondeu.
Gente que sabe, gente que não sabe.
Não conheceu o pai.
E então concluiu que também não conheceu a mãe, já que nunca entendeu as razões que esconderam o seu princípio.
Sobrou apenas o verbo.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Preparação

Recolheu todas as palavras
E depois ficou em paz com o silêncio
Escreveu um bilhete curto
Escolheu a dedo um livro na estante
Não podia falar de amor, nem de dor
Não podia ser uma história rebuscada
Juntou algumas almofadas na poltrona vermelha
Escondeu os chinelos embaixo da poltrona
E escondeu os pés embaixo das almofadas
Olhou para o telefone
Não levantaria para atender,
Mas se estivesse perto seria melhor
Ajeitou a cortina de maneira que ficava
Protegida do sol, mas não no escuro
Quando ele se fosse
Pensou em todos os detalhes
Um copo de água
Os óculos
Uma manta leve caso soprasse o vento
Recolheu todas as palavras
E ficou em paz com o silêncio
Já com a alma...
Estava na verdade recolhida porque se
Preparando para a guerra

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Desencanto

Estava tão triste que não conseguia disfarçar.
Procurou contar algumas coisas engraçadas, mas ficaram tão sem graça!
Resolveu procurar um poema lindo e disfarçar tristeza de emoção.
Um poema curto, profundo como o corte na alma.
Lembrou que a alma é que tem o corpo, um corpo perecível para uma alma perene que pode habitar outro corpo em outro lugar.
Se tudo fosse assim tão simples, não teria tristeza capaz de embaçar a luz do dia.
Sorte ele já estar nublado.
Voltou aos poemas.
Lembrou de Florbela Espanca.
Preferiu ficar longe da longínqua semelhança.
Foi ali mesmo, praticamente no meio do mato, resgatar Manoel (de Barros)
...
“que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.


Ou pelo desencanto, pôde supor!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Desconforto

Se vai quebrar o silêncio e invadir o mundo alheio que seja o mais suave possível.
Se não é uma festa, se não é um desabafo não tem porque usar as palavras como ferramentas – ora de construção ora de destruição. Quase como tortura.
Se vai quebrar a rotina e revirar vidas que seja de maneira branda, como a última espuma que vem com a onda depois da arrebentação.
As palavras precisam ser melhores que o silêncio.
Pelo menos na maioria das vezes.
Como calculamos o resultado do que vamos esparramando pela vida?
Hora de cuidar disso. Tarde seria se não compreendesse que quase tudo se pode resgatar.
Fiquei sem palavras por um momento.
Depois que o momento passou, palavras ruins quiseram escapar.
Melhor sufocar que entristecer tudo ao redor.
Melhor acolher que abandonar.
Melhor esperar do que desesperar.
Se vai rezar, que seja para um santo que pode te transformar.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Catarina

