sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Útil. Inútil.

Útil. Inútil.
Feio. Bonito.
Novo. Velho.
Feliz. Infeliz.
O que é um positivo sem o seu negativo e vice versa ou versa e vice?
Fim. Começo.
Escrever em todos os dias úteis. Por que?
Se não são inúteis os dias que passo sem escrever.
A matéria que contempla as letras, as letras que contemplam a matéria.
A história que vai sendo escrita nos segundos em que se vive.
Rir e chorar.
Dizer adeus e depois voltar.
Nada é bom sem ter uma pitada de mau e ninguém é do bem sem ter feito alguma vez um pequeno mal.
O que seria das férias sem dias duros de trabalho e o que seria disso tudo sem a perspectiva de erguer as pernas pra cima e em nada pensar?
Dia útil, 18 de dezembro. Post de final de semana, final de ano e começo de vida sempre.
Aniversário da minha amiga querida Margot! Uma flor que sempre enfeita a minha vida mesmo quando ficamos tempos sem nos encontrar para um café!
Dia de não questionar. Faz não faz. Liga não liga.
Vou não vou.
Começou o Natal. Alguém se lembra que é simplesmente o aniversário de um cara que se superou?

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Coisas de Pai

Uma biografia não é feita só de histórias do bem. Nem só de histórias do mal.
Algumas são meio vexatórias, como diriam alguns. Mas, não posso faltar com a verdade.
Quando eu estava no primeiro ou segundo ano do colégio, já não me lembro mais, estudava à tarde, mas acordava bem cedo porque gostava de tomar café com o meu pai, que viajava muito e nem sempre estava em casa.
Ele ouvia no rádio um programa de músicas sertanejas. E até conhecia o locutor, o apresentador do programa.
Em uma cidade do tamanho de Tupã isso é fácil, mesmo na época em que não se conhecia a teoria de que podemos chegar a qualquer pessoa em seis passos.
Certa vez, nesse programa, houve um concurso cultural, desses que se vê até hoje. Você responde alguma pergunta através de carta e se sua carta for sorteada você retira um brinde.
Bom, o brinde da vez era um estojo escolar completo. Com lápis de cor, lápis, régua, borracha e eu fiquei enlouquecida para ganhar.
Escrevi a resposta em várias cartas e dizia meu pai que deixava lá na urna da rádio.
E ele sempre me dizia que era difícil ganhar, que eram muitas cartas, que o prêmio não era nada assim tão raro, que ele mesmo poderia comprar para mim um estojo novo, com todas aquelas coisas e que eu podia escolher a cor, o tipo de régua, a cor do apontador, etc e tal.
Qual nada, nada me convencia, eu estava muito empenhada e seguia escrevendo as cartas e ouvindo o sorteio e me angustiando com o fato de que dia após dia não ouvia o meu nome.
Para desespero do meu pai.
Na última semana do concurso, praticamente no último dia, estávamos tomando café e diferentemente dos outros dias em que meu pai sugeria que ouvíssemos notícias ou deixássemos o rádio desligado ele mesmo fez questão de deixar ligado no tal programa com o volume até mais alto do que o normal, para que de repente eu ouvisse:
- e o lindo estojo completo de hoje vai para... Lusia Nicolino! É, ela é a sortuda de hoje! É só passar aqui na rádio para retirar o seu lindo brinde que vai ser muito útil e blá blá blá.
Eu não me cabia de contentamento e no final da tarde fui com um dos meus irmãos até a rádio buscar o meu tão desejado brinde.
Lembro dele até hoje, um estojo de madeira, cheio de preciosidades, tão organizado, tudo tão novo!
Tempos mais tarde soube que meu pai falou com o locutor, contou da minha ansiedade e se propôs a comprar um estojo, com todas as coisas, para que me fosse entregue como se fosse o brinde da rádio. Ele recusou a proposta em termos, disse que não era preciso comprar um estojo, que ele “sortearia” o meu nome e assim foi.
As coisas que o meu pai fez por mim... deve ter sido muito difícil pra ele fazer esse pedido. Era tão rígido em seus preceitos, desde cinco e meia é cinco e meia e não cinco e trinta e cinco até uma moeda que era preciso voltar de troco.
Te echo de menos papa!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Os vira latas

Ouço no rádio a indignação de um rapaz que assistiu a um atropelamento de cão. Levou-o para uma clínica veterinária mas não foi atendido, mesmo muito machucado, porque era uma clínica particular. Recebeu orientação para encaminhamento a uma ONG ou a um pronto socorro veterinário da prefeitura.
Fiquei com vontade de chorar. Eu choro com histórias assim.
Lembro-me de uma vez em que fomos, Beto e eu, comer uma pizza em um domingo à noite no apartamento novo de um casal amigo recém casados.
Eu estava no início da minha primeira gravidez.
Em São Caetano do Sul, não sabíamos bem o caminho, demoramos um pouco pra chegar.
Ao descer do carro vi uma gatinha na sarjeta, deitada, quieta e eu disse:
- olha, ela está prenha! acho que vai ter os gatinhos!
E o Beto consternado:
- não Lu, ela está muito ferida, deve ter sido atropelada, por isso a barriga está assim, tão grande
Não pude subir, não pude comer. Interfonei e disse que precisava do endereço de uma clínica veterinária. Eles sabiam chegar a uma mas não explicar o caminho.
Desceram, pegaram o carro e o seguimos. Ajeitei a gatinha da melhor maneira que pude na carroceria da pick-up com um pedaço de cobertor velho (outra história de socorro a feridos) em uma caixa improvisada.
A tal clínica estava fechada.
Desculpei-me com nossos amigos e disse que precisava tentar fazer alguma coisa. Conhecia uma clínica 24 horas no Ibirapuera e zarpamos pra lá.
Chegou agonizando. Não dava pra fazer mais nada e ela morreu.
Os veterinários de plantão não cobraram pelo atendimento, mas paguei uma taxa para incineração.
Não sei quanto tempo ela ficou agonizando e se teria dado tempo de salvar se tudo tivesse feito imediatamente após o atropelamento, mas pelo menos, ela não morreu sozinha e pode ver em nossos olhos que estávamos ali e que ela era importante para nós.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Bobagens

Ai, você tá me apertando.
Ah é? Pensei que tava fazendo um carinho.
Puxa, eu nem sabia que você pensava.
O que é? Acordou com a bunda descoberta?
Acordei! E você nem aproveitou!
Credo, quando você quer baixar o nível sai de baixo.
Nossa, mas só porque eu falei que tava me apertando?
Que coisa mais besta!
Besta é você! Se faço um carinho reclama, se não faço reclama também!
É, mas tem que saber a hora certa!
Ah bom, isso é verdade, isso eu não sei e acho que nem vou aprender, você tá sempre com essa cara azeda.
O que que foi hein? Tá querendo brigar comigo?
Eu? Brigar? Mas eu não fiz nada. Você começou toda essa confusão.
Confusão? Que confusão? Você é muito indelicado, não percebe nada que tá acontecendo ao seu redor.
Quer saber? Vou dar uma volta de bicicleta, você termina de ler a sua revista e depois a gente sai pra almoçar.
Tá bom. Vai levar o celular?
Não, tá carregando e não precisa, eu não vou demorar.
Mas e se começar a demorar?
Lê outra revista!
Tchau!

