Tinha raiva. Tinha muita raiva, mas sabia o quanto era importante preservar.
Idéias óbvias. Promessas não cumpridas. Comemorações sem sentido.
Tinha tanta raiva, mas respeitava o momento e o tempo alheio.
Por isso, quanto a raiva era insuportável abria a janela e escolhia o primeiro carro que passava e escrevia uma história sobre quem lá ia dirigindo.
A mulher simpática, cara de mãe, perguntava ao homem do ponto de ônibus por um endereço.
Ele instruía virar a esquerda, mas ele a via dobrando a direita. Pronto. Perdida para sempre.
O rapaz de boné, acelerando muito o carro preto. Primeiro? Do pai? Roubado?
Avançando o sinal entre amarelo e vermelho e sumindo para sempre.
O senhor distinto, de óculos, folheando papéis enquanto espera o farol abrir.
Quase se sente o perfume suave de quem viveu dignamente e de quem não será surpreendido em desalinho quando a morte chegar.
O carro vermelho, vidros tão escuros, quem vai á?
Um jogador de futebol? O dono da padaria? A atriz que acaba de gravar a sua primeira novela?
Um minuto mais e lá se vai um carro sem história.
Tinha tanta raiva e conhecia tanto tantas técnicas para acabar com ela, mas de vez em quando não queria aplicá-las!
Queria consumir-se, esvaziar-se dessa coisa ruim que se aloja e cresce e toma conta da expressão, da boca dura, dos olhos sem brilhos, das mãos fechadas.
A ira.
Ira. S. f. 1. Cólera, raiva, indignação. 2. Desejo de vingança.
Era iracundo.
Iracundo. Adj. 1. Propenso à ira; irascível. 2. Irado, colérico, enfurecido.
E assim ia sendo levado pela vida e só, nada mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.