Estava sentada na sala esperando a neta sair do banho para trançar-lhe os cabelos.
Teve tempo para duas considerações.
A primeira de que o tempo passa, mas as meninas continuam as mesmas, esse culto aos cabelos longos, que são bonitos, claro, mas que tão tanto trabalho. Tão moderno os cabelos curtos! Mas um verdadeiro tabu naquela casa de mulheres!
A segunda é de que não conseguia deixar de se espantar com o fato de que sua filha, netas e genros chamavam aquele quadradinho de cimento, a sacada, de varanda!
Mal cabia um vaso acanhado de flor. Mas nem pensar em fazer ode às varandas de sua infância.
Amplas, com sombra fresca, flores subindo pelos pilares direto da terra, que vaso que nada, um ou outro com flor mais delicada. E cachorros e gatos dormindo na tarde quente, sons de crianças brincando no mormaço, vermelhas de alegria e calor.
- Pronto vó, começa daqui bem de cima pra ficar bem presa, tá bom?
- Tá bom! Mas que demora esse seu banho, hein? Não vai se atrasar?
- Não, eu falei pra minha mãe que era as três, mas de verdade será as quatro, sabe como ela é, atrasada!
- Sei.
- Dá tempo de você me contar uma história, de você pequena, me conta de novo do seu banheiro?
- Ah, mas você gosta de me fazer lembrar aquilo, que desconforto! E você acha engraçado?
- Não, não acho engraçado, acho difícil de acreditar.
- Pois quando eu era menina, o meu banheiro era uma casinha bem no fundo do quintal. Não tinha vaso sanitário. As pessoas faziam um poço bem fundo, faziam um piso de madeira, uma casinha mesmo, com um buraco e a gente fazia as necessidades ali. Tudo caía lá no poço.
- E você não tinha medo de cair também?
- Quando eu era bem pequena eu usava um piniquinho, depois minha mãe ia comigo, até que fui crescendo e comecei a ir sozinha, a gente vai se acostumando. Mas logo depois nos mudamos pra uma casa com banheiro e vaso sanitário e passou. Tudo passa, não é mesmo?
- É, tudo passa, mas eu espero que tudo passe pra melhor, que o meu passe para um banheiro maior, só para mim, não ao contrário.
- Acho que nem existe mais isso menina, não aqui na cidade, eu acho.
- Também não sei.
- Pronto, quase no fim, com o que vamos prender?
- Com esse elástico e depois você põe esse lacinho?
- Ponho, vai ficar linda! Não acha que no verão poderia cortar o cabelo? Depois ele cresce mais forte!
- Não vó, o meu tempo de ter cabelo comprido não vai passar tão rápido, sua espertinha!
- Pronto, está ainda mais bonita! Quem diria que sua mãe teria coragem de te dar meu nome, hein?
- Eu acho bonito vó, você não acha?
Fez que sim com a cabeça, as palavras ficaram enroscadas em um nó na garganta.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Insanidade

Já tinha acabado o tempo da chupeta e do paninho.
Já tinha acabado o tempo da papinha, das frutas raspadinhas.
Os primeiros passos trôpegos já haviam sido superados.
As primeiras palavras erradas já eram parte da história dos almoços de domingo.

O primeiro dia de aula também não assustava mais.
Andar de bicicleta? Uma moleza.
Bonecas pintadas e sem cabelos, já devidamente encaixotadas, doadas, esquecidas.
Alguns carrinhos preservados para uma possível coleção.

Ia começar o tempo do batom.
Da paquera. Da festinha.
Da primeira barba. Da baladinha.
Ia começar o passeio ao cinema com as amigas.
Os possíveis diários ficaram cheios de páginas em branco, para sempre.

Não mais copa do mundo, olimpíadas, não faz mais sentido a visita de Obama, o trem bala.

Acabou o tempo das balas coloridas que depois que entram em nossas vidas não saem nunca mais, mesmo quando estamos de regime.
Acabou.
As balas duras, frias, mortais, acabaram com tudo isso para dez meninas e dois meninos.
Quem pode ser consolado dessa insanidade?

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Fique por perto

Confundo as pessoas. Não por mal, porque me atrapalho na vida.
Tropeço na confusão dos meus pensamentos.
Se eu soubesse como erguia uma cerca entre o lado direito e esquerdo do cérebro, separaria números e poesia e talvez a vida fosse mais fácil.
Mas eu não sei como e sigo confundindo as pessoas.
Não que eu as deixo sem entendimento, não desse jeito, eu cumprimento as pessoas erradas ou não cumprimento as pessoas certas.
É isso.
Tomava café em uma padaria com integrantes do meu grupo de teatro, esperando o diretor chegar.
Vi um moço passando e tive certeza de que era um dos nossos.
Deixei o balcão e pendurei-me em seu pescoço em um abraço de quem convidava para um café, nada mais que isso. Alegre, falante.
O moço se virou assustado. Tinha um rosto que eu nunca tinha visto antes.
Fiquei sem graça e não houve desculpa ou explicação que abrandasse o constrangimento.
E tantas vezes que pessoas me cumprimentam, me chamam pelo nome e processo milhões de informações para juntar nome à pessoa nem sempre com sucesso.
Dia desses, no Market Place, saindo de uma loja, fiz psiu, apertei o passo, até alcançar uma moça e tocar-lhe no braço, certa de que era minha amiga Eliana. Não era.
Vamos chegar a um aplicativo que nos permita fotografar discretamente as pessoas e descobrir tudo sobre elas. Eu precisaria desse recurso, mas me recuso a usar. Eu sou assim. Eu tropeço entre os meus lados e não é por mal.
Todos moram em minha memória afetiva, apenas tenho certa dificuldade para acionar.
Não faz muito tempo, em um restaurante, uma mulher e eu nos olhamos e tivemos a mesma sensação: te conheço, mas não sei de onde. Antecipei-me e disse:
- Oi, eu sou a Lusia, trabalho... De onde nos conhecemos?
Ela riu, me deu as informações e confessou aliviada que também não lembrava meu nome.
Pode não funcionar com todo mundo, mas foi divertido e me permitiu alertar: posso não te reconhecer se por algum tempo você desaparecer. Fique por perto!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Antes de amadurecer

