terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Poderia ter feito diferente

Há muitos anos atrás o mundo corporativo não fazia parte do meu dia a dia e meus planos estratégicos, minha preocupação com o posicionamento diziam respeito a textos de Dostoievski e músicas improváveis me despertavam de madrugada quase exigindo uma coreografia.
Em uma tarde desses anos distantes, me lembro bem, não estava frio mas já escurecia apesar de não ser seis horas ainda.
Atravessei a rua correndo porque estava ligeiramente atrasada, para meu desespero, porque nesses momentos a figura de meu pai sempre se agigantava dizendo: cinco e trinta são cinco e trinta, nem cinco e vinte e cinco, nem cinco e trinta e cinco!
E foi então que ele cruzou a rua comigo. Não me abordou, não me olhou, não me incomodou, mas quando acabou de atravessar a rua ele começou a gritar:
- eu estou com fome... pelo amor de deus alguém me ajuda, eu tenho fome!
A rua era a Dr Vila Nova, eu estava a caminho do SESC. Ia fazer um teste para uma peça.
Sempre encontrava mendigos, alguns resmungando, alguns discursando, sempre falando bobagens, voz enrolada, mas aquele não, aquele gritava em alto e bom som e eu segui meu caminho.
Ninguém se aproximou dele. Ninguém nada.
Esperei um tempo enorme, sentada no chão, vendo o mesmo texto sendo dito por pessoas tão diferentes e um diretor exigente que não parava de ajeitar os óculos no nariz adunco ficar cada vez mais impaciente.
Teste por ordem alfabética. O L não ajudava muito mas eu esperava.
Lá pelo H/I o diretor se cansou dos testes. Na verdade creio que ele já tinha encontrado a sua menina na letra G, e então, decidiu que o melhor jeito de continuar o teste eram as meninas entrarem na coxia da direita e, sem roupa, atravessarem o palco até a coxia esquerda.
Levantei e fui embora, não fiz o teste. Aquilo não era um teste era um descaso. Eu e outras tantas meninas fomos embora, outras ficaram. Sempre há as que ficam.
A menina escolhida, na letra G, ganhou o papel, depois projeção na TV, de vez em quando ainda ganha umas páginas de Caras. Bom o teste dela, merecido o papel.
Não me arrependo de nada, a não ser, de não ter atravessado a rua de volta e ter dado o dinheiro do metrô e ônibus que eu carregava em uma bolsa enorme para aquele homem comer.
Era tudo o que eu tinha, mas certamente, hoje, eu seria um tantinho mais feliz se tivesse outro final para essa história.

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