quarta-feira, 31 de março de 2010

Um menino de ouro

Era jovem, muito jovem, um moço bonito.
Casado, apaixonado pela mulher, zeloso do lar e ansioso por ter filhos.
Família, queria ter família.
Era sempre esse o assunto principal em rodas de café, em almoços longos de sexta-feira.
Certa vez comentei que tinha visto comportamento assim, de pessoas que se casam muito cedo, em Porto Alegre, mais do que em qualquer outra região que eu havia estudado, mas mesmo assim, ele era totalmente fora da curva!
Pegou carinhosamente na minha mão e me contou sua história:
- Sabe, minha mãe engravidou ainda adolescente e cresci apenas com ela, em uma casa bem bagunçada.
Eu podia fazer tudo o que quisesse. Comer sentado no chão e com a mão. Comer na frente da televisão. Podia derrubar cereal no sofá e pisotear se me desse vontade.
Podia tirar tudo de cima da mesa e transformá-la em uma pista de corrida, que se eu batesse o pé poderia ficar ali por semanas.
Ela acordava tarde, atrasada, com sono, com preguiça.
Eu ia para a escola com a camiseta sem passar e ela enfiava uma banana na minha mochila ou me dava dinheiro para comprar qualquer coisa para o lanche!
Eu podia dormir mais de meia noite e se no dia seguinte tivesse muito sono e não quisesse ir à aula, tudo bem.
Eu podia brincar nas poças d´água da chuva e chamar meus amigos para virem em casa.
Eles adoravam. O sonho deles era ter uma mãe como a minha. Que se sentava no chão de pernas cruzadas, disputava os gibis, dava gargalhada e servia biscoitos e sorvete que se caíssem no chão, tudo bem.
Eu também podia ir a casa deles e aí nos desentendíamos porque eu queria ir para a casa deles desesperadamente e eles queriam ficar na minha casa.
Eu achava o máximo que não se podia sentar na mesa sem lavar as mãos e o rosto.
Que não podia fazer barulho para tomar o chocolate quente. Pedir licença para levantar da mesa.
Dizer por favor e obrigado o tempo todo. Pedir desculpas por qualquer bobagem.
Recolher os brinquedos depois de brincar.
Não podíamos por os pés no sofá.
O volume da tv não podia ser muito alto para não atrapalhar as outras pessoas.
Havia bolo, de cenoura, de laranja. Suco natural. Macarrão com molho de tomate que a própria mãe fazia!! Nada de miojo com molho de lata.
Escovar os dentes. Pentear o cabelo. Tirar uma linha solta do short. Amarrar o tênis. Levantar a meia.
Eu quero viver tudo isso agora. Na minha casa organizada e limpa. Quero ter filhos e ensiná-los aquilo tudo que eu aprendi por observação, morrendo de inveja dos meninos que faziam caretas para suas mães quando elas se dirigiam à cozinha para buscar mais um pedaço de bolo, mas só mais um pedacinho porque senão atrapalha o jantar...

Um moço do avesso. Um menino de ouro diriam as comadres, com suas pernas apoiadas nas cercas de perdidos quintais.

terça-feira, 30 de março de 2010

Esquisito

Foi renovar a carteira de habilitação e lhe disseram que estava suspensa por pontos.
- Como? Mas não recebi nenhuma multa, nenhuma notificação, meu trajeto de casa ao trabalho não tem mais de oito quilômetros, não pego estrada...
- Moço, ta aqui o seu nome, Paulo Henrique Silva
- Pode verificar números, número da habilitação, número da placa do carro, número do RG, número do CPF, número do prédio, do apartamento...
- Peraí, ah, olha só, não era mesmo você, é outro Paulo Henrique que está bem encrencado!
- Obrigado

Foi fazer uma compra alta e na consulta de crédito...
- Seu Paulo, parece que tem um probleminha aqui.
- Pode verificar números, número do banco, número da declaração de imposto de renda, número da minha carteira de trabalho...
- Peraí, ah, olha só, que sorte hein? É outro camarada com o mesmo nome que o seu!

Começou a buscar por homônimos e não parou mais. Colecionava biografias de Paulos Henriques.
Um estudante de medicina envolvido em trote violento.
Paulo Henrique contratado por um time espanhol com autorização do juiz porque ainda tem 7 anos!
Um advogado sem notícias.
Vários em sites de relacionamento.
Paulo Henrique acusado de assalto a mão armada.
Bombeiro Paulo Henrique salva bebê de prédio em chamas.
Padre Paulo Henrique será recebido em Roma em homenagem especial.
Professor Paulo Henrique lista reivindicações na última reunião de definição de greve.
Paulo Henrique, o Pepe, preso em Olaria será encaminhado para Presidente Bernardes.