- O que vai comprar para ela no aniversário?
- Ainda não sei, mas talvez um perfume.
- Eu nunca dou perfume, e se a pessoa não gosta?
- Mas eu sei o perfume que ela usa, usa sempre o mesmo e ainda outro dia me disse que precisava comprar.
- E se já comprou?
- Guarda ou troca por outra coisa, validade de perfume é bem longa e ela usa bastante.
- E você, o que vai comprar?
- Um livro.
- Que ótima ideia.
- Como assim ótima ideia? Você acha mesmo?
- Acho, ela adora livros. Que livro? Já escolheu?
- Não. Pensei em perguntar pra irmã dela.
- É mesmo, pergunta. Uma vez ela me disse que sempre tem um monte de livros que quer ler anotados na agenda.
- Ela usa agenda? De papel?
- Não sei se é de papel, mas parece que existe uma agenda com anotações de livros que quer ler.
- Prático não é? Mas na verdade eu queria mesmo era dar algo bem diferente.
- O que é diferente?
- Um colar de pedras de Minas.
- Mas ela usa isso? Nunca vi.
- Podia ser uma imagem de santo.
- Santo? Mas acho que ela nem é muito de ir à igreja.
- Mas é católica que eu sei, ela me contou histórias de quando fez a primeira comunhão.
- Não sei.
- E um xale?
- Não é coisa de velha?
- Se for bem bonito não.
- Ué, porque se for bonito? Quer dizer que se for feio tem que ser de velha? Velha não pode ter xale bonito?
- Pode, eu não me expliquei direito.
- Mas quanto você tem pra gastar nesse presente?
- Ainda nada. Minha mãe me dá um dinheiro por semana, dez reais, tem semana que falha, mas ela já garantiu que agora não vai falhar.
- Eu vou pedir pro meu pai quando ele vier me visitar, mas só que de vez em quando, é dia de visita e ele não vem. E se passar o aniversário dela?
- Se minha mãe me der os dez reais a gente dá o presente junto e depois quando seu pai vier você me dá a metade.
- Mas eu acho que com esse dinheiro não dá pra comprar nem a minha ideia e nem a sua.
- E agora?
- A gente fica pensando em outra ideia, mas por garantia a gente faz um cartão.

terça-feira, 5 de abril de 2011

A Mada

Era uma mulher amarga.
Ninguém sabia.
Sorria o tempo todo e sabia usar o batom como ninguém.
As roupas eram coloridas e modernas.
Nada espalhafatoso, mas nada que indicasse a tristeza escondida.
Era uma mulher segura "da boca pra fora", como dizem todos.
E eu, e ela também.
Da boca para dentro era um embate entre língua e dentes que ninguém podia supor.
O que queria era dizer que ia à missa, mas que não acreditava mais no credo.
Que tinha medo de umbanda, mas que não se importaria em se sentar em uma mesa branca.
A mesa das mesas brancas é branca? Ou são apenas toalhas que podem ficar amareladas e puídas de tanto esperar pelo espírito que vem em paz e seriamente.
Não apenas aquele brincalhão que gosta de ver os pelos dos braços arrepiados.
Era uma mulher amarga.
Ninguém sabia.
E pra quê haveria alguém de saber?
Isso era lá coisa dela.
Sorria o tempo todo mesmo sabendo que aquele camarada nunca mais ia voltar.
Mesmo sabendo que aquele emprego era um tédio, mas pra quê recomeçar?
O que queria era dizer que tomava vinho, mas que a vodca lhe descia melhor.
Que deixava que lhe chamassem de Mada, mas que seu nome inteiro tinha muito mais valor.
Que a janela vivia aberta só porque do contrário o mofo seria muito pior.
Que passava a mão na cabeça das crianças com a esperança de que elas fossem logo brincar.
Era mulher amarga.
Ninguém sabia.
Nunca deixaria um bilhete ou um diário, essas bobagens de sempre e de hoje em dia e, por isso, era uma mulher amarga e nunca ninguém saberia!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Santo sem andor