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O tamanho dos sonhos

Morava em uma cidade pequena, sem crimes, sem histórico de roubos e invasões domiciliares e por isso mesmo acordou assustado com um barulho na cozinha.
Levantou para se certificar de que um gato não ficara preso ou uma coruja talvez e, caso fosse um ladrão, não teria com o que se defender. Nem um bastão de beisebol como nos filmes americanos.
Mas foi. Em seu pijama improvisado, calção e camiseta de propaganda política.
Pé ante pé assomou à porta da cozinha e viu uma figura estranha tomando água direto na torneira da pia.
Não parecia ameaçador e apenas pigarreou para ser percebido.
A figura terminou de beber água, virou-se e sorriu.

- ah, olá, eu sou um gênio e estava buscando um camarada gente boa porque é a última vez que poderei conceder um pedido, um só, e depois serei recolhido ao mundo dos gênios que vai acabar essa história por aqui, portanto, vamos lá, capricha...

Pensou um pouco e disse:
- quero passear pela cidade e descobrir os sonhos das pessoas... o que cada uma delas mais deseja, nem preciso sair daqui, quero sentar, fechar os olhos e descobrir
- só isso?
- só, e nem precisa ser de todo mundo não, senão vou é ficar cansado
- tá bom, sente-se confortavelmente e feche os olhos, quando abrir eu não estarei mais aqui, divirta-se e obrigado pela água
Sentou-se no sofá. Apoiou a cabeça em uma almofada e os pés na mesinha de centro. Pareceria dormindo se fosse surpreendido por alguém.
...
- quero reformar a casa, por a porta do banheiro pra dentro, quando chove ou faz frio é um tormento!
- queria tanto que o João passasse no concurso público, teria emprego garantido, aposentadoria
- ai, bem que a Fabiana podia namorar o Carlos, filho do dono da farmácia, casava bem e o moço vive falando de mudar pra São Paulo
- se eu aprendesse a fazer crochet ia fazer uns tapetes lindos de barbante e mostrar pra Marinete que ela não é a única que sabe fazer coisas
- se sobrar um troco do décimo terceiro quero comprar a blusa vermelha! combina demais com a sandália preta
- não queria mais esse neném...
- queria ir na praia grande, todo mundo do colégio já foi
- se eu tivesse um carro podia chamar a Denise pra ir no baile comigo mas "de a pé"!

E foi navegando pelos desejos alheios. Sonhos tão pequenos. Desejos tão possíveis. Quase compreendeu porque o gênio fora recolhido para sempre em seu mundo e quando acordou considerou apenas que tivera um sonho esquisito.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Balanço

O balanço, um contra-peso em minha vida. Balanço de corda e uma madeirinha qualquer como banco. Pedaço de corda amarrada em um galho de árvore. Árvore de quintal. Árvore forte de braços e galhos abertos. O ir e vir do meu corpo leve de criança equilibrando lado direito e esquerdo de um cérebro incansável. Descansar é balançar. Via o movimento do ar. As folhas rindo com minha alegria. Pedaço de céu azul indo e vindo. Nuvens passeando sem rumo. Tardes quentes da minha infância. Pés dando impulso. Mãos seguras, garantindo o sossego do pensar. Sentada, perigosamente em pé, sem as mãos, em um vai e vem sem sair do lugar. Hoje há avisos me alertando para peso e idade, limites a respeitar. Não tenho no quintal nenhuma árvore pronta para receber um balanço. Vejo minhas pequenas voando de lá pra cá. Rindo, experimentando saltos, fazendo estrepulias. É uma alegria profunda, um resgate da alegria da minha infância. Um resgate porque ontem fez 21 anos que balancei sozinha pela última vez, em uma tarde quente, em um sítio, perto de uma lagoa que, sem cerimonia, afogou meu amigo querido. Fiquei balançando devagar, sem pensar em nada, cantando:

...Se eu cantar, não chore não É só poesia Eu só preciso ter você Por mais um dia Ainda gosto de dançar Bom dia Como vai você?
...
Se eu morrer não chore não É só a lua É meu vestido cor de maravilha nua Ainda moro nesta mesma rua Como vai você? Você vem? Ou será que é tarde demais?
Nunca uma música disse tudo o que eu precisava dizer balançando sozinha enquanto alguns me procuravam para me fazer comer, dormir, viver.
Hoje precisei procurar a letra, mas naquela tarde de dezembro eu sabia cada palavra.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Minha boneca de casaco

Nunca fui uma menina de bonecas. Mas tive bonecas e bonecos.
Lembro-me especialmente de uma delas, apesar de não me lembrar do seu nome.
Deve ter tido um, mas não me lembro.
Lembro-me do cheiro de novo ao sair da caixa.
De seus lindos olhos azuis que abriam e fechavam e me olhavam tão profundamente.
Devia ter medo de mim. Medo de que eu cortasse o seu cabelo comprido. Os cabelos eram castanhos, lisos, com a franja mais linda que já vi.
Não era uma boneca de ninar. Era uma criança saudável, não era uma boneca bebê.
Tinha um vestido rosa de listras brancas, sem mangas, com uma cola redonda, recortada na frente.
Um barrado branco e uma margarida delicadamente aplicada, em feltro.
Era a minha boneca. Guardei tantas coisas inúteis, onde será que ela foi parar?
Vive tão perfeitamente em minha memória que posso sentir seu cheiro e tenho a impressão de que pode se materializar se eu fechar os olhos.
Sempre tive frio. Sempre tenho frio. E quando criança queria cobrir tudo e recolher pedras e latas velhas e protegê-las do frio e da chuva.
A minha boneca, em seu vestido tão elegante, não podia simplesmente ser enrolada em um pano ou em uma meia qualquer.
Foi então que a mágica se deu.
A minha irmã Lucia costurou para ela um casaco!
Costurou, na máquina de costura da minha mãe! Um casaco de flanela azul. Da altura do vestido para não comprometer a elegância dos sapatinhos pretos e das meias 3/4 branca.
Com retalhos brancos fez um punho, bolsos e uma gola.
Até hoje me impressiono com a habilidade para costurar peça tão pequena, tão caprichada, tão bonita, tão cheia de detalhes!
Ela era uma mocinha cheia de coisas mais interessantes para fazer, mas dedicou uma tarde de um sábado ou um domingo talvez, me fazendo um presente que a faz presente em minha vida em todos os momentos, mesmo naqueles em que não estou pensando nela.
Teceu mais do que um casaco de boneca, teceu um elo de amor que me protege daquele frio que às vezes invade a alma.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Quando viu o mar

Quando chegou ao mar pela primeira vez era noite e não pode vê-lo.
Apenas ouvir. Um som que penetrava nos ossos que se arrepiavam de frio.
Um frio de maré. Um frio de vento que quer refrescar o calor do dia quente.
Um cheiro de sal que não se sabia sal.
Um ruído de folhas balançando de uma árvore escondendo seus frutos no escuro da noite.
Não era obrigação da lua iluminar as praias e o mar?
Não, a lua faz o que bem entende, não tem obrigação nenhuma.
O grosso da areia massageando os pés.
E aquele barulho cada vez mais íntimo de seus pensamentos.
Aquele barulho de mar que convida. De mar que duvida. De mar que envolve a água que mora em você.
É alegre sempre?
Não, que alegria sempre é desespero.
Cheira a sal sempre?
Não, que a chuva gosta de tingir as cores e confundir os cheiros.
Quando viu o mar pela primeira vez todos os sons da noite tinham sido engolidos por uma horda de gente em busca do sol com suas cadeiras e seus apetrechos, com seus mal jeitos e, foi então, que decidiu nunca mais voltar ao mar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Pessoas de fora da minha vida

Andava apressado como quem tinha um compromisso e não olhava para lado nenhum.
Os pés descalços há tanto tempo já não se importavam com tantas pontas, pedras, com asfalto quente ou com água suja escorregando em córregos impensáveis.
Uma visão do acostamento da Bandeirantes.