- Paulo, que lista é essa?
- Uma lista de homônimos.
- Pra que serve?
- Não serve para nada.
- E?
- E nada, é um hobby!
- Esquisito.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Nem sonho, nem pesadelo

Nem ventava.
Um calor. Mas um calor danado!
Um céu azul, mas tão azul que doía os olhos.
Um silêncio grande. Mas um silêncio tão grande que ocupava todo o espaço da cabeça.
Nem um zumbido de ouvido ruim ou de inseto.
A vegetação baixa até se mexia, mas sem barulhar.
Uma vastidão.
Uma quietude.
Um vazio naquele campo que abraçava para confortar, mas ao mesmo tempo indicava que tudo ia mudar.
Foi assim que me dei conta de que meu amigo não ia mais voltar.
Um passeio meio sem nexo, interior do Paraná, algo como depois do Natal e antes do Ano Novo. Pessoas que não conhecia, primos e primas da amiga que dividia comigo a imponderável morte do amigo jovem.


Agora, 22 anos depois sonho com eles.
Minha teoria fugidia de que ele apenas se cansou de nós, da faculdade, do trabalho, da família e desapareceu em algum lugar do vasto mundo.
Eu, surpresa com o reaparecimento dele, enquanto ela me explica entredentes...

- ele foi para os EUA, ficou lá quase esse tempo todo e agora voltou, trabalha na Telefonica, mas não sei se vai querer falar com a gente...


Meu Deus, o que será que tem ainda soterrado em minhas conexões?

sexta-feira, 26 de março de 2010

Ainda é cedo, será?

- o que você vai ser quando crescer?
- vou trabalhar no cinema
- ah, vai ser atriz?
- nãoooo, eu vou mandar na atriz!


- o que você vai ser quando crescer?
- vou ser cineasta
- ah, bacana
- mas, ter um shopping dá dinheiro?
- bem administrado, num lugar bom, dá
- então eu vou ter um shopping, assim vou ter dinheiro para ser cineasta

- e você, o que vai ser quando crescer?
- vou ser dona de zoológico
- que legal, pode estudar veterinária, assim vai saber como cuidar melhor dos bichinhos
- não, não precisa, eu vou ser só a dona e contratar um monte de gente pra trabalhar, veterinário, homem que dá comida, homem que dá banho

- quando eu ficar velhinha eu posso morar com você?
- poder pode, mas você sabe né, quando a gente saiu da maternidade o cordão umbilical já tava cortado...

- mãe eu quero ter dois filhos, mas acho que vou adotar, é mais rápido, já vem pronto não é?

- mãe quando eu casar você pode guardar as minhas coisas pra mim? os meus brinquedos, as minhas cartas de pokemon, eu quero que a minha casa fique bem organizadinha...

quinta-feira, 25 de março de 2010

Status quo

Quinta-feira.
Quintaessência.
Quincas Borba.
Quietude.
Quitutes.
Querência.
Quintana, a serra que já dinamitaram, o poeta, que me esvazia.
Quinta-feira.
Quinto elemento
Quimera.
Querelas.
Queixume.
Quatro elementos.
Quati.
Quebra nozes que não dancei.
Quadrados que ignorei.
Quartos que esvaziei.
Quilates que desprezei.
Quinta-feira precedida pela quarta.
Quarto de milha, o cavalo que não comprei.
Quirela, o milho que recolhido à sua insignificância alimenta as galinhas no quintal.
Quintal.
Quartel general.
Qualira, o significado histórico que descobri em São Luis do Maranhão.
Quadrinhos.
Quatá, a cidadezinha que visitava com meu pai.
Quaresma, tempo de recolher.
Quântica, a física que não alcanço compreender.
Quantos anos?
Quais amores?
Queimada.
Quadril.
Quatro rodas na estrada.
Quadrilha, a dança que recusei.
Quebra-cabeça.
Quebra-gelo.
Quarteirão que arredondei.
Quina.
Queria tanto, tanto estar e apenas ser.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Três meninas velhas

Um domingo quente, calmo, meninas mergulhadas na piscina.
Depois de um embate consigo que se despeçam da tarde aquática e vamos caminhando para casa.
Sem compromisso, sem futuro, apenas carregando toalhas molhadas, sacolas protegendo protetores, um ventinho que se zanga porque os cabelos molhados não esvoaçam como ele gosta de ver.
Somos três meninas sem idade, mas minha caçula dispara:
- mãe, você já gostou de muitos?
- ah, ja gostei de alguns, mas cada um de uma vez e depois encontrei o papai
- eu sei, eu gosto de muitos, mas gosto ao mesmo tempo
- gosto do... na escola, do... no inglês e aqui no condomínio do...
- mas você não deve gostar por território! nós gostamos das pessoas independentemente de onde elas estejam
- é... mas eu gosto assim, gosto de todos eles, mas não faz mal, porque eu já capturei o Vitor
- o Vitor? mas o Vitor já tem quase treze anos, ele é muito mais velho que você!

Aqui dois parênteses são necessários. O primeiro para dizer que o Vitor, filho de amigos, é um menino doce, que apesar de pré-adolescente dá atenção aos amores da minha pequena, deixa que segure em sua mão, toma a sopa inexistente que ela lhe oferece em um prato de brinquedo.
O segundo parênteses guarda a reação da irmã mais velha que até então caminhava ligeiramente na frente e parecendo alheia a qualquer conversa. Retomando...

- o Vitor? mas o Vitor já tem quase treze anos, ele é muito mais velho que você!
- mãe! mas não se pode impedir o amor! não ouça isso Valentina, os adultos querem sempre dizer de quem devemos gostar mas não é assim que funciona, você pode capturar o Vitor que eu te defendo!