O domingo foi chuvoso.
A piscina aquecida acalmou a ansiedade das crianças que puderam mergulhar mesmo com aquela chuvinha fina. Uma chuvinha de sorriso de lado, de quem sabe que não é bem vindo, mas se diverte impondo sua presença.
À noite também choveu.
E a segunda-feira, como era de se esperar, amanheceu chuvosa.
Uma chuva sem preguiça de cair. Forte, saudável, sem piedade de molhar os pardais não abrigados nos beirais dos telhados.
E as estradas são um capítulo à parte em dias de chuva.
Uns mais atrevidos do que outros. Uns mais precavidos do que outros e em certos momentos, tanto uns quanto outros podem ser prejudiciais à saúde dos motoristas diários dessas grandes avenidas.
De repente me senti em uma procissão sem santo no andor, tamanha a lentidão em que a fila seguia.
Quando voltamos a mudar marchas e acelerar, um santo apareceu pouco antes de uma curva fechada.
Um santo homem que caminhava pelo acostamento, sem se abrigar da chuva, mas passo decidido de quem vai trabalhar.
Fez um sinal com a mão, alertando sobre a velocidade.
Um gesto simples de quem cumprimenta um amigo.
Um gesto de quem observa os controladores de tráfego.
Um gesto de quem, mesmo caminhando na chuva, se importa com quem vai confortavelmente instalado, aquecido, ouvindo música.
Um gesto que, obedecido, impediu uma grande colisão porque logo após a curva, uma fila enorme de carros e caminhões se formara, de tal sorte que não víamos antes de lá chegar e de má sorte porque sem o santo do acostamento não teríamos como evitar o choque.
Ele passou por mim. Ele passou por nós.
Espero que os santos dos andores possam agradecê-lo pelo gesto que para mim valeu muito e do qual, a essa hora, ele nem deve se lembrar.
Alguém mais além de mim?

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Entre velas e band-aids

Começou o mês de abril.
Apesar das brincadeiras do dia da mentira, cuja origem encontra várias explicações, é bem verdade que começou o mês de abril. O mês do meu aniversário. De volta ao número ímpar, que alívio.   
Gosto menos dos números pares, apesar do dia, mês e ano de meu nascimento serem dessa natureza. Porém, a soma total resulta em 7. Salva por uma artimanha.
Gosto especialmente de uma das explicações para o primeiro de abril, também chamado dia dos bobos. Mas quem não é bobo em algum momento?
No começo do século XVI (par) o ano novo era festejado no dia 25 de março (ímpar), data que marcava o início da primavera e as festas duravam uma semana e terminavam no dia 1 de abril.
Em 1564 (par), após a adoção do calendário gregoriano o rei Carlos IX (ímpar) de França determinou que o ano novo seria comemorado no dia 1 de janeiro (ímpar).
Alguns franceses resistiram à mudança e continuaram a seguir o calendário antigo, pelo qual o ano iniciaria em 1 de abril.
Uns gozadores passaram então a ridicularizá-los, a enviar presentes esquisitos e convites para festas que não existiam. Essas brincadeiras ficaram conhecidas como plaisanteries (piadas).
Piadas sem par, ou seja, ímpares.

Gosto dos franceses. Da música, do biquinho para falar, do pão, do vinho e dos Band-Aids, ok, essa é marca registrada da Johnson & Johnson, mas os band-aids franceses são imbatíveis e os meus estão acabando. E isso não é primeiro de abril, preciso voltar à França.