sexta-feira, 31 de julho de 2009

Uma média & Pão com Manteiga na Chapa

Anotou o número do telefone em um guardanapo de qualidade inferior.
Dobrou bem dobrado. Guardou no bolso da camisa.
Camisas modernas não tem mais esses bolsos, com esses botões, mas ele não tinha camisas modernas.
Terminou de tomar o seu café com leite ou leite com café e pensou mais uma vez que nunca entendeu porque chamam essa combinação de média. Ele tentava, mas nunca conseguia pedir uma média e um pão com manteiga. Média do quê? Metade leite metade café e na média se obtém um líquido nem marrom nem branco? Nem tão suave como o leite e nem tão forte como o café?
Mordeu o pão. Fresquinho, manteiga derretendo.
Limpou o canto do lábio com o dedo mesmo.
Se tivesse mais dinheiro pediria outro pão. A fome era tanta! Almoço e jantar não, mas o café da manhã... Tinha sempre muita fome, queria sempre algo quente, acolhedor.
Cheiro de infância. Na infância tinha leite com café a vontade e bolo de milho ou bolo de fubá ou bolo de cenoura ou bolo de mandioca e pão, sempre pão!
Agora, o que tinha era um telefone anotado em um guardanapo de papel esquisito, nada absorvente. Barulhento e ineficiente. Montes deles esperavam o próximo freguês deitado em porta-guardanapos que mais pareciam mini esquifes.
Na segunda-feira telefonaria, são dias mais produtivos e tem a semana inteira pela frente para novas tentativas, para prolongar a esperança de um: sim, nós temos uma vaga, pode vir para uma entrevista?

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Ana Luiza na Comunidade

Ela queria sair na escola de samba da comunidade.
Ele dizia que eles não eram da comunidade, que estavam morando ali porque ela perdera o emprego há meses e, sem recolocação, o dinheiro dele não dava para o aluguel em lugar melhor.
Ela fazia cara feia.
Dia seguinte saia cedo, arrumada, cv na mão em busca de um emprego que já nem sabia se queria que aparecesse.
Ali na comunidade as pessoas gostavam dela.
Passavam a tarde na casa dela contando coisas. Tomavam café.
Os homens olhavam pra ela com olhos gulosos.
A casa era tão humilde que ela jamais convidara amigos de antes ou alguém da familia para um almoço, como costumava fazer.
Mas estava tão feliz!
Era um brinco a casa. Ela cuidava e preparava o jantar como se estivesse brincando de casinha.
E, dengosa, depois do jantar, um chamego para voltar ao assunto da escola de samba da comunidade.
Ele já não respondia mais, nervoso que ficava. Quero é ir embora daqui, esquecer que isso existe!
Ter meu apto de volta, meu carro de volta, poder tomar a minha cerveja sem fazer contas!
Pensava em tudo isso enquanto esperava nervoso pela resposta dos médicos.
É, ela não sairia mais na escola de samba da comunidade.
Era tão querida por eles, mas não tinha malícia. Não correu, não se escondeu quando tudo começou!
Ficou bem no caminho da bala perdida e agora, não andaria mais com as próprias pernas e, pelo que se sabia, ninguém planejava uma ala de cadeirantes para a escola da comunidade.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

10 anos de Antonella

O dia amanheceu chuvoso, mas em meu coração o sol brilhou desde os primeiros minutos.
A memória fez um caminho especial e chegou a 29 de julho de 1999. Nascimento de Antonella!
Estourou minha bolsa as 5h30 da manhã. Fez-me tomar um banho, tirar as últimas fotos do barrigão e ir para o hospital, mas deixou-se ficar aninhada em mim, como quem sabia que não voltaria a nadar nesse mar de amor.
23h23, bom, agora sim já era hora, antes que um dia de número ímpar terminasse apareceu.
Pele rosada de porcelana, cabelos fartos e escuros, pulmão forte, com todos os dedos dos pés e das mãos.
Mudou para sempre nossas vidas.
Imprimiu ritmo. Marca d´água, alto relevo, negrito, itálico, destacou a história das nossas vidas em cada momento.
Escreve em nós uma biografia abençoada e que para sempre está marcada com seu jeito único de ser. Nem melhor nem pior apenas único.
Uma década de olhos postos em mim e incansáveis mamãe eu te amo, e meu assombro:
meu deus, será que eu fiz por merecer?

