terça-feira, 31 de maio de 2011

Horácio

Horácio era um homem bom.
Mas Deus não foi bom pra ele e, apesar de bem casado e feliz com a Tereza, com os filhos Junior e Maria Clara, ele se apaixonou perdidamente pela mulher que veio morar em frente à casa deles.
O drama instaurou-se.
Ela nem era tão bonita, mas tinha qualquer coisa que ele não sabia explicar.
Quando se mudaram, em um sábado de manhã, ela logo se apresentou.
Vinham de outra cidade, casados há pouco, ela não trabalhava, o marido muito, ficava muito tempo só.
O Horácio começou a pensar nela e não parou mais.
Nunca permitiu que nenhum olhar lhe escapasse, nem uma palavra de elogio ou crítica.
Pensou em se mudar, mas ainda estava pagando a casa.
Pensou em se matar, mas era radical demais.
Pensou que assim como se desencantara de Tereza haveria de se desencantar da vizinha e seguiu sua vida com força. E sem graça.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Controvérsia

A distância entre as palavras organizadas em um texto e o que fazemos com elas somos nós que traçamos.Muitas coisas são ditas, admiradas, reproduzidas, mas nem sempre compreendidas e muito menos aplicadas. É fácil ser feliz quando tudo está em ordem. Manter a serenidade nos momentos de tormenta é que são elas.

Enquanto rabiscava essas palavras no caderno de capa azul de veludo alguém bateu na porta.
Escondeu o caderno embaixo do travesseiro e abriu um livro qualquer em qualquer página antes de dizer: entra!
A porta se abriu, mas ninguém entrou.

Se não tivesse sido tão displicente talvez pudesse ter uma reação diferente. Era o que constava no relatório.
Tem certeza, delegado? Perguntava a outra inconformada de saber que a vida seguia assim, as vítimas sempre sendo culpadas por seus infortúnios sem mais tempo nenhum para réplicas ou tréplicas.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Estrada

E então acordei pensando que quando vamos construindo nossa estrada temos que ser muito cuidadosos.
Não ignorar detalhes.
Não ignorar sinais.
Fiquei pensando que se a construímos bem, sem buracos ou encruzilhadas podemos voltar por ela, em algum momento.
Sim, é preciso deixar atrás de si um caminho sólido, que nos ajude a voltar um pouco para depois seguir adiante ainda mais confiante.
E então vou dormir contente, porque parece que fiz uma estrada assim.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Vento Artificial

Era gostoso, mas também era solitário ser a neta do Seu Augusto, na fazenda.
Eu era um cisco de gente e percorria longas distâncias entre um lugar e outro.
Parecia um mundo sem fim.
O moço dos cavalos me deixava ajudar a dar banho no Pombinho – o cavalo branco preferido do meu avô.
O homem que cuidava do café e das máquinas ficava muito apreensivo com a minha presença perigosa.
Outro me deixava pegar espigas de milho no paiol e jogar aos porcos. Não era uma coisa boa, eles brigavam por ela e alguns eram tão gordos que mal se mexiam.
Era uma fazenda de adultos, não tinha crianças.
Eu andava só de um lado para outro e me sabia vigiada por olhos ocultos porque nada podia acontecer com a moleca do Seu Augusto.
Quando eu circulava pelas casas da colônia ganhava pedaços de bolo de fubá, de milho, de mulheres tímidas que seguram os aventais, só porque não sabiam o que fazer com as mãos diante de minha carinha sardenta.
Até que em um tarde quente, um dos homens mais jovens me chamou de longe.
Ele tinha uma coisa nos braços e qualquer coisa despertava minha curiosidade.
Era um pedaço bem grande de corda.
Ele galgou alto em uma árvore forte e me fez um balanço.
Ajeitou uma madeirinha pra eu sentar e não machucar as pernas magras.
Um homem de poucas palavras que fez o serviço sem puxar assunto e eu só assuntando.
Quando ficou pronto eu experimentei, primeiro devagar, depois aumentando a velocidade.
Ele riu, pediu que eu tomasse cuidado e foi cuidar das coisas dele.
A partir de então passei horas perturbando o silêncio com o meu vento artificial.
Sinto falta do meu balanço de cordas.
Sinto falta do vento de verdade no rosto.
Sinto falta do barulho do galho.
Sinto falta do céu recortado pela copa da árvore.
Sinto falta de perturbar o silêncio com o meu vento artificial.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Ruptura