Meus Deus, elas ainda tinham 9 e 6 anos...

terça-feira, 23 de março de 2010

Cara metade

- Amor, você me ama?
- Claro que sim!
- E você acha que se eu acreditasse eu ia ficar perguntando?


- Alô, oi, adivinha quem é, mô!
- É o Mussum
- Ai como você é sem graça, nada romântico funciona com você


- Oi, espera um pouquinho, preciso terminar um relatório e já te chamo
- Então por que tá online?
- Agora não
- Trabalha online por acaso? Ah vai, só quero perguntar se a gente pode ir na festa da Lu

- Beijo, te amo muito, te amo mais que tudo, desliga agora vai, desliga você
- Beijo eu também te amo
- Desliga fofo...
......................

- E ai cara, cadê a Ana Elisa?
- A Ana Elisa já era
- Sério? Vocês pareciam tão bem
- É, eu ainda gosto dela, mas cara, ela não acredita, fica perguntando o tempo todo, um nhemnhemnhem, não consigo e você?
- Hum... Eu bem que gostava que a Débora me fizesse um nhemnhemnhem, a mulher namora como se estivesse em reunião de negócios... nenhum amorzinho rola...

segunda-feira, 22 de março de 2010

Resgate

Deitou-se de costas e passou as mãos sob a nuca.
Vislumbrou as estrelas no azul do céu pelo quadrado retangular que a janela determinou.
Pensou mil asneiras, desejou um novo amor.
Sorriu complacente para si mesmo.
Tão distante, tão viajante e tão efêmera em cada parada.
Sentiu o corpo descansar o pouco peso da corrida a beira mar.
Tantas vezes correu de uniforme para quase nunca ganhar...
Sentiu o vento leve e cheirou o lençol.
Os olhos pesaram, as estrelas consumiram-se nas nuvens.
A chuva acalmou tudo, os braços formigaram.
Aninhou-se do lado esquerdo, sentiu o coração palpitar.
Sem razões quis saber a hora, quis um cigarro, quis caminhar.
Nada se concretizou.
Os olhos foram cristalizando as lágrimas que quiseram embaçar a visão das nuvens.
Por que chorar?
Nada estava pior, nem melhor é certo.
Nada comandava o destino. Quis ter saudades, quis sofrer, quis sangrar.
Estava exausta demais para dramatizar.
Ajeitou o pé direito sobre o esquerdo, teve paciência para explicar que ficariam algumas poucas horas nus e sem caminhar.
Ajeitou o lençol sobre eles, cantou uma canção de ninar e ficou sem saber se os amaldiçoava ou se os abençoava por não terem sossego, por quererem sempre se distanciar do lugar comum.
Elocubrou, não definiu lugar comum e esqueceu os pés.
Beijou as mãos que ainda podiam traduzir em poesias o que o peito amassava, a mente refinava e o coração transformava em bolinhos de chuva.
E que a boca insistia em não aprender a falar!
Riu um riso sem graça e deu licença para a solonência dominar.
Para ser resgatado agora, 23 anos depois!

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quando cai a linha

Toda a turma começou a namorar e ela também.
Algumas meninas só fogo de palha, dois, três meses depois, namorado novo.
Ela comprometida, um ano comemorado com jantar especial.
A amiga se casou e ela estava lá, linda e serena com seu namorado, o mesmo há três anos.
A outra amiga teve um bebê. O pai não comprou o "projeto" e ela encarou sua nova realidade entre fraldas, mamadeiras, escolinhas, pediatra, com bom humor, com carinho e com alguns namoricos pelo caminho.
Ela e seu noivo batizaram o menino.
Cinco anos é um bom período! Um entende tudo do outro. Tudo é tão calmo, tão tranquilo.
Um jantarzinho de terça-feira, um cineminha na quarta, na quinta ele tem futebol, mas na sexta ela pode decidir onde vão. Sábados são sempre uma surpresa: uma viagem, um casamento, um churrasco, vamos procurar um apartamento?
- é cedo, ele diz, as coisas lá na empresa estão esquisitas, melhor esperar para ver como é que fica
Perde o viço a moça. Que moça?
E essa daí, não casa?
A amiga que se mudou para a Espanha volta com o marido a tiracolo.
- mas ele não se chamava Enrico?
- não, aquele foi no começo, esse é o Pablo, e você se casa quando?
- ainda não sei, acho que o ano que vem
- menina, mas já lá se vão dez anos!
E ele começa a fazer um curso novo. Ela muda de emprego, tudo tão diferente, estava tão acostumada com tudo no escritório e agora isso, por um pouco mais de dinheiro, essa gente que não conhece, essa garagem sem vaga fixa.
E ele precisa viajar quase todo mês. As coisas na empresa não estão assim tão mau, você acabou de ser promovido!
- ah, mas por isso mesmo, agora com todas essas viagens, vamos esperar a coisa se estabilizar
- alô? Danilo?
- o Danilo está dormindo
- mas esse é o celular dele...
- sim, é, ele está dormindo e atendi, quem é?
- é a noiva dele, e você quem é?
- noiva?
tuu tuu tuu tuuu