terça-feira, 28 de julho de 2009

aula de educação fisica

Eu usei uma saia branca, bem curta, toda cheia de pregas sobre um short vermelho, de tecido relativamente grosso, com elásticos nas pernas, parecendo um balonê.
E camiseta branca. E nada supera a simplicidade de uma camiseta branca.
Tênis e meias brancas.
Não sei se fico sentida ou agradecida por nunca ter sido fotografada em tal vestimenta.
E era assim que eu me apresentava para as aulas de educação física.
Noções de atletismo. Noções de ginástica rítmica. Apresentação de performance com cascas de coco como instrumento de som. E eu, orgulhosa de ser a ritmista. Que não passava de ser a pessoa que contava em alto e bom som para que todos fizessem os movimentos ao mesmo tempo.
Noções de basquete e volei e era aí que a encrenca começava.
Eu não jogava bem, não me empenhava e não me interessava muito por esses esportes.
Mas, adorava narrar os jogos enquanto jogava, para desespero de todos e muitas, mas muitas caretas e apitos da minha professora.
Se por um lado eu era comportada e coordenava todas os exercícios ritmicos, por outro eu me transformava em seu pesadelo e era uma queda de braço porque ela poderia simplesmente me deixar na beira da quadra, narrando.
E, de quebra, eu poderia devolver a bola ao jogo quando saísse da quadra.
Mas não, ela insistia.
E eu não desistia.
Lusia para Cristiane, Cristiane arremesa e não acerta, mas Márcia, Márcia recupera a bola no rebote e devolve para Cristiane que... agora sim, cesta com Cristiane cada vez mais perto da convocação para a seleção!
Não era futebol, não era rádio, mas eu adorava, a despeito da impaciência de quem podia me vencer na quadra, mas não podia me vencer na teimosia das palavras!

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Constrangedor

Meu pai me disse uma vez que diante de uma colocação estúpida eu deveria reagir humildemente, calmamente e pensar fortemente: sou mais inteligente do que isso, tenho que relevar, eu tenho que entender a situação por mim e por ele ou por ela e resolver da melhor maneira possível.

Garlfield é mais direto, olhando para Odie pensa:
- humm... acho que levo uma vantagem mental sobre esse cara!

Nem sempre consigo seguir esses sábios conselhos, mas quando consigo, é tão bom!
Diante do gastroenterologista que me disse: toma café e vem me contar que tem dor de estômago? Não respondi nada, apenas sorri.

E tantos outros comentários que ficariam melhor em bocas fechadas. Afetaram-me tanto que não lembro deles para relatar, o que seria um deleite para qualquer um.
Talvez anotar na próxima ocorrência?

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Meus vizinhos - Mais histórias de Recife