Sentado em sua esquina como quem se senta na sala de sua casa passava tardes infinitas rodeados por seus cadernos e suas anotações.
Erguendo a caneta e o olhar, pensando profundamente, buscando as melhores palavras, as melhores conjugações, não se incomodava com o vai e vem de carros, motos e pessoas.
Uma visão da avenida Brasil em São Paulo.


Sorriso aberto, banguela, as pernas esticadas na calçada onde eu evitava passar mas me obrigava a encarar, ela cuidava de seus gatos e muitas vezes, quase todas as vezes, investia toda a arrecadação do dia em ração Whiskas para seus gatos. Puxava conversa, dizia boa tarde, boa noite. Esses dias a vi em uma matéria de revista de grande circulação. Uma visão de uma rua do Itaim em São Paulo.


Nenhum sorriso. Olhos apagados. Fome escancarada na boca de dentes ainda branco.
Gestos desenhados, delicados. Coluna reta. A mão grande e suja esticava os dedos para pegar pedaços de pizza fria.
Uma visão da Alameda Casa Branca, Cerqueira Cesar São Paulo.
Um dia vi sua foto e li sua história. Bailarino que em depressão deu um gole e deixou seu rastro em uma casa para a qual nunca mais retornou.
Um bailarino.
Mendigos do meu caminho. Mendigos da minha vizinhança. Mendigos que retratam vidas desgarradas da vida.
Por que nunca lhe ofereci uma carona?
Por que nunca pedi para ler um texto seu?
Por que nunca perguntei sobre seus bichos escondidos na alma?
Por que nunca lhe pedi uma coreografia? Por que nunca o vi como um Danseur e por que nunca lhe convidei para um... Allegro?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A manicure

A pele morena tenta se sobrepor ao branco que tudo quer cobrir.
Pedaços tímidos entre o final da luva branca e a manga comprida do jaleco, branco, querem aparecer.
O jaleco protege a blusa branca, com um discreto decote em V. O que permite ver um pedaço do colo e um pedaço do pescoço, já protegido pela cabeça sempre baixa.
A máscara branca sobre a boca, a touca escondendo os cabelos.
A orelha exibindo-se livre, um brinco de bijouteria barata, já sem uma das quatro pedrinhas.
O que pago a essa manicure é mais do que o lixar de unhas e o colorido atrevido trocado todas as semanas.
Essa manicure está em uma saleta pequena, silenciosa e refrigerada.
Não trocamos mais palavras do que oi, como vai, como estão as meninas, as minhas bem e as suas? Que cor vamos por hoje?
E nada mais.
Até porque o silêncio agora ronda o mundo dela. Está ensurdecendo e muitas vezes percebo que não ouviu uma ou outra coisa que eu disse e eu sempre acho melhor deixar pra lá.
Pago pelo silêncio. Pago por quarenta minutos em que posso ficar com as mãos nas mãos de alguém que não quer pintar minhas unhas pra combinar com a minha roupa ou para que eu esteja apresentável em uma reunião.
Ela quer apenas cuidar das suas pequenas.
Eu quero apenas pensar ouvindo uma música suave. A manicure é parte fundamental da manutenção do meu equilíbrio que começa na segunda-feira.
Hoje pintei as unhas de Noite Quente da Colorama. Não tem importância nenhuma, informação irrelevante, o bom de ter escolhido rapidamente essa cor foi poder dedicar-me a pensar em espanhol, língua que tanto me encanta, e encontrei nos meus guardados uma frase interessante para começar:

A Dios no lo puede ofender nada ni nadie. Equivaldría a que el rasguño infinitesimal que una hormiguita hace al trepar por una montaña, pudiera causarle dolor a la montaña.

Pois é, a mim também, hoje e espero que por muito tempo, os brutos serão formiguinhas andando pela montanha, não poderão me machucar!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Músicas

As músicas são muito mais do que pensamos.
Elas nos traduzem, as vezes tão cruelmente que podemos chorar no carro, dirigindo e ouvindo uma música.
Brega para alguns, completamente indiferente para outros, importante para tantos outros, tema de tese para algum estudante.
Hoje ganhei café na cama. Um carinho já retratado em alguma canção e depois, quando dirigia ao trabalho, ouvi:
- cuide bem do seu amor, seja quem for...
É, eu sendo cuidada, mesmo sendo como sou.
Depois outro trecho de música invade esse pensamento que me fez rir. Dirigir para mim é quase um estado de meditação.
Eu gosto de ouvir música no rádio, eu gosto de ser surpreendida por músicas que nunca ouvi, por cantores que desconheço, por velhas canções esquecidas, por músicas eternas da MPB, por músicas de novela, por músicas que entraram na lista de alguém que fez uma programação simplesmente porque é o seu trabalho. Será que só isso? Business a parte, o que mais pensava quando decidiu? E por que nessa ordem?
- que os braços sentem, e os olhos vêem, que os lábios sejam, dois rios inteiros, sem direção
Essa não é uma frase que mora em mim, ela mora em uma canção, mas quantas vezes já me peguei escrevendo uma combinação de palavras muito, mas muito parecida com um trecho de uma música qualquer. Porque mora em mim e em algum momento quer escapar.
Música. O que cantar quando há encanto? E quando não há?
E sempre há uma música. Para mim há a música que dancei, a música que analisei na aula de literatura, a música que coreografei, a música que não coreografei até hoje e quando ouço, faço movimentos involuntários, a música que me acalma, a música que me faz rir, a música que me faz pensar além do que eu poderia, completamente seduzida.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Como perdi o medo do homem do saco

Quando eu tinha uns cinco, seis anos, eu tinha muito medo do homem do saco. Minha mãe sempre me assustava com a ameaça de que ele me levaria embora se eu não ficasse no quintal e fosse brincar na rua, se eu me afastasse em uma compra ou um passeio e eu tinha realmente medo dele. Não eram ameaças de violência física, de trabalho escravo, nada disso, só a separação da família.
Que medo!
Em uma tarde ensolarada, aproveitando que meu irmão estava na escola eu saí para brincar com a preciosidade que ele guardava a sete chaves: um caminhão de madeira, vermelho, com uma carroceria enorme, rodas pintadas de preto, lindo!
Brincava na calçada em frente de casa. Subia até a esquina - morávamos quase no meio da quadra - e descia com ele carregado ora de pedras, ora de folhas, uma brincadeira solitária, que me concentrava (coisa difícil) e me dava muito prazer.
Mas de repente, quando estava preparando uma carga, o homem do saco apareceu.
Não tinha mais ninguém na rua naquela tarde de sol a não sermos nós dois.
Ele materializou-se na figura de um mendigo muito magro, alto, pele escura queimada de sol, uma barba comprida, grisalha e um saco sujo e quase vazio que segurava nas costas.
Sorriu para mim e eu desci correndo para casa, corri mais do que minhas pernas podiam aguentar. E, claro, deixei o caminhão lá, nem tive coragem de pegar.
Encontrei minha mãe na cozinha e fiquei por ali, ofegante, mas não disse uma palavra.
Ela estava ocupada com alguma coisa e não me observou, não perguntou nada.
Não demorou muito e ouvimos alguém bater palmas. Meu coração disparou.
Minha mãe foi atender o portão e eu fui espiar, atrás, querendo ver sem ser vista.
Era ele, o mendigo. Sorrindo, com o caminhão na mão disse a minha mãe:
- a menina se assustou e deixou o brinquedo, vi que ela entrou aqui, se deixar lá algum moleque vai levar é um caminhão bonito demais!
Minha mãe não entendeu muito bem mas agradeceu muito.
Serviu a ele um pão com manteiga, que não tinha nada do almoço e não tinha preparado o jantar ainda. Deu-lhe um grande copo de suco, bem gelado.
Ele bebeu o suco, agradeceu, e foi embora comendo o pão.
Desapareceu da minha infância para sempre.
Não me lembro da conversa que tive com minha mãe depois que ele se foi, mas certamente começou com uma bronca.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Famílias