quinta-feira, 18 de março de 2010

Primeiras raivas

Parecia desinteressada. Tímida, mas era bem da sonsa, isso sim!
Ficava comigo na hora do intervalo, sempre de cabeça baixa, mas os olhinhos estavam bem atentos, eu é que não prestava atenção. Por que eu sempre falo demais?
O cabelo sem graça, aqueles cachos com preguiça de serem cachos, enrolados no dedo, escondendo aquela candura que agora sei: falsa!
Fazia comigo os trabalhos da escola, sempre comprometida, lia, escrevia, digitava e até punha florzinha, meu nome sempre no começo da lista.
Que besta eu! Achando que ela era minha amiga.
Na festa de aniversário da Rosana, me emprestando vestido, me pondo seu colar que eu achava a coisa mais linda do mundo. Como que ela podia emprestar para mim e ir com aquela roupinha sem graça e aquela correntinha de quando ela ainda era neném?
Delicada. Fala mansa. Boazinha essa sua coleguinha né filha? Não se cansava de comentar minha mãe.
Não é não mãe, enganou o bobo na casca do ovo.
Enganou até a vó Lola e olha que aquela espanhola diz que nunca se deixa enganar!
Primeiro foi ficando amiga das minhas amigas, e ficou tão amiga que não sobrou amiga para mim.
E agora, todo mundo na escola já veio me contar que ela estava com o Eduardo no cinema.
Eu não acreditei. Daí viram os dois na sorveteria.
Agora na festa da escola estão dizendo que eles vão junto.
O Eduardo nem me olha direito na escola. Não atende o telefone. Não fica online.
Eu já sei que poesia vou usar para fazer o trabalho de português, e vou fazer sozinha! Sabe o Livro das Ignorãças do Manoel de Barros? Então, vou usar o trecho que diz:
...
- coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco.
...
Que raiva!

quarta-feira, 17 de março de 2010

Dia do Vento

16 de março, dia do vento.
Depois que as crianças saem para a escola, me preparo para sair.
O vento sacode as árvores lá fora, de um jeito mais forte. Quer me recomendar que leve um casaco.
Debocho dele, olhando o céu azul tentando disfarçar um cinza-vento.
Mas não é um deboche que tire o humor do vento, é uma brincadeira já combinada entre nós.
Ele sabe que quando sopra perto de mim me deixa com frio mesmo com um calor de 40 graus.

Na estrada tento adivinhar a velocidade com que ele me acompanha, medindo a dança das árvores. Folhas secas que me acompanham por um trecho da estrada e depois desistem, acenando, vejo tudo pelo retrovisor!

A manhã passa amputada de vento, caverna branca e silenciosa dominada pelo ar condicionado que não permite o luxo de ventar.

Na hora do almoço. Vento da Paulista. Muitas eras se misturam. Era em que andava de havaianas nas tardes de domingo procurando um cinema com filme interessante. Era em que ia apressada a reuniões no número 352 e que agora revisito, já descompromissada, almoço de relembrar. E lá está o vento da Paulista me lembrando que devo cortar o cabelo.

Quase chegando em casa e esquecida do vento, ele me surpreende forte e gelado no posto de gasolina.
Se há céu e inferno para ventos, os postos de gasolina hão de ser o inferno. Os ventos que habitam os postos são maus, frios, não querem graça com ninguém, não estão ali para agradar.

Em casa, crianças se preparando para dormir, o vento se acalma, hoje não vem assustar com seu assobio zombeteiro de menino mais velho.
E depois, quando me sento para o jantar, o meu amor comenta casualmente:

- hoje ouvi uma música interessante, que não conhecia, Vento no Canavial, e procurando a letra na internet, lê para mim enquanto decido que dia 16 de março é, para mim, o dia oficial do Vento!

Vento no canavial
Sopra uma saudade assim
Vento que vem pra contar que você não gosta mais de mim
Vento vem contar mentira
História que ouviu além
Vento que não guarda nunca o segredo que contou alguém
Vento no canavial
Sopra uma saudade assim ...
[Mariana Aydar]

terça-feira, 16 de março de 2010

Lucia

Há nas histórias que contamos pontos que podem separar uma biografia.
Conheço algumas.
Minha irmã Lucia é a menina dos olhos azuis, primeira filha, espevitada.
A menina que ganhava bonecas de louça do avô e se aproveitava de sua presença para fazer muitas traquinagens, porque ele, assim como meu pai, com os netos, tinha o discurso clássico:
- deixa ela...
A menina que adorava os pintinhos que se agrupavam em volta da mamãe galinha mas que mesmo assim, sucumbiam em manifestações de carinho, que de tão apertados, acabavam estragulados.
A menina que brincava no monte de palha de arroz, com a tia sem juízo, quase congelando os pezinhos, enquanto a mãe, de resguardo com outro bebê, chamava sem ser ouvida.
Histórias que me contam.
Ás histórias que posso contar dão conta de uma irmã interessada, carinhosa, que cosia casacos de boneca para mim.
Que sem muita paciência me pintava as unhas da mão.
Que ameaçava jogar no lixo qualquer brinquedo pelo caminho quando se punha a varrer a casa para ajudar minha mãe.
A irmã que foi morar na capital. Que nas visitas me enchia de presentes. Que penteava meu cabelo em um coque alto na cabeça e elogiava meu rosto quando eu mesma achava que tinha só nariz e nada mais.
Com ela parti. Com ela conheci a minha vida nova longe de pai e mãe.
Com ela fui descobrir a Liberdade, o bairro e um jeito novo de viver. E uma liberdade conquistada aos pouquinhos, conforme a responsabilidade ia crescendo.
Foi pai e mãe. Foi amiga. Foi meu porto seguro quando não escolhi os melhores caminhos e tive de recuar.
É aniversário dela hoje.
Atrevida, nasceu primeiro para ficar mais tempo com pai e mãe.
Tão querida, que me envergonho de não conseguir escrever tudo o que queria dizer!