Era um prédio pequeno, de apartamentos pequenos, na Boa Viagem, quase pé na areia.
Solteiros e solteiras, casados sem filhos e eu, uma galega. Um lugar sossegado, sem algazarra.
Minha vizinha do lado, uma morena bonita, era bem discreta e dizia bom dia e boa noite quando nos encontrávamos no elevador.
Uma manhã de sábado eu a encontrei na praia.
Ela tomava sol de costas, sorriu e puxou papo. Quando se virou, não pude deixar de observar a cicatriz que rasgava a sua barriga de alto a baixo. Feia. Mal feita.
Sem constranger-se ela explicou. Era a única sobrevivente de um acidente de carro, tinha perdido o noivo e os pais dele. Ela tirara o cinto de segurança por um minuto para tirar uma camiseta de manga comprida quando o acidente se deu e ela foi lançada para fora do carro. Os outros se foram.
Enquanto eu pensava que se tivesse sido atendida em SP certamente lhe teriam feito uma cirurgia plástica ou dado os chamados pontos de plástica ela me explicava que em breve faria uma cirurgia corretiva.
Não falamos mais sobre isso e ela passou a me indicar médicos e dentistas, onde encontrar os raros legumes e as verduras frescas e a vida seguia seu curso tranquilamente.
Um dia acordei com uma algazarra no corredor e demorei a entender que era uma mudança que chegava ao apto da frente.
Com o passar dos dias fui descobrindo a história.
Era uma família inteira de pai, mãe e três crianças, em apartamento tão pequeno!, que tinham alugado a casa grande para uns peões de uma construção e se alojado temporariamente no apto.
Bom negócio. Nunca atinei quem articulou, não valia a pena.
Habitavam o apartamento e o corredor como uma extensão do mesmo. Crianças correndo, gritando, altas horas e o entra e sai ignorava vizinho de frente e de lado, apesar dos olhares de censura e nada parecia mudar.
Até o dia do peixe.
Um sábado voltei da praia, tomei um banho e me joguei no sofá com um livro. Fui para o quarto porque o barulho não me deixava concentrar e comecei a sentir um forte cheiro de fritura, de peixe, de fumaça.
Não demorou muito para que ouvisse um bate boca sem fim.
Fui olhar. Era meu andar, minha porta.
Minha vizinha estava enlouquecida com o dono do bom negócio, reclamando da algazarra das crianças, do barulho fora de hora, da porta aberta e agora, era demais, um cheiro de peixe invadindo tudo, que fechasse a porta e...
E o meu vizinho. Baixinho, sem camisa, moreno de pele curtida de sol, mão na cintura e indignado só dizia
- o quê? você tá reclamando do meu di cumê?
Que em português significa: reclamando do meu de comer, da minha comida?

Não fiquei para ver o final. Voltei para o meu livro e menos de um mês depois estava de volta a São Paulo, sem saudades dos meus vizinhos ou do di cume dos restaurantes da beira da praia.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Eu vi!

Hoje de manhã, contrariando as recomendações da minha dermatologista a respeito de banho longo e muito quente, contrariando minha conta bancária a respeito do consumo de água e energia, deixei-me ficar embaixo da água olhando pela janela.
Namoro dos quero-queros.
Uma fêmea, muitos machos. Uma dança desconcertante.
Quando parece que aceitou a presença de um, lado a lado no galho de uma árvore, outro chega, os desaloja e tudo recomeça.
Vão para o campo de futebol e grito sem soltar palavra: não, aí não, os meninos vão ignorar e vocês vão sofrer!
Os quero-queros fazem seus ninhos no chão e ficam ali o tempo todo, por muito tempo, o que sempre me pareceu muito incoerente para um pássaro.
Se pode ganhar os céus e escolher picos aconchegantes de árvores, porque na grama?
Há gramados no jardim que não o campo de futebol e sempre cuidamos.
Os cães do condomínio andam sempre nas coleiras, mas os gatos... Os gatos já nascem pobres, mas nascem livres...
Fico olhando o balé, ouvindo o canto e tentando adivinhar quais são os critérios que a fará decidir por um ou por outro.
Decisões. Escolher um parceiro, escolher um lugar para cuidar da cria, cuidar do tempo ensolarado, chuvoso. Arremeter contra as crianças que distraídas correm pela grama, deixam a bola escapulir, fazem manobras de bicicleta.
O tempo urge e não consigo ver o casal final.
Faria alguma diferença, se me parecem todos de um cinza amarronzado e branco?
Será que a noiva ficou feliz? Será que há noivas para os que não foram bem nessa primeira empreitada?
Quando a primavera chegar, mais que flores, ninhos e quero-queros vão brotar.
Eu vi e isso me alimenta para terminar a semana feliz!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Tereza