Estendeu a mão e não viu mais a cicatriz.
Ela continuava lá. Mas ela não via mais.
O sorriso já não era tão esplendoroso, mas a cicatriz não doía mais.
E isso era mais importante que tudo.
Atrás do corredor a porta se fechara para sempre.
Qualquer passo deveria ser em sentido contrário, para frente.
Sem fotos, sem mágoas, sem pedaço de papel que precisa ser recuperado.
Nada mais.
Estendeu a mão uma vez mais e não viu a cicatriz.
O dedo traçou o desenho com a leveza de uma pena, mas não era mais que um relevo.
Sem nenhuma dor.
Aos poucos ia se livrar de tudo o que poderia arrastar essa história.
Uma cauda pesada, sem guizos, acumulando toda a poeira do corredor.
Um longo trajeto de alguns metros.
A cicatriz não a viu mais no momento seguinte em que ajeitou aquelas tralhas todas no porta-malas - entre espantado e admirado - do carro.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Poesia Barata

Andar, andei
e não economizei passos para te alcançar
mas toda vez que muito perto cheguei
não te reconheci e segui
um caminho solitário
sem lua, chuvoso
de terreno incerto
Andar, andei
e não surpreendi nenhum dos seus
sorrisos abertos em minha direção
não sobrevivi a arroubos de paixão
não compreendi que era aqui e não ali
Andar, andei
e cada dia em que recomecei ficou
abatido pela minha palidez
pelo brilho do meu olhar que desviou
qualquer tentativa de recuperação
Andar, andei
mas chega
a montanha também precisa se exercitar

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Meu livro - primeiros passos

Esse é o título do último post do blog de Antonella (http://antonellanews.blogspot.com) - que está dedicada à produção de seu livro. Ainda sem nome, mas bastante promissor.
Gosto da dedicação com que ela trabalha, da certeza com que encara seu futuro, da expectativa e prazer que alimenta com os trâmites da publicação.
Para mim é um aprendizado que nenhuma escola, nenhuma cadeira consegue ministrar e eu tenho obrigação de passar com louvor. Alguns trechos do post:

Bom, pra escrever um livro ou desenhar uma história em quadrinhos, a primeira coisa que se deve fazer é criar o(a) protagonista. Depois, tem que definir a história e bolar um roteiro. As ideias realmente boas vem em dois momentos: quando se está muito concentrado ou quando se está bem distraído. Não tem essa de estar distraído e tentar ficar bem concentrado no momento seguinte.
Ok, temos o(a) protagonista e um esboço dos fatos da história. Segunda coisa: hora de criar os amigos inseparáveis do(a) protagonista. Um exemplo, na minha história, o protagonista é Hakem. Assim, veio em seguida a menina conhecida como Johara, aquela garota brincalhona que nunca abandona o amigo. Depois disso, veio Yuki. Mas antes de Yuki, veio Thibaut. Yuki era, no início, uma personagem secundária. Era uma ponte para ligar os fatos da história de Hakem e da história de Thibaut. Certo... acho que é isso.
Terceira coisa: precisamos de um vilão. Thibaut não foi criado para ser o vilão logo de cara. Mas as coisas mudaram um pouco...

... Depois disso vem mais personagens que tornam a trama mais envolvente.
Vejamos Leroy, o furão falante, pode ser comparado com outros animais falantes de vário desenhos, livros e filmes. Mas ele é único, porque é valente e convence todo mundo, dizendo que pode fazer algo perigoso...