segunda-feira, 15 de março de 2010

Pérolas aos porcos

Não mentiu, mas também não disse toda a verdade.
Um jeito de se proteger.
Analisava e separava as pessoas formando grupos conforme sua percepção.
Os que ali estavam por pura falta de opção. Na carteira faturas de cartão de crédito, o saldo do banco de um vermelho escandaloso, uma compra parcelada em três vezes, precisava daquele boné desesperadamente. Um carro na garagem sem gasolina. Um trem lotado, de solidão.
Outra turma encabeçada pelos que poderiam alçar voos estratosféricos, mas que preferem os voos de borboleta. Pequenos bandos, duas, três, quatro, não muito mais que isso. Cores alucinantes.
Voos baixos, quase rasantes. Uma conta para pagar, do que mesmo? Deixa pra lá, depois é só pegar outro boleto, uns trocos a mais de multa não podem estragar esse momento que agora é só da imaginação.
Um carro confortável, com ar condicionado, mal estacionado, incomodando muita gente.
E mais alguns. Alguns que querem voar alto, mas querendo olhar por baixo, esses, perigosos, que não se vêem no reflexo do espelho, porque tão luminosos por si mesmos que ofuscam qualquer imagem.
Qualquer carro, qualquer tempo, qualquer palavra que enalteça suas qualidades questionáveis.
Não mentiu. Mas não disse toda a verdade. Desencanto. Desalento. Descrença. Pérolas aos porcos, ora direis...

sexta-feira, 12 de março de 2010

Quase cotidiano

Dia quente.
Almoço misto de novo-velho amigo e business.
Tudo parece fora de lugar.
A rua curta em extensão, em bairro charmoso, com seus fios soterrados, postes abolidos e calçadas largas parece habitar o primeiro mundo.
Indiferente ao seu posicionamento no mapa.
A comida pode ser a mais simples e caseira, já a conta, entreguei o cartão de crédito e ignorei os números. Não é hora para aborrecimentos.
Uma comemoração sabe lá de quê, talvez de um aniversário, reúne cerca de 30 mulheres de idades indecifráveis. De cabelos tão lisos que nada poderia enfeitá-los. De presentes bem embrulhados, pequenos, sofisticados em punho.
Na calçada esperando o carro, acompanhando o desfile de motores.
Homens com circunferências assombrosas encaixando-se em suas Mercedes baixas, homens baixos escalando seus utilitários importados, blindados, reluzentes.
E sobre tudo o isso o sol. Delicioso sol.
Um homem negro se aproxima, já passou dos 60, mas ainda é bonito, deve ter sido muito bonito, de uma elegância que não se compra, que terno nenhum imita e nos aborda:
- excuse-me vocês precisam de três milhões para passar o fim de semana?
Pergunta enquanto nos estende bilhetes da loteria federal.
Meu amigo argumenta que lhe geraria um problemão.
Eu penso que não seria nada mal ter três milhões para esse próximo final de semana, e já penso em sua destinação, mas quando saio do sol e encaro a minha realidade pondero:
- talvez tenha apenas três reais, mas poderei ser feliz com eles, posso comprar dois picolés e fotografar a cara melada das minhas gurias!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Relato

Eram cariocas. Eram jovens.
Ele era ambicioso. Ela era pragmática.
Em um acordo tácito, sem nenhum papel assinado, ela foi trabalhar para ele poder estudar.
Formou-se em direito. Ela continuou trabalhando.
Mudaram-se para São Paulo.
Ele virou sócio de uma empresa que começou a dar resultados.
Ela foi trabalhar com ele, organizar, administrar, orquestrar pessoas, processos.
Ele casou-se com uma moça rica.
Ela quase enlouqueceu.
Ele foi morar em uma casa enorme, com cães de guarda e teve dois filhos.
Ela foi morar em um apartamento confortável com dois cães e duas empregadas.
Iam trabalhar em carros separados em dias de muitas atividades.
Iam trabalhar no mesmo carro em dias de calmaria.
Do apartamento dela via o carro deixando a casa, pelo binóculo, e descia.
Ele tinha uma mercedes marron.
Ela um voyage de um verde indefinido.
Um verde envergonhado diante do verde dos olhos dela. Elegante, charmosa, inteligente. Uma vida entregue a outra vida, um espelho sem reflexo, um futuro sem perspectiva.
Envelheceram. Nada mudou.
Causa espanto, concordamos, discordamos, comentamos, relatamos.
Destinos escritos em papel manteiga com sabonete. Para ler a mensagem, experimente jogar canela em pó!