A menina estava no balanço.
Cabelo embaraçado. Pé descalço e sujo.
Olhos alegres em um vai e vem e parecia cantarolar alguma coisa.
O menino não se via por ali. Sempre trepado nas árvores da redondeza. Sabia coisas que dava medo.
Mas nunca usava as informações.
Cabeça baixa, olhar dissimulado.
Pode um menino ser dissimulado?
O gato dormia largado no tapete roto.
O cachorro quieto, nem deitado nem sentado espantava as moscas com o rabo.
A tarde estava tão quente que o ar parecia envolver e silenciar tudo.
Ela esfregava o colarinho no tanque que isso não tem jeito de limpar na máquina.
Não tem sabão em pó ou em líquido ou em barra que tire aquela gordura.
Queria deixar tudo limpo, arrumado, porque na manhã seguinte quando acordassem ela já estaria longe.
Sabia que iria chorar.
Sabia que se arrependeria no futuro se é que haveria um.
Mas não queria pensar nisso.
Precisava estender a camisa e recolher as crianças pra dar o banho e o jantar.
Por pra dormir, abençoar e depois do terceiro ou quarto ronco do dono da camisa que chegaria mal humorado para o jantar, sairia pela porta da cozinha, para nunca mais voltar.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Marionete de música japonesa

Em mim, o que mudou significativamente no decorrer dos anos, foi a memória.
Mas por categoria. Não me lembro mais tão facilmente do nome das pessoas. E antes era uma agenda ambulante. Na época em que elas só existiam de papel, eu era um verdadeiro palm, iphone, blackBerry e que tais.
Agora não lembro mais. Preciso mencionar um ou outro nome, vejo o rosto sorridente do ser em minha mente e simplesmente não tem legenda com nome e muitas vezes com a empresa que representa.
E não é uma segmentação business, pelo que eu me desculparia com o santo nome em vão do stress.
Com filmes também passa o mesmo, as pessoas têm que me contar quase o filme todo para então eu relacionar o nome ao desenrolar da história e ter o clique: ah, sim, claro, já vi!
Horrível.
Mas, inversamente oposta a essa situação, está a minha facilidade para gravar e reproduzir frases inteiras das minhas filhas, em algumas situações.
Talvez porque me surpreendam. Talvez porque haja um envolvimento emocional diferente. Talvez porque eu tenha sofrido para rearranjar o momento.
Veja um exemplo:

comemoração do dia das mães na escola, minha primogênita com quase 8 anos,
oportunidade para conhecer a mãe da melhor amiga, que recentemente chegou com a filha do Japão
quadra de esportes
professora de microfone em punho tentando integrar mães, filhos, amigos decide orientar sobre um exercício de Tai Chi Chuan, para relaxar, para divertir
e, nos primeiros momentos, algazarra, até que todos se concentram no exercício e o silêncio varre o espaço
pois bem nesse momento de silêncio quase total, a minha pequena solta a frase tão ricamente elaborada, em alto e bom some da qual me lembro, palavra por palavra incluindo as pausas da respiração

- hei, eu sou uma criatura moderna, não uma marionete de música japonesa!

É, eu não me esqueço desse tipo de frase!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Pagar para ver

Isso às vezes pode significar "pagar mico".
E pagar mico tem uma classificação morfossintática: verbo infinitivo 1a pes singular ou 3a pes singular cujo sinônimo é envergonhar-se e uma palavra relacionada pode ser gafe.

Nasci teimosa, descrente, desconfiada, dona de minhas verdades, as quais minha sábia mãe não sucumbiu.

Com 8 anos de idade, nos meus primeiros anos de escola, a escola era tudo pra mim.
Arrumava minha bolsa, cheirava o material novo, pensava no lanche, ensaiava respostas para a professora, era um mundo tão sério para mim que dele eu não podia me ausentar um dia sequer.
Fizesse chuva, vento e tempestade ou sol. Estivesse com gripe, com dor de garganta e até com um pouco de febre, lá estava eu. Firme e forte.

E um belo dia, comecei a me arrumar e minha mãe se atreveu a me dizer:
- hoje não tem aula, é feriado!

- feriado de que? descrente

Infelizmente não me lembro a resposta, a data, mas foi categórica, segura.
Infelizmente não acreditei. E desfiei um rosário de explicações:

- como? se não veio nenhum aviso? se a professora não comentou? se nem um amigo falou? se não estou vendo todo mundo em casa? se a cidade não está com cara de festa? se não fiz traços verde e amarelo no caderno?