Cresci em uma família de pai, mãe e cinco filhos no total, eu aí incluída na quarta posição.
Não morávamos perto de parentes e convivi um pouco com meu avô paterno e com minha avó materna.
E achava que eles deviam se casar, já que ambos eram meus avós e todo mundo tinha par de avós.
Mas não é esse o tema.
Sempre tivemos almoços de domingos e brigas no final da tarde. Uma irmã brigada com a outra por conta de uma bota ou por conta do uso infinito do banheiro para o banho, mas para mim família era assim, pai, mãe e irmãos. Todos juntos, na mesma casa.
Depois a minha irmã se casou.
Minha outra irmã, a mais velha, se mudou para São Paulo.
Meu irmão se casou.
E a casa foi ficando cada vez mais pequena para tanta saudade e tanto silêncio!
Quando chegou a minha vez de partir encontrei abrigo, aconchego, proteção, carinho, um espelho da minha casa paterna no convívio com a minha irmã Lucia, que vivia em Sâo Paulo e foi então que eu descobri. Descobri outras composições de família, as famílias dos meus amigos.
Um tinha uma irmã com síndrome de down e um irmão preso. Do pai eu nunca soube.
Morava em uma casa grande, bonita, em um bairro arborizado. Ele era alegre, não se podia imaginar!
Outro morava com a mãe e mais quatro irmãos, um quinto, casado, morava em outro apartamento, mas eram próximos, amigos, agregadores. Dormiam todos no mesmo quarto, adultos, homens e mulheres. Em um apartamento de tantos quartos, de tantos cômodos, nunca entendi porque. Nunca me ocorreu perguntar, pareceria uma agulha furando uma bolha de sabão. O pai vivia em situação difícil, mal via os filhos. Alcoólotra.
Outra morava com a mãe e dois irmãos. Visitava o pai para pedir dinheiro.
Cada um tinha seu horário e pouco se viam, o que era melhor porque ao estarem juntos, sempre havia discussão.
Famílias sem pai. Claro que outras tantas com pais, mas essas eram iguais as minhas.
Eu observava, me preocupava por eles, sentia uma ausência que não me cabia, que não me dizia respeito.
Mesmo hoje, quando digo ah... filho único? Não vai ter um irmão para dividir, compartir, relembrar as histórias de sua infância, de seus sonhos e de seus pesadelos? Com quem vai exercitar essa arte? Ouço respostas como: não deu tempo, eu me separei, mas quem sabe...
Não é da minha conta. Nem a separação, nem o filho único, se é uma decisão, uma falta de opção, não me cabe ter nenhum juízo da valor, mas fazer o quê? Tenho um dó...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Poderia ter feito diferente

Há muitos anos atrás o mundo corporativo não fazia parte do meu dia a dia e meus planos estratégicos, minha preocupação com o posicionamento diziam respeito a textos de Dostoievski e músicas improváveis me despertavam de madrugada quase exigindo uma coreografia.
Em uma tarde desses anos distantes, me lembro bem, não estava frio mas já escurecia apesar de não ser seis horas ainda.
Atravessei a rua correndo porque estava ligeiramente atrasada, para meu desespero, porque nesses momentos a figura de meu pai sempre se agigantava dizendo: cinco e trinta são cinco e trinta, nem cinco e vinte e cinco, nem cinco e trinta e cinco!
E foi então que ele cruzou a rua comigo. Não me abordou, não me olhou, não me incomodou, mas quando acabou de atravessar a rua ele começou a gritar:
- eu estou com fome... pelo amor de deus alguém me ajuda, eu tenho fome!
A rua era a Dr Vila Nova, eu estava a caminho do SESC. Ia fazer um teste para uma peça.
Sempre encontrava mendigos, alguns resmungando, alguns discursando, sempre falando bobagens, voz enrolada, mas aquele não, aquele gritava em alto e bom som e eu segui meu caminho.
Ninguém se aproximou dele. Ninguém nada.
Esperei um tempo enorme, sentada no chão, vendo o mesmo texto sendo dito por pessoas tão diferentes e um diretor exigente que não parava de ajeitar os óculos no nariz adunco ficar cada vez mais impaciente.
Teste por ordem alfabética. O L não ajudava muito mas eu esperava.
Lá pelo H/I o diretor se cansou dos testes. Na verdade creio que ele já tinha encontrado a sua menina na letra G, e então, decidiu que o melhor jeito de continuar o teste eram as meninas entrarem na coxia da direita e, sem roupa, atravessarem o palco até a coxia esquerda.
Levantei e fui embora, não fiz o teste. Aquilo não era um teste era um descaso. Eu e outras tantas meninas fomos embora, outras ficaram. Sempre há as que ficam.
A menina escolhida, na letra G, ganhou o papel, depois projeção na TV, de vez em quando ainda ganha umas páginas de Caras. Bom o teste dela, merecido o papel.
Não me arrependo de nada, a não ser, de não ter atravessado a rua de volta e ter dado o dinheiro do metrô e ônibus que eu carregava em uma bolsa enorme para aquele homem comer.
Era tudo o que eu tinha, mas certamente, hoje, eu seria um tantinho mais feliz se tivesse outro final para essa história.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Monstro

A mala pesava muito.
Mas nada podia pesar mais do que o seu pesar.
A mágoa. A surpresa sabida.
A sensação de ser um luminoso no meio da multidão quando a vontade era desaparecer.
Por que desse jeito? A mala continha coisas inúteis, mas era dela.
Acumuladas durante anos. Para quê?
Para pesar, para ficar ali jogada aos pés enquanto esperava.
Para incomodar.
Para fazer lembrar depois de muito tempo.
Uma sequência de sentimentos em ritmo frenético: raiva, decepção, alívio, desprezo, raiva mesmo e esse alívio tão disfarçado no meio de tanta coisa ruim.
Oito horas da noite. Por que o tempo não anda depressa quando se espera e por que anda tão rápido quando se está atrasado?
Tempo não é um conceito e tão pouco é um aliado. Não, definitivamente não é um aliado, é quase um inimigo.
Tira a coloração da pele.
Tira a firmeza da mão.
Tira o brilho dos olhos, mas não tira a mala pesada empurrada para um canto enquanto a carona não vem.
Nem frio nem calor. Apenas um frio na barriga.
Nada podia pesar mais do que o seu pesar. Assim pensava ela, mas hoje já sabe que há coisas bem piores.
Entregar novembro ao passado. Receber dezembro do presente e viver o hoje pelo hoje.
Sem data e sem hora, pé ante pé para não despertar o monstro que por hora se escondeu.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Só um café