quarta-feira, 10 de março de 2010

Machado de Assis e as pequenas alegrias

Sento para fazer a unha, respiro e meus olhos e meu coração se enchem de alegria.
No balcão de apoio da minha manicure um volume de contos de Machado de Assis. Edição simples, papel barato, mas Machado de Assis.
Pergunto como quem não quer nada, com medo da resposta:
- Gosta de Machado de Assis?
- Do quê?
- Do livro, desse livro que está lendo, são contos, você gosta?
- Eu não entendo muito bem não... São historinhas, mas sabe, algumas não tem fim.
- Eu gosto muito desse autor, quando não tem fim podemos imaginar como a história continua, como termina. Quando lemos de novo podemos ter outra idéia.
Ela ri. Olha para mim e balança a cabeça como se eu fosse um caso perdido.
- Esse livro aí a minha filha ganhou na escola.
- Ah, eu sei, é um programa do governo, distribuem alguns clássicos da literatura para que as crianças montem uma pequena biblioteca. Sua filha gosta de ler?
- Ela gosta, ela tem paciência com livro, quando tem aula vaga ela vai na biblioteca e fica lá lendo.
Emociono-me com isso. E fico torcendo para que seja a mais pura verdade. Para que ela tenha paciência, para que ela tenha acesso, para que ela não se importe com as histórias sem fim.
Insisto:
- Você não está gostando muito, mas gosta de ler, do que mais gosta?
- Gosto de poesia e de dizeres.
Ficamos caladas por um tempo.
Ela se preocupa com a cor do esmalte que vamos usar e eu me preocupo em escolher um título para lhe presentear, talvez um livro de dizeres!

terça-feira, 9 de março de 2010

Renata

Minha mãe me contava a história do livro Éramos Seis, que depois virou novela.
Ela e eu gostávamos da história e eu achava que éramos mais importantes que o livro porque em casa Éramos Sete.
E éramos felizes. Algumas felicidades só descobrimos que sentimos depois que já passou muito tempo.
Outras duram pra sempre.
Hoje é um dia muito especial em que, os que restamos dos sete (seis...) e muitos outros que vieram depois, comemoramos um desses dias que ficam marcados para sempre.
Depois de um tempo que minha irmã se casou, a grande novidade foi que ela ficou "esperando neném" como dizíamos. É claro que ainda se diz, mas hoje em dia se diz muito mais que ficou grávida e mais, agora se diz até que o pai está grávido.
Ela que já era linda teve seu rosto iluminado de felicidade.
Entre os sete, nosso primeiro bebê, minha primeira sobrinha, a primeira neta da minha mãe e do meu pai.
Lembro-me do vestido marrom que minha mãe lhe costurou. Um marrom bonito, não triste, estampado com delicadas flores, algumas amarelinhas. Guardei retalho por alguns anos, depois perdeu-se, mas não importa.
Eu a vejo sorridente, com uma barriga enorme, pés inchados.
As terças-feiras almoçava conosco. Eu tinha educação física de manhã, estudava a tarde e voltava correndo para não perder sua companhia e a visão daquele barrigão.
Houve um alarme falso. Hospital, coração na mão e ela de volta, bebê ainda na barriga, mas depois, no dia 09 de março de um ano que não importa não nos pregou outra peça e nos inseriu no mundo encantado da segunda geração!
O meu bebê hoje já planeja ter bebê e vive longe de mim, mas no meu coração ainda aprende a dar os primeiros passos correndo atrás do meu pato (de verdade!) que ficava solto no quintal, dizendo:
- patuuuu!

segunda-feira, 8 de março de 2010

O casamento da Rosa

- Clotilde, a Rosa vai casa de novo
- Que de novo? Da primera veis ela num casó, só juntó e agora vai tê até festa, eu vô, tu vai?
- Claro que vo, ela bem que merece si dá bem, ô moça boa
- Você conhece o rapaiz?
- Não, ela conheceu na casa da irmã dela, vixi é lá do outro lado da cidade
- E eles vão mora aqui, na casa dela?
- Parece que sim porque ela num qué tira os menino da escola agora, mas pro ano, eles se mudam
- Ai que pena, mas pra onde?
- Ah, ele vai recebe um apartamento do governo, desses programa aí sabe que você paga um poco e ganha a casa? Mas é lá pro lado de onde ele mora
- Ai se é novo, vale a pena, imagina, tudo novinho, cherinho de tinta? Privada bem branquinha? um sonho... eu bem queria pintá minha casa
- Ô Clotilde, mas o Zé podia pinta não podia não?
- Pode podia, mas o cabra é uma preguiça! Bom e também, tinta é caro, não tô podendo agora não... Escuta, e o moço trabaia?
- Ah, trabaia, esse dá um duro danado, ele trabaia na prefeitura, de fazer selviço nas ruas sabe? Pinta sargeta, carpi grama, limpa buero, é faiz tudo minha fia, usa aquele macacão laranja
- Hum, triste de lavá, imagina
- Ah, mas a Rosa é caprichosa e ela tem tanquinho, cê vai vê, o moço vai trabaia num brinco naquele macacão... Ai Clotilde do céu, óia o chero, meu fejão vai queimá, depois a gente conversa mais
- Tá, tô preocupada com o vestido que eu vo no casamento
- Ah preocupa não fia que é tudo gente simples, tchau!