E fui por aí. Minha mãe respondendo sem se impacientar cada um dos meus argumentos até que deu de ombros e me disse:

- bom, se não acredita em mim, vai para a escola, pode ir

Pois eu me arrumei e fui até a escola. Chamava-se Bartira (lembra alguma coisa? Tupã, índio...) e ficava na praça central da cidade de Tupã, ao lado da Igreja Matriz. Era longe da minha casa, mas naquela época íamos sozinhos ou em pequenos grupos, despreocupados de barbaridades atuais.

Cheguei na escola pontualmente mas o portão estava fechado e não havia viva alma por ali.
Minhas têmporas formigaram. Isso acontece até hoje.
Um misto de raiva por não estar certa e muita, mas muita vergonha de imaginar que todo mundo que me tivesse visto de uniforme e material escolar estivesse rindo de mim.

Voltei por um caminho alternativo, mais longo, mas com casas mais silenciosas, nenhum comércio.
Lembro que encontrei um sorveteiro e comprei um picolé.
Um verdadeiro oásis naquela tarde de sol escaldante.
Ele não perguntou nada e eu quis terminar logo, escolher, pagar, fugir.

Em casa, tirei o uniforme e fui brincar. Minha mãe me olhou silenciosa e não foi preciso uma única palavra para que eu aprendesse a lição.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Nasci de um ovo chocado ao sol

O trem insistia em aumentar o volume de seu barulho não importava o quanto apertasse os fones de ouvido.
Era uma viagem longa, uma viagem poeirenta, uma viagem sem sentido.
Sabia que ia voltar, mas não queria ir. Por que simplesmente não atendemos as nossas vontades e pronto?
De onde vem essa sequência de acontecimentos, como uma vassoura juntando as folhas de outono?
Não queria ir, mas a mãe disse que era importante e ali estava, tentando ouvir música, mas o barulho do trem não era amigável.
Não conseguia olhar pela janela. A paisagem além de sem graça passava rápido demais.
Mesmo assim viu um boi preto, ou era vaca? Olhando pra ele. Olhou mesmo, e aquele olhar perdido ficou parado no tempo.
A vó tinha cortado a árvore que cuspia folhas todos os dias, não importando se era primavera ou outono.
Todo mundo ficou chocado. Na cidade grande pessoas se amarram em troncos para que as árvores não sejam cortadas, mesmo naquelas infestadas de cupim e que vão cair em cima de um carro em uma chuvarada de verão.
E a vó! Essa estava cheia de varrer a calçada e o quintal todo dia. Não teve dúvida. Nunca contou quanto pagou ao tipo que nunca mais foi visto por ali. Onde será que a vó arranjou aquele tipo?
Na próxima parada compraria algumas revistas.
Não via o pai há sete anos. O que lhe diria?
E se descesse uma estação antes e voltasse sem lá chegar? O que a mãe diria?
Compraria também um gibi. Afinal, foi de Horácio que ele ouviu uma das frases mais tristes de sua infância: nasci de um ovo chocado ao sol...
Talvez tivesse sido melhor assim.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Memória

O bebê estava alimentado e limpo mas mesmo assim não parava de chorar.
Queria colo. Apenas um colo quente e aconchegante.
Ainda não sabia que se pode ter colo por toda a vida. Queria seu quinhão naquele momento.
Queria sentir o cheiro. Queria sentir o calor.
Há uma memória que mora em nós e que guarda esse calor, esse cheiro, esses momentos de conforto.
Quando uma nuvem negra circunda nosso dia a dia é um ótimo refúgio.
Olhe para quem está gritando e gesticulando mas veja muito além de seus gestos indignados.
Veja lá atrás um par de braços sempre atentos.
Escute o que gritam sem razão mas não ouça.
Apenas lembre-se do som baixinho, da voz suave de uma pessoa que parecia parte de nós.
Habite um colo em seus piores momentos, sem nem mesmo precisar chorar.
Não há ataque que fure o bloqueio de uma lembrança só sua.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Juliana