Passou a mão na cabeça. Uma vez, duas vezes. Procurava as palavras porque já tinha perdido a verdade. A verdade dele era a dor dela e não sabia em que medida devia atenuar. Ela esperava. O coração acelerado já se preparava para ouvir o que não queria - essa era a verdade dela. Não se movia, apenas esperava que ele se decidisse a falar. Uma semana, um mês, um ano, alguns anos... Como se resolve isso em um café? Desconhecia o lábio trêmulo dele e quase adivinhou que ele não teria coragem de dizer a verdade. A verdade é que não há medidas para o amor. Ela amava mais? Ele amava menos? Pesava mais para ela manter o carinho no meio do turbilhão da vida moderna? E para ele? Pesava quanto? Quanto media cada gesto dela? E ele? Media alguma coisa? Ele pediu mais um café enquanto o dela já esfriara há tempo. Assim que ele levou a xícara à boca ela disse sem meias palavras:
- Então tá, parece que você não tem o que dizer mas eu já entendi. Não vamos além do café. Sem croissant, sem geléia, frutas ou suco. Sem leite ou chocolate. Eu sinto muito mais do que você pode imaginar, mas eu também sinto por você que não consegue encarar a si mesmo. Se posso pedir uma última coisa eu peço que pague o meu café, estou sem nenhum trocado. Tchau, a gente se vê por ai.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Sei lá

A minha opinião é sei lá! Não tenho que ter opinião para tudo.
Preciso ir a Caixa Economica Federal entregar um documento e retirar outro que vem em um disquete!
Quase em 2010, com tantas modernidades, com tanto dinheiro que tem esse governo, quem concebe que ainda se use disquete?
Fiquei com preguiça e ainda não fui. Eu me permito ser preguiçosa de vez em quando.
Quer almoçar hoje? Tinha um relatório para fazer, mas quer saber? Sim, quero almoçar hoje, com um amigo querido que me faz sentir bem, que me deixa entender que ainda existe gente do bem pelo puro bem e não por tramóias.
Tem um ralado verde no meu pára-choque, mas se ele chama pára-choque e sua função é essa por que eu devo me preocupar?
A minha gata escapa do quintal o tempo inteiro, ela é gata e volta por que devo me preocupar?
Ah, mas um dia a vizinha reclamou que um gato entrou na casa dela, arranhou o sofá, quebrou coisas na pia. Tá e por que ela não fecha a janela quando sai?
Estou cansada de ser a parte séria das questões.
Não seguem os prazos, por que eu tenho que ficar preocupada com o todo?
Não preenchi o formulário de matricula das meninas, o prazo é só até amanhã, chegarei tarde e cansada, sem a menor vontade. Por que o prazo é amanhã se já paguei e a secretaria e a secretária não vão a lugar algum antes do Natal?
Por que tenho que ir a um evento com o meu carro, com o meu dinheiro de estacionamento quando tem uma festa interessante me esperando?
Por que as pessoas vão pensar que eu...
Bom, pois que pensem. Eu primeiro gosto de mim, depois gosto dos que iluminam minha aura e para essa seleção não tenho nenhuma explicação.
Depois, eu gosto de toda gente, alguns porque me fazem perceber que eu tenho muito a melhorar, a crescer e outros porque me mostram o quanto eu já estou melhor que eles.
E a minha opinião continua sendo SEI LÁ, acho que amanhã vai melhorar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Algodão Doce

O que as roupas fazem com as pessoas?
Cobrem seus corpos nus.
O que fazemos com as roupas?
Espetáculos de elegância e de horror.
Quando era criança minha mãe comprava lindos tecidos e costurava para mim.
Vestido delicadamente florido.
Uma calça verde limão saint tropez. Não precisamos datar nada, apenas seguir o caminho das roupas.
Uma blusa azul com listras vermelhas na manga.
Minha linda blusa vermelha, de inverno, com capuz.
Quando adolescente a coisa mudou um pouco.
Minha mãe seguia costurando mas já inspirada por meus desejos.
Quando me mudei para São Paulo, nada, qualquer coisa, um jeans e uma camiseta ou uma camisa até que descobri vestidos longos demais e outros curtos demais em lojas alternativas, que combinados com alpargatas ou chinelos havaianas me davam um ar hippie total.
E foi nesse momento que surgiu um casamento.
O que é uma roupa para uma cerimônica de casamento? Um pesadelo.
Que cor, que altura, que modelo, que tecido, que padronagem, passaremos frio ou calor? Por quanto tempo? Mas a compra, em um grupo de amigos, totalmente descolados dessa realidade de frufrus pode ser antológica.
Em quatro, três meninas e um menin percorremos lojas.
Logo me achei com um modelito que me deixava absolutamente confortável e elegante, sob o meu ponto de vista, discutível, mas com aprovação do grupo.
Sentar e esperar pelos demais. O menino foi o segundo e, sendo o mais crítico de todos, um alívio.
E não posso esquecer um aprendizado importante: a verdade, muitas vezes dura, pode salvar vidas.
A terceira menina, praticamente uma intrusa em nosso trio, mas prima do menino e por isso bem aceita, em seu décimo vestido experimentado sorri e desfila confiante:
- achei!
Com um olhar delicado, mas uma voz firme, ele a salvou quando resolveu dizer:
- por favor, você é baixinha, um pouco gordinha, com esse vestido rodado, rosa, está parecendo um algodão doce, não, definitivamente, esse não!

Rimos muito, ela incluída. O destino já os levou dessa vida, tão jovens, cada um em sua tragédia solitária, mas rir da vida e de si mesmo é o que salva toda gente!
Amanhã tem festa. Com que roupa eu vou?

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Laço de Fita

Ela usava um laço de fita cor-de-rosa no cabelo. Era estranho, mas ninguém parecia estranhar.
O cabelo preto, meio encaracolado, um corte feito em qualquer salão de bairro.
Na boca um batom meio marrom. Não combinava com o tom de pele. E mais nada. Nem um lápis, nenhum delineador, uma corzinha na bochecha. Nada. Somente aquele batom desenhando os lábios. Bonitos. Bem feitos.
O vestido tinha um comprimento indeciso. Não queria mostrar os joelhos mas também não parecia muito amigo da canela e assim, ficava no meio do caminho. De um salmão apagado que fazia o laço da cabeça gritar ainda mais.
Sandália sem graça. Dessas que se compram em lojas populares não pelo fetiche do sapato, simplesmente pela prateleira numérica: aqui ficam os de número 37 da faixa de preço que varia entre 49,90 a 79,90. De uma cor que não se sabe definir.
O conjunto não era homogêneo, não era elegante, mas ali reinava ela.
Não importando quão modernas as outras se apresentassem.
Com suas pulseiras e bolsas agigantando-se em cada movimento.
Com o corte bem feito das peças, com as cores certas, com a proporção da arte urbana.
Com seus esmaltes em dia, com seus cílios enegrecidos, com seus cabelos perfumados.
Não, isso tudo de nada servia, ali reinava ela.
Entre um meio sorriso e uma meia palavra, um olhar atravessando a cena, entre um sim e um não, foi marcando território.
Para matar o tempo, a que não tinha lá tanto charme assim, mas que jamais usaria um laço cor-de-rosa na cabeça anotou na agenda: dentista dia 26, manicure dia 28, trocar a calça no sábado, cortar o cabelo dia 03, e a reunião seguiu, como se nada mais importasse além do... além do...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Sinais