sexta-feira, 5 de março de 2010

Eu vs aeroportos

Concentro-me fortemente para manter a situação sob controle porque sei que algumas coisas me escapam.
Os aeroportos são os que mais testam minha luta quase inglória, mas sai vitoriosa nos 3 embates mais importantes.
Eles administram os fatos enquanto circulo inocente e perco coisas.
No aeroporto de Porto Alegre, depois de um vôo atrasado, calor, reunião quase inútil em pauta, sento no táxi preparada para recuperar forças enquanto telefono para casa para dizer que cheguei bem e...
- moço, pode voltar, esqueci o celular no banheiro
Voltamos e ele ainda estava lá, repousado na caixa de descarga.
Um a zero para mim contra o Salgado Filho.

Cumbica foi mais cruel, mas errou na cor.
Os balcões de embarque tem um vão logo abaixo da bancada principal onde nos atendem as maquiadíssimas moças das companhias aéreas, quase japonesas de tão penteados que estão os cabelos em coque.
Cheguei cedo, sem fila, fiz tudo o que tinha que fazer, mas não entrei, fiquei por ali porque queria um brinco de palha dourada de um quiosque cuja moça não estava. Fui ver os livros e revistas na banca, tomei um café, finalmente comprei o brinco e me dirigi para o portão de embarque.
Um frio na barriga.
Voltei ao balcão, fila imensa, com jeitinho pedi licença ao próximo...

- só quero pegar isso, que esqueci aqui, é o meu passaporte
- esqueceu aí? que sorte que ninguém viu
- capinha preta, pedra preta... sorte mesmo, tchau

Um a zero para mim contra Cumbica

Final de Festival de Cannes, carro até Nice, Nice até Madrid, saudades de casa.
Tempo longo até embarque para São Paulo, circular, olhar as lojas, tomar café, amigas fumantes que toda hora se enfiavam naqueles quadrados de vidro, peixes insanos, borbulhas de fumaça.
Ligar para casa, ai, desculpa, esqueci do fuso horário.
Tempo arrastado, que de repente fica atrasado, Lu vamos.

- perdi meu cartão de embarque
- outra vez?
- nunca perdi cartão de embarque
- mas já perdeu um monte de coisas
- mas sempre achei, vou ver se esqueci no banheiro, talvez tenha deixado sobre a pia enquanto lavava a mão, vou buscar
- porque estava com ele na mão?
- não sei

Lá estava ele. Fino como um papel que é esperando por mim e Barajas torcendo para um vento inexistente levar para longe.
Chegando em São Paulo, sonolenta, não há business que me convença de que dormir em avião é possível...

- Lu esqueci minha bolsa no avião, com passaporte, com tudo
- vamos falar com o pessoal de terra, o avião ainda está por aí, localizaremos

Não só recuperamos a bolsa como, acompanhadas pelo pessoal da CIA e do aeroporto, passamos por todos os procedimentos sem filas.
Um a zero para mim versus Barajas.
E um a um com a Cavalcante!

quinta-feira, 4 de março de 2010

Alô

Se não ligo, fico pensando em tudo que poderia ter falado, se ligo, acho que, de fato, não tinha nada para ser dito.
Gosto das pessoas, de estar com as pessoas, de escrever cartas, bilhetes, emails, recados em todo lugar, mas não gosto do telefone.
Tenho um aparelho bacana, mas quase mudo. E quando ele toca, me dá um frio na barriga.
Quando não toca, fico ensimesmada, achando que não se importam comigo.
Eu com ele, eu sem ele, nós quatro...
Fico prorrogando a chamada, mas atendo no primeiro toque.
Se não há expectativa, não há decepção.
- alô...
- é a lusia?
- sim, sou eu
- então, o damaceno falou que não dá pra compra o carro agora não
- que damaceno? que carro?
- não é a lusia?
- sim, mas deve ser outra
- outra lusia?
- é, deve ser outra porque não sei de nada disso
- ah, fia, desculpa, então chama ela aí pra mim... o damaceno...

Santo Deus... se eu não tivesse atendido não teria sido uma ligação perdida.
Não para mim.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Tinha nome a menina?