Não é um primor?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Aconteceu

Aconteceu.
Em menos de cinco minutos a conversa desconversou e não se entenderam mais.
Cada qual se recolheu ao seu espaço, aos seus valores, as suas crenças e verdades.
Aconteceu.
Cada um deu o nome que melhor lhe pareceu para a sensação posterior.
Fúria. Decepção. Engano. Raiva. Nonsense.
Aconteceu.
Logo depois alguém ganhou e alguém perdeu.
Mas o tempo é o melhor remédio.
Não há bula que dê conta de descrever os efeitos colaterais.
Em menos de cinco minutos os papéis se inverteram.
Quem mais se abalou já não se incomoda com o que se quebrou.
Quem repensou talvez pense em colar cacos.
Só funciona em mosaicos pensados como arte.
Na vida o colorido não se sobrepõe aos vãos cinzas.
Aconteceu.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Não tente fazer isso em casa

Experimentar a ponta da tesoura no ferro de passar roupa.
Naquela época o ferro não era a vapor, era mais pesado, com cabo preto, não exatamente anatômico e descansava em suporte de ferro.
O resultado desse experimento é o seguinte: você leva um choque tão violento que pode cair sentado a uma distância razoável, com os cabelos em pé e tremendo muito. Essa tremedeira pode ser do próprio choque, de susto ou de medo da mãe.
O médico também alertará sobre o perigo de quebrar o cóccix.


Pisotear um formigueiro.
Mesmo sem intenção de matar as formiguinhas abandone a tentação do contato daquela terrinha granulada com a sola do pé que dá uma sensação deliciosa.
É deliciosa, mas é muito forte a possibilidade de várias formiguinhas tentarem se defender e picarem seu pé de uma forma absurda.
Lavar o pé no tanque e pedir socorro à mãe pela súbita alergia localizada não resulta. Ela é experiente, não vai acreditar.
O álcool fará arder e aquele chinelo que não tem cheiro e não solta as tiras também fará arder outra parte do corpo. O Zezé de O Meu Pé de Laranja Lima chama de nádegas da bunda.

Descascar com uma faquinha móveis de madeira.
Apesar de ser um trabalho meticuloso, que exige uma concentração tal que deixa a casa em silêncio e tranqüila, não é uma boa idéia.
Apesar de a madeira ser macia, deliciosa e obediente ao movimento da faquinha que escolhe as quinas do móvel e o recorta como se arte fosse, não é uma boa idéia.
A penteadeira que repousa aconchegada no quarto da mãe, além de um móvel útil fez parte dos preparativos do casamento, das primeiras mobílias, de todo um começo de vida nova.
Não importa que isso tenha sido anos atrás, para sua mãe o móvel é mais do que um móvel e a culpa te acompanhará para sempre.
Principalmente se você tiver que assistir a sua mãe, em seu papel de avó, recontar a história do seu ponto de vista e com sinais de alerta para a nova geração.
Por tudo isso, não tente fazer isso em casa. 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

De seu

De seu só tinha o gato para acariciar.
Que também lhe esquentava os pés nas noites frias de televisão ligada na novela.
Nessas noites gostava de um café quente tomado em caneca.
Com pipoca feita na panela.
Boca cheia de pipoca e grandes goles de café.
O pé chegava adormecer do peso do gato e mal podia se mexer.
Tudo o que precisava se acumulava ao redor para não perturbar o sono do bichano.
O controle remoto, uma almofada, o telefone sem fio, uma revista para xeretar se o comercial fosse muito chato.
A mesinha com a bacia de pipoca, um suporte para a caneca de café.
Um bloco e uma caneta caso alguém telefonasse e fosse preciso anotar alguma coisa.
O que, por exemplo? Nunca acontecera. Mas por garantia, deixava ali, não incomodava, não atrapalhava a não ser na hora de tirar o pó.
De seu só tinha o gato para acariciar.
E admirar. Encher os olhos com os trejeitos na hora de andar.
Com o espreguiçar manhoso.
Com o acalanto do ronronado.
Com patas de unhas recolhidas lhe afofando a barriga para ajeitar o lugar de dormir.
Não fazia concessões. Só para o gato.
Ele podia tudo. Dormir no sofá, se enrolar no cobertor. Escolher a melhor cadeira da casa, ocupar a faixa de sol.
Se de seu só tinha o gato, não tinha mais nada para questionar.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Privilégio

Hoje quero o privilégio de ficar recolhida.
De entender do meu jeito.
De aguardar essa coisa esquisita passar.
Hoje não quero mais do que um filme B.
Um artigo de jornal que amanhã será reciclado.
Um poema de palavras simples, sem rima.
Hoje quero o privilégio de ficar em silêncio.
De não rir da piada. De não prolongar a conversa.
Hoje quero apenas ficar quietinha, enrolada como um novelo de lã.
Hoje quero o privilégio de escrever para mim.
Sem poesia, sem entrelinhas, sem inspiração.
Hoje quero o privilégio de escrever como respiro. 

