Era um prédio pequeno, de apartamentos pequenos, na Boa Viagem, quase pé na areia.
Solteiros e solteiras, casados sem filhos e eu, uma galega. Um lugar sossegado, sem algazarra.
Minha vizinha do lado, uma morena bonita, era bem discreta e dizia bom dia e boa noite quando nos encontrávamos no elevador.
Uma manhã de sábado eu a encontrei na praia.
Ela tomava sol de costas, sorriu e puxou papo. Quando se virou, não pude deixar de observar a cicatriz que rasgava a sua barriga de alto a baixo. Feia. Mal feita.
Sem constranger-se ela explicou. Era a única sobrevivente de um acidente de carro, tinha perdido o noivo e os pais dele. Ela tirara o cinto de segurança por um minuto para tirar uma camiseta de manga comprida quando o acidente se deu e ela foi lançada para fora do carro. Os outros se foram.
Enquanto eu pensava que se tivesse sido atendida em SP certamente lhe teriam feito uma cirurgia plástica ou dado os chamados pontos de plástica ela me explicava que em breve faria uma cirurgia corretiva.
Não falamos mais sobre isso e ela passou a me indicar médicos e dentistas, onde encontrar os raros legumes e as verduras frescas e a vida seguia seu curso tranquilamente.
Um dia acordei com uma algazarra no corredor e demorei a entender que era uma mudança que chegava ao apto da frente.
Com o passar dos dias fui descobrindo a história.
Era uma família inteira de pai, mãe e três crianças, em apartamento tão pequeno!, que tinham alugado a casa grande para uns peões de uma construção e se alojado temporariamente no apto.
Bom negócio. Nunca atinei quem articulou, não valia a pena.
Habitavam o apartamento e o corredor como uma extensão do mesmo. Crianças correndo, gritando, altas horas e o entra e sai ignorava vizinho de frente e de lado, apesar dos olhares de censura e nada parecia mudar.
Até o dia do peixe.
Um sábado voltei da praia, tomei um banho e me joguei no sofá com um livro. Fui para o quarto porque o barulho não me deixava concentrar e comecei a sentir um forte cheiro de fritura, de peixe, de fumaça.
Não demorou muito para que ouvisse um bate boca sem fim.
Fui olhar. Era meu andar, minha porta.
Minha vizinha estava enlouquecida com o dono do bom negócio, reclamando da algazarra das crianças, do barulho fora de hora, da porta aberta e agora, era demais, um cheiro de peixe invadindo tudo, que fechasse a porta e...
E o meu vizinho. Baixinho, sem camisa, moreno de pele curtida de sol, mão na cintura e indignado só dizia
- o quê? você tá reclamando do meu
di cumê?
Que em português significa: reclamando do meu de comer, da minha comida?
Não fiquei para ver o final. Voltei para o meu livro e menos de um mês depois estava de volta a São Paulo, sem saudades dos meus vizinhos ou
do di cume dos restaurantes da beira da praia.