quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Tempo

O tempo é o senhor do tempo e de ninguém mais.
Cada um é senhor de si mesmo se souber o que senhor é.
Se não souber, passará o tempo tentando economizar tempo, matar o tempo, correr atrás do tempo, ignorar o tempo.
Cada passada um passo passado.
Cada segundo, minuto, hora em suas perspectivas já melhor descritas por melhores poetas e pensadores. Para um corredor de velocidade, diferença enorme! Para um voo atrasado, para uma noiva atrasada.
Atraso é o riso contido do tempo.
Brincadeira de mau gosto, de bom gosto.
Ninguém é senhor do tempo.
Tempo não é palíndromo como reler.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Verbar

Verbar é o ato de dar poder às palavras. Os substantivos principalmente, que são concretos, pasmados de suas existências sem ação.
Uma mulher poderia, ao levantar-se do seu croché, dizer: vou panelar.
E entenderíamos que ela iria cozinhar.
Os verbos são arrogantes, sempre em movimento, sempre determinando quem vai quem fica e nunca quem para.
Há preconceito entre as palavras, os adjetivos sempre taxados de fúteis.
Ah sim, há muito injustiça entre as classificações. Os substantivos abstratos ficam sempre em cima do muro porque são um estado. Entre os comuns, aqueles que convêm a todos os seres da mesma espécie, os que mais anseiam por um verbar.
É próprio de um substantivo querer apropriar-se.
Verbar é o ato de arrebatar, de subverter a função das palavras.
Palavra: s.f. vocábulo provido de significação.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

No parque

Olhou por um tempo o céu de um azul claro, cálido.
Tirou o bloquinho do bolso e rabiscou um perfil de rosto desconhecido.
Deixou a caneta balançando entre os dedos e lembrou-se das brincadeiras do tempo de escola em que balançava uma caneta bic entre dois dedos e ela parecia derreter-se.
Esticou as pernas. Um princípio de câimbra.
Olhou para o bico do tênis, sujo de barro.
Um passarinho cantava despreocupado.
A mãe passou arrastando um menino que equilibrava desajeitado a bolsa da escola e um picolé de maneira que não pingasse na camiseta do uniforme.
Ainda olhou para ele quando dobrou a alameda do parque.
Uma câimbra mais forte.
Uma dor que foi subindo pela perna.  Forte, forte.
Guardou o bloco, mas a caneta caiu.
Tombou a cabeça no banco sem encosto de cabeça.
No fim do dia o menino falou, mas a mãe não deu atenção...
- olha mãe, esse moço ainda tá aí, faz tanto tempo que até dormiu 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

De tudo já fui um pouco mais

De tudo eu já fui um pouco mais.
Um pouco mais rica. Um pouco mais magra.
Já fui um pouco mais sincera nos comentários.
Um pouco mais fria. Um pouco mais educada.
Eu já fui um pouco mais delicada.
Um pouco mais arrojada.
Já fui um pouco mais modesta.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Já fui um pouco mais pobre. Um pouco mais pontual.
Um pouco mais sozinha, um pouco mais sentimental.
Eu já fui um pouco mais ousada, um pouco mais comedida.
Eu já fui um pouco mais ardida, um pouco mais sentida.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Um pouco mais branda, um pouco mais branca.
Eu já fui um pouco mais sardenta. Um pouco mais teimosa.
Eu já fui um pouco mais menina.
De tudo eu já fui um pouco mais.
Eu já fui um pouco mais literal.


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Desacerto

Aplacada a fúria resolveu pensar.
É, de fato, era pouco problema para muita palavra usada na reclamação.
O tom de voz tinha se alterado.
Mesmo que a voz tivesse se mantido no timbre certo, a bochecha vermelha certamente entregaria a movimentação sanguínea acelerada.
Era sempre assim. Qualquer coisa irritava muito e irritava tanto que esgotava qualquer possibilidade de paz.
Mas, não tinha sido sempre assim.
Não se lembrava de quando havia começado, mas havia começado em algum momento.
Começou e cresceu.
Não se aplacava mais a fúria com um longo suspirar e uma contagem de um a dez.
Quando a moça do supermercado só olhou, não respondeu e disfarçou um meio sorriso, entendeu que era tempo de pedir ajuda.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Distraído

Distraiu-se com a vida e de repente o tempo tinha passado.
Tentou concentrar-se e dedicou-se a fiar suas histórias.
Encontrou-as inacabadas, como teias de aranha arrancadas por uma vassoura desatenta. Pedaço sim, pedaço não. Desabitadas.
Histórias com começos e meios e quase nenhuma com fim.
Mas o que é o fim de uma história?
Quem escreve a palavrinha de três letras com o F em letra maiúscula e lindamente desenhada? Nos contos infantis, o autor.
Na vida... Distraiu-se com a vida e se perdeu de vista, não estava interessado.