Dançou uma dança sem coreografia, em um bar sombrio, de gente mais perdida que achada.
Ganhou algum dinheiro, alguma gripe em tempo de noites frias de garoa fina.
Alimentou um sonho que não durava mais que uma semana, quando outro crescia e transformava tudo.
Imaginou um conto que contado não tinha graça, que escrito era tão curto, que pensado servia para acalmar a paz.
Fumou um cigarro de marca não decidida, mas copiada dos amigos, que não decidiam, pagavam pelo que era possível.
Usou um batom vermelho que em boca tão pequena era tão grande e desistiu porque deixava tão evidente que o lábio não era desenhado como supostamente deveria ser.
Amarrou de um jeito diferente o cadarço do all star e nunca esteve tão ausente de sua vida como naquele tempo.
Cantou uma canção aprendida na infância, resgatada sem ferimentos de um baú de brinquedos do coração.
Jantou um macarrão sem graça.
Andou de mãos dadas na chuva, correu, tropeçou, riu e quando entendeu a vida era tarde demais para muita coisa.
Reviu a coreografia, escolheu melhor o bar, a música, a companhia.
Autografou sua biografia, mas se retirou antes mesmo da foto e nunca mais se soube onde está escondida. Eu suspeito, mas devo guardar segredo.

terça-feira, 2 de março de 2010

Renascer

Sei que o que me espera não é a espera pela espera, mas algo maior.
Que pode ser bem pequeno, apenas um jeito novo de esperar.
Derrotar o frio na barriga, o tremor nas pernas, o sorriso quase tímido de medo.
Que reposta? Sim ou não?
Por que ainda estou nesse pedaço da estrada quando tantos já me ultrapassaram?
Talvez porque muitos tenham ficado para trás.
Sorte não é uma palavra mágica, fé não é uma palavra mágica, mágicas são as decisões que vamos tomando ao longo de nossa vida.
Naquele dia estava atrasada e decidi não tomar café para não chegar tarde à reunião de trabalho.
Porque não tomei café fiquei com fome.
Porque fiquei com fome fiquei mais irritada.
Porque fiquei irritada acelerei mais do que precisava em uma ultrapassagem e fiz cara feia para o outro motorista.
Porque fiz cara feia ele me ultrapassou de volta e quase nos envolvemos em um acidente.
Porque quase me envolvi em um acidente fiquei ainda mais nervosa.
Porque estava nervosa não cumprimentei o segurança.
Porque não o cumprimentei ele demorou a me ajudar quando o crachá não funcionou na catraca.
Porque o crachá não funcionou cheguei atrasada.
Porque cheguei atrasada cheguei mal humorada.
Porque cheguei mal humorada não atendi a primeira ligação.
Porque não atendi a primeira ligação recebi tarde um recado que teria mudado todo o meu dia.
No outro dia estava atrasada, mas decidi tomar café.
Porque tomei café estava alimentada, calma e feliz.
Porque estava calma deixei que me ultrapassassem sem risco algum.
Porque dei passagem recebi um aceno do outro motorista.
Porque recebi um aceno fiquei ainda mais feliz.
Porque cheguei feliz cumprimentei todo mundo e nenhum problema se apresentou.
Tudo funcionou perfeitamente.
Decisões.
Casar ou comprar uma bicicleta.
Separar ou vender a bicicleta.
Ainda que estejamos em piloto automático, quando é possível respirar, pensar e depois agir é um mundo totalmente novo.
Para uma pessoa como eu, é praticamente nascer de novo.
É quase triste, se eu decidir contar o por quê.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Hora de dormir

- Boa noite, dorme com Deus e com os anjinhos.
- Boa noite, mãe, até amanhã.
- Até amanhã.
- Mãe, pode apagar a luz do corredor, entra um clarão...
- Pronto.
- Mãe... pode trazer a garrafinha com água?
- Já vai.
- Mãe, está chovendo granizo? Tá um barulho estranho na janela...
- Não, é o vento que faz a água bater direto na janela, mas não são pedrinhas de gelo.
- Amanhã tem aula, né?
- Sim, por isso você precisa dormir, desse jeito não vai dormir tudo, ficará cansada.
- Então conta uma história, assim eu durmo mais rápido.
- Deixa eu pegar um livro.
- Não, uma história inventada, mas não pode começar com Era uma vez... uma história mais moderna.
- Dizia o meu pai...
- Ah não... vai ser de coisa antiga?
- No futuro veremos...
- Tá com cara de história chata, pode tentar outro começo?
- As crianças de hoje em dia estão no comando, isso é assustador para alguns adultos desavisados. A minha sorte é que sou um adulto que guardo uma criança escondidinha em um cantinho aqui dentro, bem atrás do meu coração. Quando as crianças de agora começam a dar ordens, decidir coisas, eu rapidamente consulto a minha criança escondida, para verificar o que é igual, o que é diferente, como posso ganhar a partida desse game, juntas, essa criancinha e eu decidimos se lutaremos em estilo Naruto, se em estilo Pokemon, se vamos apenas sorrir e rodopiar no gelo como em alguns filmes da Barbie e assim vamos montando estratégias. Tudo em real time e aí as crianças de hoje, ao perceberem esse adulto esquisito, mas ligado no que pode acontecer, se preparam para entender a situação e armar estratégias de defesa ou de trégua...
- Hum... tá, tá bom, agora é a minha vez de contar uma história.
- Não, agora é hora de você dormir!
- Mas a minha história vai ser muito melhor!
- Acredito, mas guarda para amanhã, amanhã será sua vez.
- Ai que saco! E não adianta ficar brava porque isso não é nenhum palavrão.
- Dorme com Deus e com os anjinhos.
- Vou contar a minha história pra eles, para os anjinhos, só em pensamento, eles tem muiiito mais paciência. Boa noite mamãe.
- Boa noite.