Era um ponto de ônibus como qualquer outro até o dia em que a conheceu ali.
Marcou sua alegria e sua tragédia.
No primeiro dia chegou apressado e perguntou se tinha horas sem sequer olhar para ela.
Ela percebeu que não era uma cantada e lhe disse que eram 19 e 30.
Então ele levantou os olhos para encará-la e voltou a olhar para o relógio que ela levava no pulso esquerdo.
Com uma cara esquisita.
Ela pensou que talvez fosse um assalto, mas então ele comentou:
- nunca alguém que usa um relógio digital me respondeu as horas de forma analógica, interessante
E ficou na fila, atrás dela.
Ela apenas sorriu. Demorou um pouco para entender o que ele queria dizer.
Depois disso, foram 7 anos de convívio cada vez mais próximo, entre amores e desamores namoraram, noivaram, casaram tradicionalmente com empadas e lembrancinhas.
Mas naquele 7 de setembro...
Era feriado mas ele ia trabalhar.
Ela disse que ia dormir um sono atrasado de muitos dias.
Ele chegou ao trabalho mas o mestre não estava bem e na hora do almoço liberou todo mundo.
Quando ele chegou ao ponto de ônibus o ônibus já estava no ponto e ele não esperou nem um segundo. Mas teve tempo de se lembrar do dia em que tivera seu diálogo mais sofisticado com ela, analógico, digital. Sorriso meigo ao lembrar.
Antológico foi encontrá-la com as pernas entrelaçadas em um corpo moreno, entre os seus lençóis de flores amarelas.
Não conseguiu se lembrar de mais nada, mas compreendeu, pelas manchas na calça e na camisa e pela movimentação de homens fumantes que o tempo acabou não importando se quem vai marcar serão os números piscantes separados por dois pontos ou um ponteiro arrogante circulando sem parar.
Um último pensamento sofisticado.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Sobreviveu

Espiou por cima do muro, não viu ninguém, saiu correndo e atravessou a rua.
Nunca mais foi visto! Sentiu-se enganado, ludibriado, sentiu-se um idiota.
Começou a refazer o caminho que o levara até ali.
Que droga, tinha deixado de observar pequenos detalhes que teriam feito toda a diferença!
Mas agora estava fugindo.
Só queria levar a si mesmo e nada mais. E mais ninguém.
Estava feliz com quem era.
Gostava de como se relacionava com suas dores, com suas dúvidas.
Gostava de escrever os seus versos e ler os seus livros.
A rua deserta foi ecoando seus passos, mas não estava molhada e não deixou rastro.
Nem olhou para atrás, seguiu em frente, sorriso no rosto aliviado.
Prestando atenção nos novos detalhes começou a traçar seu novo destino.
Rejuvenesceu.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Preguiça assumida

Tentou sentar-se na cama mas não teve forças e voltou a deitar. Deixou-se abandonar.
Era um dia útil, mas ele estava inútil. Frio, chovendo, telefone em silêncio, TV desligada, nenhum passarinho cantando na janela, nenhum gato miando no quintal, nenhum cão latindo uma música inútil.
Um dia perfeito para abandonar-se a preguiça de apenas ser um ser cansado.
Cansado da rotina.
Cansado da falta de perspectiva.
Cansado do certo sem nunca dar de cara com o duvidoso.
Cansado do carro prata, que substituiu um preto.
Cansado da calça jeans e da camisa branca.
Cansado do tênis correto.
Cansado do cabelo cortado do mesmo jeito.
Decidiu ficar na cama e apenas ouvir a chuva.
Levantaria quando tivesse fome, se tivesse fome.
Levantaria quando tivesse sede, se tivesse sede e então, certamente levantaria para ir ao banheiro.
Mas não escovaria os dentes e nem tomaria banho.
Deitado de lado, afofou o travesseiro e olhou o relógio.
Imaginou a cara do porteiro que não o veria descer, jornal em punho acenando bom dia.
Imaginou a cara da recepcionista, espionando o elevador e selecionando o target para arrumar ou não o cabelo, medir o esforço do charme de acordo com o visitante.
E pensando assim foi adormecendo de novo. Parecia ouvir ao longe um chamado do celular, mas ignorou completamente e ficou feliz de lembrar que a bateria estava por pouco.
Era quarta-feira, um dia perfeito de chuva para gazetear.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A menina da voz afinada