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Palavra simples

A palavra simples não diz nada, apenas faz sentir.
A palavra simples não magoa, apenas faz a mágoa emergir e depois desaparecer.
A palavra simples não é aprendida nas aulas de português ou no dicionário, mas sim no coração.
A palavra simples não tem sotaque. Uns arrastam o r, outros o esmagam entre as vogais, mas nada disso importa.
A palavra simples conforta.
A palavra simples não precisa ser gritada, nem sussurrada, a palavra simples simplesmente alcança os sentidos do outro na medida exata.
A palavra simples não afronta o medo, mas conforta quem está assustado.
A palavra simples não acoberta a mentira e nem enfeita a verdade.
Quem diz a verdade não depende de sua boa memória porque terá sempre a mesma história para contar.
A palavra simples é simples, não precisa de negrito.
No papel, não precisa de marca texto.
Na conversa do dia a dia a palavra simples dá a dimensão exata da nossa existência.
A palavra simples chama para ver a lua no céu.
A palavra simples dá bom dia mesmo quando o tempo amanhece chuvoso e frio.
A palavra simples escreve um bilhete dizendo só que tem saudades e quer um almoço.
A palavra simples, às vezes, vem de longe em um recadinho no Facebook, por email, SMS, um like, um concordo, um rs – mais que um riso uma presença.
A vida está cheia de palavras simples.
Elas nos protegem daquelas frases mais duras que em alguns momentos pensam ter o poder de acabar com essa graça.
A palavra simples tem um poder que nem todo mundo pode ver.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Expectativa

Vejo o outro lado do abismo, mas não sei como chegar lá.
Enxergo um caminho sem fim, mas não sei como alcançar o primeiro passo.
Uma estrada reta, sem setas. Gosto de olhar para as pedrinhas do chão.
Gosto de olhar para as árvores enormes, mas gosto também de olhar os matinhos que crescem rasteiros na beira da estrada.
E esse buraco no meio que não dá nenhum sinal de como poderia ser ultrapassado.
Vejo o outro lado do abismo. De fundo escuro, parecendo infinito, talvez com um marulhar de água que escorre.
De água que me ignora, que não tem a pretensão de matar a minha sede, tão pouco de me afogar.
Vejo a estrada reta, sei aonde ela vai dar.
É um tempo presente, mas sei que o futuro que me espreita pode não me alcançar.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Bandido

Temos medo de bandido.
bandido. S.m. 1. Salteador, malfeitor, facínora, bandoleiro. 2. P.ext. Pessoa sem caráter, de maus sentimentos.
Ontem vi alguns bandidos.
Dirigia tranquilamente, ouvindo meu programa de esportes favorito quando sirenes, luzes, buzinas interceptaram meu caminho.
E ele foi cruzado por um camburão. Depois outro.
camburão. S.m. Bras. 1. V. tintureiro (4). 2. Vaso onde os presos, na faxina, transportavam matérias fecais.
O dicionário Aurélio não menciona que é um carro que transporta bandido.
Mas acho que já entendi de onde veio o apelido.
Nunca nos lembramos das origens dos apelidos.
Ou melhor, quando não é um apelido carinhoso, não queremos nos lembrar.
O fato é que fiquei ali com o pé no freio esperando aquele desfile passar.
Um desfile acelerado, sem recuo para a bateria, algemas como alegoria e nenhuma alegria.
Os homens amontoados e chacoalhando na curva já foram bebês. Aprenderam a andar. Fizeram gracinhas, deram os bracinhos.
E depois foram por aí.
Quase pude adivinhar olhar de deboche, olhar perdido, olhar assustado, olhar acovardado, olhar desafiador.
Cada um com a sua dor, amontoados em um camburão.
Cada um com a sua história. Com começo, meio e talvez sem fim.
Temos medo de bandido.
Mas aqueles estavam protegidos do meu medo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cisma

