quarta-feira, 21 de março de 2012

Testemunha

- a testemunha disse que não viu nada
- bom seu moço então não é testemunha...

- eu pensei em vir contar na hora o que eu vi naquela noite, mas não é muita coisa e daí eu fiquei com medo de incriminar alguém, mas agora estou arrependida, eu devia ter vindo

- ah, claro que eu vi... tava do outro lado da rua, mas eu enxergo muito bem - ela não parava de falar e foi aí que ele deu o primeiro tapa, nisso...

- atende essa campainha!!!
- psiu... não quero
- o que é?
- senhor, senhor, quero apenas apresentar a palavra de Jesus, sou uma testemunha de Jeová
- pois eu não quero saber disso não, eu não sou testemunha de nada, nunca me envolvi em nenhum crime, nem em política, passar bem e sorte pro seu réu

terça-feira, 20 de março de 2012

Vergonha de morrer

um corpo morto não controla emissão de gases
nem uma boca torta
nem uma palidez calcificante
tenho vergonha de morrer
vergonha de incomodar
vergonha de não estar pronta para ajudar
um corpo morto não controla o pé em ponta
nem a elegância do ombro aberto e para cima
por isso, tenho vergonha de morrer
não medo, medo eu não tenho
tenho só vergonha de não mais ser

quarta-feira, 7 de março de 2012

A menina e o relógio

Conheci uma menina, entre tantas meninas que conheci, que se divertia com suas histórias e que não se envergonhava de contá-las.
Uma menina de existência pesada, que ela tornava leve conforme transformava as histórias no clássico clichê seria trágico se não fosse cômico.
E me contava entre espantada e sorridente que muito, mas muito queria ganhar um relógio e não podia comprar.
De certa feita ganhou um, que às vezes funcionava, outras nem tanto, que não era moderno, mas também não era ultrapassado. Que era de segunda mão, não fora comprado pensando nela, mas que somando aqui subtraindo ali era um relógio e era dela.
E como era dela e era um relógio ela queria que todos vissem.
Voltando para casa em um sábado de noite quente, depois de uma festinha, percebeu um grupo de meninos, quase da mesma idade. Iam um pouco à frente e então apertou o passo e, ao passar por eles, repetidamente olhou para o relógio, levantando o pulso bem alto. E uma vez e outra. Exibindo sua preciosidade.
Mas o efeito foi bem outro...
Diante da insistência do gesto um dos garotos comentou:
- isso, rápido que o papai deve estar bem bravo com a filhinha atrasada...
Foi um balde de água fria. Vida cheia de clichês.
E re-encontro essa menina, bem passada dos trinta, que me conta histórias de sua existência leve, mas histórias que, por ora, não posso publicar!

terça-feira, 6 de março de 2012

Morro acima

morro acima mora a minha esperança
que é fé, já que aprendi que esperança
apenas se espera e que quando se tem fé
tudo se concretiza
a fé aperta meu coração
a esperança afrouxa a minha mão
tenho tantas tarefas aqui e acolá
mas gosto de descansar os meus olhos
nas nuvens brancas esparramadas pelo céu azul
e quando volto, tarde da tarde mas ainda
não de noite me distraio olhando a lua
e os morros recortados ao longe
eles nem sonham que estão gravados
em meus olhos e que guardam a minha
esperança
minha esperança mora morro acima
não morro antes de me encontrar
com ela e agradecer essa infinita
paciência de se apresentar e escapulir
e assim me fazer seguir e seguir
quando saí de casa de manhã
parei o carro meio sem jeito
na rua porque flagrei a minha gata
sendo apenas gata e explorando
muros e quintais vizinhos
parei e fotografei
morro acima despertava minha fé

sexta-feira, 2 de março de 2012

Desencanto

Inventou para si um passado tão cheio de detalhes que fechando os olhos quase pode reviver histórias que nunca aconteceram.
Adormece as vontades e em seu passado recriado foi cantora, conheceu pessoas e lugares sem nunca sair de seu quintal. 
Vive presa em seu presente miserável e sabe que terá que reinventar esses dias sem graça, mas não consegue se libertar.
Não consegue criar um futuro de presente e acredita piamente que vive o roteiro que o destino lhe escreveu.
Uma pena.


quinta-feira, 1 de março de 2012

Lurdinha

olhou pra Lurdinha e pensou que se soubesse fazer um poema talvez conseguisse namorar com ela,
desses namoros de ir no cinema, pegar na mão, comprar pipoca, dar um passeio, se vem um parque na cidade ganha um ursinho de pelúcia, desses namoros, simples, não de novela, com jóias e vinhos, não, desses de esperar no ponto de ônibus, pedir uma pizza no domingo pra família inteira, ficar no portão
mas ele não conseguia
tudo o que pensava quando olhava pra Lurdinha era que ela devia ter uns peitos lindos
e que aquelas pernas torneadas deviam terminar no paraíso e que quando ela vinha vindo ele já se preparava pra virar por que, ah por que
ele era um camarada muito do safado e desse jeito não ia
até aquele tonto do irmão do Jeremias estava namorando e ele nada, só sonhando com a Lurdinha
uma vez até tentou, mas precisou tomar um gole pra falar com ela quando ela saísse do trabalho, mas daí precisou tomar outro e mais outro e quando o supermercado fechou e a Lurdinha fechou o caixa ele já estava tão "engolado" que fez mais foi se esconder
olhou pra Lurdinha e pensou que se soubesse fazer um poema...
depois pensou que isso também podia não funcionar e resolveu deixar pra lá
se pelo menos ele fosse o dono da boca
e aí a mão coçou
mas também a Lurdinha não era pra isso tudo não, se desse uma cana matava a mãe do coração
olhou pra Lurdinha e pensou... tá tão calor, melhor tomar uma cerveja com o Zé e perguntar como foi que o jogo acabou