Alguns preferem a numerologia, outros o horóscopo, alguns cartomantes, outros igrejas de muitos credos.
Eu, muitas vezes, apenas uma cena. Do cotidiano, de uma viagem, na saída do cinema, na fila do supermercado.
Não sei quem é a garota da foto, que charmosa em seu vestido de verão e protegida pelo seu lindo chapéu, caminha com a família pelos jardins do Alhambra, em Granada de Espanha.
Não sei sua nacionalidade, seu nome, sua idade, nada, nada.
Mas quando a vi, tive certeza de que queria uma menina "igual".
Estávamos em viagem de férias, já tantos anos de um casamento tranquilo, por que não tumultuar?
Fiquei olhando, pensando, admirando.
A menininha do chapéu me avisou que eu teria meninas e eu acreditei.
E já as tenho, aqui comigo tatuadas no coração e correndo pela casa, deixando coisas fora do lugar. Antonella e Valentina.
Cada uma a seu tempo, cada uma do seu jeito, concretizando o sonho quase egoísta de também ter. Mas não tenho, apenas cuido e agradeço cada momento.
Ah... elas não são lá muito adeptas de vestido e chapéu, mas isso não importa, nem se encaixa no conceito moderno de aspiracional. Além do que, eu não saberia bem o que fazer com meninas tão meninas!

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Gêmeos

São gêmeos, mas ela o sufoca.
De uma beleza arrogante, tem olhos superficiais.
Ele não, para vê-lo belo é preciso olhar uma segunda vez. Mas tem o olhar profundo, de quem pensa diferente daquilo que se passa em sua volta.
Ela é alta, o rabo de cavalo lhe dá um ar de rainha.
Ele não. Não se parece com um rei, nem com um príncipe. Parece mais um menino triste.
Ela foi gerada confortavelmente sobre as pernas dele.
Que já passaram por cirurgias, que ainda são vacilantes no caminhar.

- ele tem amigos? parece tão triste
- claro que tem, tem dois, o... e o...

Enquanto ele espera quieto em um canto no pátio do colégio ela anda saltitante rodeada de amigas e olhares enviesados.
Sorri para ele. Mas não é um sorriso amistoso. É um sorriso de compaixão. Uma compaixão obrigatória que nas entrelinhas quer ordenar um fique aí e me deixe viver.
Quem será mais feliz?
Talvez os dois, cada um a seu modo.
São gêmeos. Será que enxergo uma realidade embaçada que não se confirma no dia a dia da casa, da família, dos amigos?
Tomara.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Tamantuante - O que fazemos


Há uns três anos, minha primogenita foi com a escola até o Zoológico.
Esses passeios educativos sobre os quais não quero tecer considerações agora.
Levou um boné, uma mochila com guloseimas, água incluída porque é a única bebida que lhe apetece, algum dinheiro e sua empolgação.
Quando cheguei do trabalho, à noite, ela estava meio abatida e me contou:

- Sabe mãe, o passeio foi legal, mas não gastei bem o meu dinheiro. Eu comprei salgadinho, depois um sorvete, bicho no pote, uma oncinha de pelúcia para a minha irmã, mas na volta, na hora de ir embora, eu vi um tamanduá de pelúcia e não pude comprar
- Ah, é? E era bonito?
- Lindo! Mas custava R$ 35,00 e eu já não tinha tudo isso. Pedi emprestado para meus amigos, ninguém tinha, pedi para a professora, mas ela disse que não podia, porque aí todo mundo ia querer e tive que deixá-lo lá
- Um dia desses vamos até lá e você compra
- Ah, tamanduá não é bicho que se faça tantos, acho que vai acabar

Dormiu. Dia seguinte de manhã, tamanduá. À noite quando voltei, tamanduá.
No meio da noite, resmungando, pensei que queria água e estava sonhando... com tamanduá!
Dia seguinte, entre um email e outro, um telefonema e outro, uma aprovação de peça e outra, uma reunião e outra, busca na internet pelo telefone do zoológico:

- alô, é do zoológico? você tem o telefone da lojinha? ah, não tem telefone lá? e como faço para falar com alguém de lá?

Fui instruída a ligar daí uns quinze minutos, que alguém iria chamar a moça.

- Oi, ainda tem um tamanduá de pelúcia?
- Na loja não, mas vou ver no estoque, pode ligar daqui uma meia hora?
Mais meia hora.
- E então?
- Ah, sim tenho um.
- Pode reservar para mim?
- Ah, isso não posso não
- Apenas por uma hora. Vou pedir que um motoboy vá buscá-lo, por favor, pode ser?
- Está bem, não tem muita gente hoje

Instruções para o Motoboy: na portaria do zoológico, diga que vai buscar o tamanduá, de pelúcia, o da lojinha... O nome da moça é... Eles o deixarão entrar sem pagar só para retirar a encomenda.
Quase uma hora depois toca o celular:
- não tô conseguindo entrar não
Outras tantas ligações depois, mais uma hora de espera e o Motoboy me aparece com o tamanduá em uma sacolinha de plástico.
Cara de assustado de um, cara de é coisa de mãe do outro!
Eu feliz. Paguei pelo tamanduá, paguei pelo motoboy, trabalhei até mais tarde, mas quando cheguei em casa com esse carinha aí da foto, nenhum dinheiro do mundo pode pagar o brilho dos olhos e o abraço apertado, não em mim, no fofo...

- Tamantuante, é você, eu estava esperando você!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um compromisso

Tinha um compromisso muito cedo, apesar do sono acordei animada, as meninas despertas despertam em mim uma sensação boa. Só um suco, beijos apressados e caminho da roça.
Eu e meu rádio, nenhum ganso para dizer ate já. Nas ondas do rádio...

- a rodovia dos Bandeirantes esta totalmente bloqueada no km 23 por causa de um acidente com 3 caminhões.

Eles, quase sempre eles.

- siga pela Anhanguera

Lá fui eu, espírito preparado para ver mais da paisagem do que normalmente vejo e munida de paciência extra para relevar os motoristas que não respeitarão nada.
Quando cheguei na entrada da Anhanguera não havia mais bloqueio na Bandeirantes (?!?!) e tive segundos para decidir que ía mesmo pela Bandeirantes. Qualquer coisa ainda restaria uma saída pelo Rodoanel no Km 24.

- duas pistas e o acostamento da Bandeirantes acabam de ser liberados

Fui seguindo devagar. O que é seguir devagar diante do fato de que alguém não seguirá mais? Depois de mais de uma hora de trabalho os bombeiros resgataram um dos motoristas, mas o caminho dele acabara ali. Ele havia chegado meio sem jeito, meio sem querer. Passei pelo caminhão. Já estava no acostamento, sozinho, assustado, violentamente machucado, esperando sua sentença, quase abandonado. Vermelho, era vemelho.
Em algum lugar alguém recebera ou receberia em breve uma notícia. Vidas transformadas para sempre. Pai, mãe, mulher, filhos, cachorro? Umas contas para pagar? Um Natal para planejar? Uma carga para entregar? Em que segundo tudo isso se misturou e acabou?
Enquanto eu dormia esperando o despertador cantar.