Precisava começar o dia fazendo tudo o que tinha deixado para trás.
Mas não sabia por onde.
No quarto o armário precisava de uma limpeza. Mas não era por aí. Isso era coisa de final de semana.
No banheiro o armarinho certamente teria produtos com validade vencida, mas também era coisa de final de semana.
Talvez ligar para aquela pessoa com quem se desentendeu e explicar suas razões.
Não. Isso era perda de tempo porque as razões estavam claras, ela apenas não queria entender.
Bom, pelo jeito a lista deveria separar coisas operacionais, racionais e emocionais.
Depois dentro de cada uma delas, ordem de prioridade.
Com a lista pronta iria fazendo e riscando para sentir aquela sensação boa de dever cumprido.
O telefone tocou. Uma conta que não pagou.
A calça que escolheu, sem o zíper – ficou no armário e esqueceu-se de levar para o conserto.
Carro abastecido. Até que enfim uma coisa em seu lugar.
Precisava começar o dia fazendo tudo o que tinha deixado para trás.
Por quê?
Precisava mesmo entender o conceito do agora.
Agora ia apenas dirigir e ouvir música.
Descansar a mente de todas as obrigações que se acumulam e transformam a cara risonha em cara enrugada.
Ele era um cara legal.
Meio brigado com o pai, mas um cara legal.
A irmã andava meio cismada com ele porque discutira com o cunhado por conta de futebol, mas ele era um cara legal.
A namorada desistiu de esperar para ser a esposa.
Mas ele era um cara legal.
Ele apenas precisava começar o dia fazendo coisas. Mesmo que fosse uma lista.
Mas já, antes mesmo do café? Quem sabe amanhã.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Antonio e Diana

Ela tinha nome de princesa: Diana, mas era empregada doméstica.
Ele tinha nome de santo: Antonio, mas era porteiro de prédio.
Ele nunca bebia, mas naquele dia bebeu.
Bebeu porque a Diana lhe dava esperanças. Muitas esperanças.
E de repente o prédio inteiro começou a comentar e o boato se confirmou: a Diana ia se casar com o seu Otávio do nono andar. Um homem esquisito, um homem sozinho, que não recebia visitas, que era sistemático, um homem de poucas palavras.
Um homem que podia até ser um desses homens que matam gente sem razão.
E bebeu. Naquele dia o Antonio bebeu muito e preparou-se para pedir as contas.
Não poderia mais trabalhar no mesmo prédio em que a Diana, antes tão cheia de graça, ia ser a dona de um dos apartamentos do nono andar.
Bebeu muito e pensou em vingança.
Pensou em fazer uma lista com todas as verdades sobre os moradores do prédio e fixar no elevador.
Como vingança queria dizer o que realmente pensava sobre cada um deles, como se fosse seu último dia de vida e ele tivesse direito de dizer o que achava bem lá no fundo.
Que dona Bianca era feia mesmo com tantas plásticas e silicones.
Que seu Donato vivia mesmo era da caridade dos filhos e que era um pé rapado que devia conta de luz, de condomínio, sempre socorrido por um dos filhos que nem lhe visitavam.
Que a poodle da dona Eliana era a cachorrinha mais chata que ele já conhecera. Igual a dona.
Que as crianças do seu Jorge eram mal educadas, mal amadas, magras e sem futuro.
Mas estava bêbado.
E isso que ele listou lá ia ofender alguém?
Ele era praticamente invisível e essas baboseiras não iam mudar a vida de ninguém. Muito menos a dele, agora ainda pior sem a Diana.
Que tonto ele era, isso sim.
Estava bêbado, mas lúcido o suficiente pra ir pra casa, dormir, curar a ressaca e o mal estar porque no dia seguinte não poderia se atrasar.
Não poderia mais trabalhar no mesmo prédio da dona Diana, mas precisava achar outro emprego antes de se abalar.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mães são assim