Causou inveja em todos quando cantou a música que fora escolhida. O destino deu a ela, somente a ela e a ninguém mais do grupo, aquela voz límpida, suave e afinadíssima.
Logo a ela que era filha de pais surdos-mudo que nunca a ouviriam cantar.
Ninguém ali tinha idade suficiente para ponderar sobre as armadilhas do destino.
Para alguns, além da voz límpida era também a mais bonita.
A que voltava bronzeada das férias de verão, com a saia cada vez mais mini explorando os pelos dourados da coxa.
Gesticulava muito defendendo uma posição com a qual todos concordavam.
Mas precisava falar e falar muito e falar alto.
Ninguém ali considerava que em casa era uma voz sem som. Gestos rápidos de quem dominava os sinais.
Lábios treinados para articular cada uma das palavras.
Natural que defendesse sua posição com voz, lábios e mãos! Mas para o resto do grupo era apenas demasiado!
Seus desafetos esbarravam nos que lhe tinham afeto e muito mais.
Depois perdeu-se. O grupo perdeu-se em destinos que não estavam preparados para seguirem uma mesma partitura.
Mas dela se achou rastro. Casou-se com seu primeiro amor, teve filhos, não seguiu carreira na música, no teatro. Gesticulou para si e para os seus o que o grupo via com desconfiança porque a voz límpida e afinada desafiava.
Alguns têm saudade, outros já a esqueceram.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Ana Maria aos 18, quem diria!

Quando criança nunca pensava que chegaria aos quarenta anos.
Mas quando chegou... rapaz, que mulher! Muito melhor do que quando tinha dezoito!
Não sabia andar, não sabia sentar, tinha espinha, ficava com a barriga grande naqueles dias.
Era desengonçada. Ria a toa, sempre falava a coisa errada na hora errada. Ficava vermelha.
De saia, pernas brancas, canela fina.
De calça, bunda achatada, cintura reta.
Sem graça, menina mais sem graça!
Cabelo de franjinha escorrido de um lado, fivelinha vermelha que mais parecia uma folha seca caída de um galho.
Sem brilho. Olhos nervosos, mãos suadas.
Ah, quando criança era engraçadinha, um risinho do lado a tirava de qualquer enrascada.
Primeira filha, primeira neta, depois prima mais velha. Mas aos dezoito anos... Não. Não merecia ter tido dezoito anos.
Mas agora, aos quarenta! Espelho com luzes no quarto.
Sapatos de todas as cores. Meias palavras sempre na hora certa. Sem espinha nenhuma. Pernas bronzeadas, torneadas, curvas nos lugares certos. Quem diria.
Cabelos volumosos. Ninguém exibe um coque banana mais bacana em dias de casamento.
Olhos brilhantes. Dedos longos com diamantes. Odiou o Manoel quando o reviu no jantar e ele fez a piada infame: que lindo anel, é d(e)i amante? Sempre nojento o Manoel.
E ela, cada dia melhor.
Fazia um teste infalível para checar se estava gorda: passava a pé por uma obra, se os homens soltassem um gostosa... sim, gorda! Se a ignorassem, em forma.
Quem diria. Ninguém diria, nem ela mesma, mas aí está, depois que fez dezenove começou a entender que era de dentro pra fora e nunca mais parou de crescer!