- a Bandeirantes parcialmente liberada é a melhor opção de chegada, Anhanguera congestionada desde Jundiaí até São Paulo

Cheguei ao meu compromisso no horário, just in time, mas o café não teve lá muita graça.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Agenda

E para aquela manhã ela não programara o despertador. Queria acordar sozinha para ficar com cara de quem dormiu bem, cara de quem está descansada.
O hábito, porém, fez com que acordasse no mesmo horário e bem feliz.
Como não tinha agendado nada de importante pela manhã tomou calmamente o café e leu alguns cadernos do jornal.
Foi para o escritório cantando no carro.
Normalmente deixava em um rádio qualquer enquanto se ocupava em gritar com todo mundo no trânsito, mas hoje não, hoje tivera tempo de escolher um CD.
Na hora do almoço fez as unhas e comeu uma saladinha, rápido mas saudável, para não ficar com cara de esfomeada.
Durante a tarde entre um documento redigido e outro pensou em que roupa poria.
E se estivesse frio? Mas estava tão quente.
A bolsa ia parecer grande demais. Sandália ou um sapato fechado? Frio no pé é igual a frio por toda parte.
Quase cinco horas e o relógio pareceu mais preguiçoso. Arrastando-se em uma dança disforme, sempre em círculos.
Quase seis horas uma chamada apressada, sem fôlego, sem tempo para lamentos:
- oi amor, desculpe, mas não consigo sair dessa reunião chata pro nosso jantar, depois a gente se fala e marca outro dia, ok?
- ok
Nunca sabemos o que nos espera do lado de lá. Por isso tanta gente ensina a não esperar nada.
Ela voltou para casa. Unha feita, fome, sem graça. Tomou um banho, deixou a TV ligada em um barulho qualquer e, antes de pegar no sono, programou o despertador.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Conceito de Noção

- Olá, bom dia, tudo bem?
- Comigo tudo e com você?
- Também. Então, me diga porque quer trabalhar conosco.
- Na verdade, eu quero trabalhar, não importa se for aqui ou em outro lugar.
- Ah é? Fale-me um pouco sobre o que espera do trabalho.
- Bom, eu preferia terminar de estudar de dia e trabalhar depois. Esse negócio de trabalhar o dia inteiro e depois ir pra facul à noite deve ser bem cansativo. Mas eu preciso ajudar em casa, pagar a escola, comprar minhas coisas, então, eu preciso trabalhar.
- E o que espera da nossa empresa?
- Ah, espero que ela seja bem legal comigo, que eu consiga o trabalho aqui, que o cara que vai ser meu chefe seja legal, me ensine tudo o que eu tenho que fazer, se não tiver direito me dê uns toques pra consertar, essas coisas.
- O que vai fazer na faculdade?
- Estudar muito, entregar todos os trabalhos em dia, fazer as provas na primeira chamada...
- Mas em que área, para que área vai prestar vestibular?
- Putz, ainda não sei não. Eu queria mesmo era fazer Educação Física. Mas aí dizem que não rola muita grana. Ou você é professor de escola ou, se der sorte, vai pra uma academia e depois começa a ser personal, aí a grana melhora.
- Somos uma indústria farmacêutica, em que seu trabalho aqui contribuiria para esse seu projeto?
- Cara, não tinha pensado nisso, mas se eu for personal, posso recomendar os melhores medicamentos, já sabendo direito como funciona o troço! Super legal!
- Está certo, estamos com seu CV aqui, vamos conversar com outros candidatos e damos um retorno.
- Valeu, mas vê se dá uma forcinha, a barra lá em casa tá pesando.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cadeirinhas

Em casa somos uma escada de filhos, com área para descanso.
3 com pouca diferença, dois, três anos, eu no meio e depois de mais um descanso, minha irmã caçula.
Isso resulta em uma estrutura familiar que não conversa muito com a tese de Frank Sulloway, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology que estudou a ordem de nascimento na família e sua influência no comportamendo dos indivíduos. Ficamos fora do padrão. 3 filhos, caçula único menino, por um tempão.
Depois eu, outra caçula. Depois outra caçula e eu fiquei sendo a do meio, entre um grupo de três e um dos bebês mais lindos que já conheci, minha irmã Laís. Não, não tem teoria que se aplica.
Enfim, vamos ao caso das cadeirinhas.
Minha irmã menos mais velha, a segunda na trilogia dos primeiros filhos, Lucinete, me chamou de lado e perguntou:
- sabe essas cadeirinhas de varanda, você acha que a Laís ía gostar de ganhar uma?
- eu ía adorar, eu quero uma!
- ah é? mas e a Laís?
- ah, acho que ela também...

Hum... Ela recém começara a trabalhar, certamente estava pensando em outro presente para mim, quem sabe um livro, que eu adorava, mas não uma cadeirinha daquelas, eu já quase nem cabia, apesar de ter sido sempre um cisco, não era mais para minha idade.
Perto do Natal, presente de Natal, surpresaaa!!!
Duas cadeirinhas, lindas, cheiro de novo, uma amarela e uma vermelha.
E eu:
- quero a amarela, não quero a vermelha, não a amarela é mais bonita, não, não, a vermelha, é, pronto, a vermelha é minha
E foi minha, independentemente da preferência da segunda caçula.
O carinho estava em cada fio de plástico que moldava aquele objeto e, minha irmã, com o bolso ainda mais vazio, tinha um sorriso enorme no rosto. O mesmo que ainda vejo nas poucas vezes em que nos encontramos, apenas porque estamos longe dos olhos, mas muito, muito perto do coração.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Amantes

A casa dela era a mais bonita. Na esquina, com jardim, cortinas na janela, sempre tão organizada, sempre tão silenciosa apesar das crianças.
Quando bateu palmas e foi recebida pela mãe, a menina tratou de sentar-se na saleta ao lado para fazer a tarefa.
Pé descalço, sujo de terra, cruzado embaixo da perna e ouvido muito atento.
Afinal, era traquina e brincava muito com as crianças da casa bonita, será que tinha aprontado alguma?
Ouviu parte da conversa, falavam baixinho e a mãe usava palavras de conforto.
Espiou e viu quando ela enxugava uma lágrima.
Levantou na ponta do pé e ficou atrás da parede, preocupada.

- nunca pensei que isso pudesse acontecer... quase morri de vergonha, o médico tentou ser gentil, doença íntima, seu marido viaja muito
- é, eu nem sei o que dizer, mas é melhor pensar que agora que já sabe o que é, consegue se tratar
- mas como olhar pra cara dele? falar? não falar? não sei o que fazer!
-melhor falar

Desinteressou-se da conversa, voltou à tarefa e ficou pensando, aliviada, que não era responsável pela visita inesperada, nem por aquela choradeira. Mas ficou triste. As mulheres ricas, bonitas, que não andavam pra lá e prá ca enxugando a mão no avental também choravam.
Passou correndo pela cozinha, fingiu que não viu nem ouviu nada, pegou um pedaço do bolo que fora servido com café e desapareceu no quintal.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Tadeu

Estudavam na mesma escola, no mesmo período, mas não na mesma sala. Mas estavam na mesma série.
As crianças estranhavam o nome dele, mas ele era bonitinho e as meninas viviam alvoroçadas.
Um dia o Tadeu faltou.
No outro também. E em mais um dia. Alguns esqueceram, outros preocuparam-se muito e mais de uma semana se passou.
Uma tarde de sol meio apagado, quase frio, a Diretora entrou na classe com um ar muito sério e buscou palavras, buscou equilíbrio na voz, buscou forças que agora sabemos onde e contou que o Tadeu tinha ficado muito doente e que não ia mais voltar.
O Tadeu estava naquele momento com alguns anjinhos, desejando que todos tivessem sorte na escola.
Um silêncio esquisito.
A professora ficou meio sem jeito depois que a Diretora saiu. Perguntou se alguém tinha alguma pergunta, ninguém perguntou nada, não se sabe bem como cada um entendeu a mensagem.
Em casa a mãe detalhou para alertar:
- O Tadeu pisou em um prego enferrujado, o pé ficou machucado mas ele não contou para a mãe, ficou alguns dias com aquele ferimento sem cuidar direito. Quando a mãe viu e o levou ao médico já era tarde, ele teve uma doença chamada tétano, não conseguiram curá-lo e ele morreu. Por isso que é preciso mostrar para a mamãe qualquer machucado, mesmo que seja pequenininho, um arranhão de gato, de galho, de arame, de lápis. É preciso lavar e passar um remédio.