Aos treze anos a mãe decidiu que era hora dela aprender a cozinhar arroz.
Aprendeu.
Também era importante saber fazer a cama pela manhã como se estivesse em um hotel.
Aprendeu.
Muito importante saber pregar um botão em uma camisa, dar um pontinho em alguma roupa.
Aprendeu.
Nenhuma paixão por nenhuma dessas atividades, mas a mãe era tão generosa e dedicada que aprendia sem fazer muxoxos ou caretas, apenas aprendia.
Passar uma roupa. Importante estar sempre bem arrumada mesmo que fosse com uma camisetinha mais usada, se limpinha e bem passada já diz muito sobre a pessoa.
Concordava e aprendeu a passar a roupa.
Um dia recebeu a chave da porta da frente como sinal de confiança, de mocinha que já sabe a que horas deve voltar.
Um dia devolveu as chaves porque quando voltasse esperava que a mãe estivesse com a porta aberta, os braços abertos, os olhos bem abertos e o coração bem fechadinho de tantas saudades.
Partiu.
Por sua conta e risco e um monte de livros para devorar.
Não passou fome.
A cama nunca ficou desarrumada.
A roupa sempre tão alinhada.
Foi descobrindo outras coisas que talvez devesse ter apenas observado.
O leite acaba. A geladeira não se auto-abastece.
As verduras não se retiram da geladeira se não forem consumidas, apenas ficam murchas e pretas.
O lixinho do banheiro vai virando um monstro.
Pode amanhecer ensolarado, mas se a janela ficar aberta e a chuva vier...
Os copos se acumulam na pia sem nenhuma perspectiva de alcançarem sozinhos os armários.
Mas nada disso era um problema. Tudo foi sendo incorporado, solucionado, monitorado.
Tudo não, quase tudo.
Em noites frias, um segundo cobertor mais quente nunca surgiu como mágica para espantar – além do frio – os pesadelos.
Mães, de um jeito ou de outro, são assim.
E fazem falta na vida da gente.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Vista

Amanheceu atrás da montanha.
O céu ganhou um colorido incrível.
Ele só viu porque não dormira a noite, preocupado com tanta preocupação!
Repetiu o pleonasmo e divertiu-se com ele. Preocupado com tanta preocupação!
Sempre.
Não adiantava esperar tempos tranquilos, não viriam. Já estava cansado de acreditar.
Olhou de novo para a montanha.
Ela não era dele. Não era de ninguém.
Simplesmente existia ali, perto dos olhos e longe dos pés.
Quando escolheu aquela casa a montanha fora fundamental para a negociação.
Ela nunca sairia dali e ele estaria seguro sabendo que pelo menos alguma coisa na sua vida seria pra sempre.
O sol também não era de ninguém.
Nascia, morria, sem se importar se todos os compromissos couberam entre um intervalo e outro.
Escrevera uma vez em uma redação na escola que achava o sol arrogante e ninguém concordou com ele. Mas jamais mudara de opinião. Ele brilha mesmo sem aparecer. Ele decide. Ele faz as regras.
A lua até se atreve a aparecer em dias claros de sol, meio pálida, meio tímida, mas não lhe faz frente porque ele a ignora completamente.
Queria dormir. Precisava descansar para o dia longo, mas já amanhecera, o céu tão lindo, a montanha tão fresca que resolveu não pensar em mais nada.
Tomou um café quente e preparou mentalmente nos mínimos detalhes o discurso de despedida que faria. Na sua vida nada era para sempre, a não ser aquela montanha.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Eu a conheci