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sem razão

Amou um amor amadurecido e de certa forma endurecido.
Já tinha quarenta anos e nenhuma ilusão adicional.
Mas sabia entender os altos e baixos. Reconhecia o olhar de tristeza.
Sabia quando algo bom ia acontecer.
No final de semana, quando passava os olhos pelo jornal, vendo sem olhar, lendo sem entender, parava o olhar em um ponto qualquer da parede e sentia-se tranquilo por apenas estar ali.
Um amor sem pressa, sem pressão. Um amor sem paixão.
Lustrava os sapatos no final do domingo enquanto concordava com o sabor da pizza que pediriam logo mais.
Manoel nunca imaginou desposar mulher tão bonita. Tinha medo de ponderar e de perder.
Qualquer gesto adicional poderia desmanchar aquele castelo de cartas.
Casa limpa. Flores sempre frescas na mesa da sala. Toalha alinhada, ainda que não de linho.
Cada vez que ensaiava um gesto mais carinhoso, visualizava uma cena de repulsa, uma conversa dura e fim.
Amou um amor amadurecido e de certa forma endurecido, por puro medo de perder.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Morte súbita é que é morte verdadeira

Amanheceu chovendo, mas essa era uma variável que ele não podia controlar.
Já decidir se sairia da cama sim, estava sob seu comando. Preferiu sair. Elencou rapidamente os pros e contras e preferiu encarar o dia chuvoso.
Prometeu a si mesmo que observaria cada ocorrência e avaliaria o poder de controlar que lhe caberia e, assim, evitaria qualquer contratempo.
Tomou banho, vestiu-se, tomou café. Nada de errado.
Quando já estava no carro lembrou-se de que precisaria de um guarda-chuva e voltou para apanhá-lo. Variável controlável, nervos no lugar.
Seguiu seu caminho habitual. Respeitou todos os faróis, todos os limites de velocidade. Ignorou a sonora buzina quando diminuiu e parou para deixar um carro sair de uma garagem.
Já no trabalho, cumprimentou discretamente os que foi encontrando.
Tudo na medida certa. Nem entusiasmado demais, nem mecânico demais.
Espiou o jornal antes de conferir as notícias da internet.
Um ritual, uma obrigação com a sua tradição. Seu lado old fashion reforçado a cada dia. Insuportavelmente coerente com a boa e velha notícia.
Leu alguns e-mails, conferiu a agenda e atendeu dois ou três telefonemas.
Olhou o relógio e deu um sorriso de satisfação. Já passava das dez e nada, absolutamente nada havia perturbado a calma que determinara para si.
Foi sua última constatação, porque no momento seguinte, uma dor aguda lhe subiu pelo braço, agarrou-o pelo pescoço e apertou seu coração como antigamente as mamas apertavam o pescoço das galinhas. Ainda fez um último gesto antes de cair derrubando cadeira e objetos da mesa.
Ouviu passos apressados e vozes que foram desaparecendo para sempre no mundo novo que desenhara para si.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Nem tudo o que tem reflexo tem nexo

Amanheceu chovendo.
Amou um amor amadurecido e de certa forma endurecido.
Quando criança nunca pensava que chegaria aos quarenta anos.
Causou inveja em todos quando cantou a música que fora escolhida. O destino deu a ela, a ninguém mais do grupo, aquela voz límpida, suave e afinadíssima. Logo a ela que era filha de pais surdos-mudo que nunca a ouviriam cantar.
Tentou sentar-se na cama mas não teve forças e voltou a deitar. Deixou-se abandonar.
Espiou por cima do muro, não viu ninguém, saiu correndo e atravessou a rua. Nunca mais foi visto!
Era um ponto de ônibus como qualquer outro até o dia em que a conheceu ali. Marcou sua alegria e sua tragédia.
O bebê estava alimentado e limpo mas mesmo assim não parava de chorar.
O trem insistia em aumentar o volume de seu barulho não importava o quanto apertasse os fones de ouvido.
Tudo foi ficando escuro ao seu redor e a última coisa que procurou enxergar foi um lugar onde pudesse se apoiar mas não teve tempo.
Que diferença faz a causa da morte para quem morreu?

Se tudo parece desconexo é apenas porque é desconexo.
Tentei com todas essas frases começar o post de hoje, que não consegue preencher a lacuna de ontem, dia útil sem texto, porque sem tempo, sem computador, sem palavras.
Cada frase guarda em si uma longa história. Que poderei desenrolar quando outra quinta-feira chuvosa e escura atormentar minha predilação pelas quartas-feiras.