Embarcou.
Não tinha outra coisa a fazer.
Nenhum passado e nenhum futuro, só um presente sem graça.
Aprendeu mais tarde que fé é diferente de esperança.
Explicaram que esperança é uma espécie de expectativa... De acho que vai acontecer, de quero que aconteça, mas que um certo medo já prepara para o não deu certo.
Fé não. Fé é sem medo.
Fé é certeza absoluta e mesmo quando a coisa não dá a pessoa ainda fica achando que não é definitivo e que ainda pode acontecer.
A viagem durou tanto tempo que foi capaz de achar uma explicação para “a fé move montanhas”.
Move nada. A pessoa é que caminha até a montanha porque tem tanta certeza de que vai chegar lá que caminha sem perceber e daí fica achando que a montanha se moveu.
Mas não deu tempo de encontrar uma explicação para quando se usa isso para dizer que uma montanha igual à coisa ruim saiu da frente.
Se eu pudesse ajudar diria que o raciocínio é o mesmo, só que a pessoa vai em direção contrária à montanha e assim parece que ela saiu da frente.
Simples assim.
Não, não é simples não é?
Mas ela embarcou longe de mim, desceu mais longe ainda e seguiu sem caminho entre crente e descrente.
Entre alegria e tristeza.
Entre amores e desamores.
Como toda gente.
Só que uns disfarçam melhor do que outros.
Ela não tem outra coisa a fazer, a não ser lidar com um presente sem graça.
Por isso não vou embarcar.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Ônibus e agora?

Recentemente andei de metro.
E narrei toda a epopéia. Divertido.
Mas ônibus é outra coisa.
E não cabe aqui nenhuma avaliação política de nossa situação de transporte público, eu poderia falar sobre isso, mas tenho preguiça.
Tenho preguiça, mas lamento a sorte de quem não pode se divertir com histórias que acontecem nos ônibus porque elas acontecem todos os dias e é uma dura rotina.
Uma me conta que quase caiu, bateu a perna no braço do banco e a bolsa na cabeça de um coitado.
A outra que não tinha dinheiro para pagar a passagem e foi salva pela boa alma sentada a seu lado.
A terceira, mais exagerada, além de cair mais de uma vez, chegou a desmaiar!  
Penso que não ando de ônibus desde que entrávamos pela porta de trás e descíamos pela porta da frente.
Agora é o contrário. Faz tanto tempo que a mais nova diz não se lembrar.
É para rir, não para fazer contas.
E então me lembro das minhas histórias de ônibus. Não de todas, mas as mais emblemáticas servem para alegrar um almoço.
Linha Sacomã-Paulista. Estou sentada na janela, ao lado de um rapaz, nenhum lugar vago.
Entra outro rapaz, não muito mais velho do que está sentado ao meu lado, mas com o braço direito engessado. Daquele gesso que deixa só as pontas dos dedos espiarem e que machuca embaixo do braço de gesso tão engessado que é.
Esperei um pouco, como ninguém se mexeu, cedi meu lugar a ele.
Quando desceu, um ponto antes de mim, ele agradeceu mais uma vez pelo lugar e deu com o cotovelo engessado na cabeça do rapaz dizendo que ele era mal educado e deixara uma mulher em pé!
Pois é. Ninguém falou nada. Cada um seguiu o seu caminho. Nunca mais encontrei nem um, nem outro, apesar de fazer sempre o mesmo trajeto, no mesmo horário.
É só uma história que tenho pra contar, do tempo em que usava cabelos longos e enrolados, uma bolsa com tudo o que eu tinha e um futuro que teimava em não chegar.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Recuperando o rebanho

Não esperava perder para mim depois de tanto tempo.
E porque não esperava não estava preparada e espantei-me.
Demorei mais do que deveria, gostaria e mais uma porção de ria como se diria no interior, mas me recuperei.
Estou me recuperando.
Não posso perder para mim mesma.
Não posso deixar que a tristeza de um dia dure uma semana.
Que o fato de não gostar do prato me faça abandonar o restaurante.
Que o fato de não ter o meu número me faça deixar para sempre a loja de sapatos preferida.
Não posso perder assim, por tão pouco.
...escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã... já cantava Renato Russo
E eu também já.
Já vivi dias ruins.
Já nem me lembro deles e por isso dou graças.
É uma graça rir da desgraça, não por desespero, apenas por entender que isso não é a vida, é só uma situação de vida, que já vai passar.
Não posso perder para mim porque de mim já sei muito para isso, e mesmo assim todo dia tem alguma coisa nova para aprender.
Eu deveria ter me esforçado um pouco mais e feito o post da última sexta-feira em que fiquei tão cansada que o dia tão útil tornou-se inútil e abandonei palavras sem par.
Recuperando o rebanho.