Ouviu tudo calada, apenas pensando que tétano começava com T igual Tadeu.
Depois das férias o Luís Eduardo não voltou.
A Diretora não apareceu e a professora avisou que o Luís Eduardo tinha se mudado para Pindamonhangaba.
Ficou desconfiada.
Ficou pensando que a Diretora assustou muita gente.
Ficou achando que Pindamonhangaba não existia, cidade com nome comprido demais e que ela nunca ouvira falar.
Ficou pensando que outro prego poderia ter surgido no caminho.
A professora não perguntou se alguém tinha alguma pergunta, a mãe não falou nada sobre cidades de nome esquisito mas, por precaução, à noite quando foi dormir pediu ao anjo da guarda que lhe desse um sinal caso o Luís Eduardo tivesse ido se encontrar com o Tadeu.
Nada aconteceu e na manhã seguinte ela procurou no mapa, junto com o pai, cidades com nomes compridos, como se fosse uma brincadeira e lá estava Pindamonhangaba. Um alívio. Mas sentia muitas saudades do Tadeu e nunca o esqueceu.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A blusa mais linda que eu já tive

Quando o meu irmão começou a trabalhar — não, não era treinee, naquela época não tinha isso lá no interior — trabalhava em uma fábrica de cadernos, o que para mim foi uma grande novidade! Ele era pouco mais que um menino, mas trabalhar era coisa de adulto, de homem!
Eu teria menos tempo para algumas coisas como balançar em seu braço em L (ele) não que ele fosse forte, eu é que era um cisco; ver e torcer em suas lutas com meu gato, como se fosse luta livre rolavam no chão e ele dizia: é a luta, é a luta... divertidíssimo!
Por outro lado ele teria menos tempo para se divertir me provocando.
Ele me chamava de desenho porque dizia que eu parecia um desenho animado e eu não podia tirar a sua razão, era magricela, sardenta, sem dente na frente, nariz grande. Muitas vezes eu o ouvia perguntar ao chegar em casa:
- mãe, cadê o desenho?
Eu ficava feliz da vida mas fazia cara de quem estava zangada com o apelido.
Ele me levava, aos domingos à tarde, à matine do cinema para ver Tarzan e me comprava Banda de abacaxi. A guloseima que eu buscaria se fosse o personagem de Muriel Barbery em A morte do gourmet. Tampouco se zangou comigo quando, em uma das vezes, tirei o papel de todas as balas e fiquei segurando-as na mão, para não perder nada do filme me enroscando com os papéis e foi uma meleca só! Não, ele não se zangava comigo.
Com seu trabalho não perdi nada disso, nem ele perdeu a chance de me provocar. Eu ganhava mais coisas isso sim. Balas Soft, um pacote inteiro só para mim.
- Desenho, não engole que essa bala é dura, dói a garganta!
Mas nada se compara ao dia em que pediu à minha mãe que me arrumasse porque iria me levar com ele à loja de roupas. Claro, trabalho, roupas de trabalho. Para mim era um passeio.
Não me lembro do que ele comprou para ele, mas para mim... Para mim comprou a blusa mais linda que eu já tive até hoje. Uma malha vermelha, de zíper, com capuz. Em um tempo em que minha mãe costurava minhas roupas ou decidia o que eu iria vestir e pronto. Mas ele não. Ele me deixou experimentar, escolher, me disse que era linda, que no inverno eu ia ficar bem quentinha.
Eu ainda posso sentir o cheiro da roupa nova, porque não era outra coisa além de um carinho que não envelheceu como ele e eu.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Pedestre

Levava uma mochila nas costas.
O que guardava lá dentro ninguém sabia.
Estava sempre ajeitando as coisas por um pequeno vão do zíper aberto, como quem guarda um segredo.
Se chovia, de lá saia o guarda-chuva.
Se esfriava, de lá saia uma malha.
Se alguém reclamava de fome, de lá saiam alguns biscoitos, um chiclé, uma barra de cereal.
Se tinha dor de cabeça, de lá saia um remedinho.
Ao sentar no metrô, um livro magicamente surgia da mochila e a viagem tinha outro destino.
Vasculhava todos os bolsos e recantos em busca de moedas para um pedinte, quando na verdade precisava tanto quanto ele.
Uma garrafinha de água sempre no bolso lateral da preciosa mochila.
Velha, mas perfeita. E limpa porque sempre em contato com a roupa.
Por no chão? Nem pensar, se é possível apoiar sobre os pés!
A mãe não lhe dizia nada sobre o pai, sobre as contas que se acumulavam, sobre o aluguel vencido, sobre o risco de perder o emprego, sobre a doença da avó.
Mas sempre queria saber sobre suas notas na escola, sobre seus amigos, sobre seus hábitos alimentares, sobre suas possíveis namoradas, sobre seus amigos, seus programas, sobre seu dentista.
Naquela manhã ele apenas deu um beijo na testa da mãe que estava sentada terminando uma xícara de café e saiu.
Não disse nada. Ela esboçou um sorriso e também não disse nada.
Quando ela recuperou a mochila, ralada, suja mas intacta começou a revelar seu conteúdo misterioso.
Um livro de Dalton Trevisan.
Algumas balas. Um chiclete. Um pacote de biscoito.
Um caderno de capa vermelha cheio de anotações.
Mas o que mais a impressionou foram os recortes de jornal com fotografias do pai e suas intermináveis entrevistas.
Bonito ainda, poderoso mais do que nunca.
Como ele soube? Como ele sabia?
Um assunto inacabado. Uma dor para sempre.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Tombos

Por que as pessoas riem quando outras pessoas caem?
É automático!
Alguns mal conseguem perguntam: machucou? porque estão gargalhando!
É uma risada gostosa, espontânea, genuína. Impagável.
Todo mundo já viu alguém cair e já riu muito dessa situação.
E muita gente já foi protagonista de uma cena dessas. Uns mais ridículos, outros menos, com mais platéia, com platéia menor. Claro que estou falando de tombos adultos, os infantis são de outra categoria, são um capítulo à parte.
Eu já cai muitos tombos, mas depois de adulta dois são memoráveis.
O primeiro, mais dolorido, com platéia minúscula: o porteiro do prédio.
Eu morava em Recife e cheguei tarde da noite depois de um passeio com amigos. Um grupo deles me deixou em frente ao prédio, me despedi e entrei.
Nem no Nordeste eu deixo de sentir frio e aquele ventinho da noite me deixava congelada, conclusão, estava com as duas mãos no bolso da bermuda, apertando os braços para diminuir o frio.
Disse boa noite ao porteiro e ao subir um pequeno lance de escadas para chegar ao elevador tropecei e cai escada acima e com as mãos no bolso!
Só não bati o rosto porque ele ficou de fora do último degrau e tive dificuldade de tirar as mãos do bolso já caída imagina se tive reflexo para tirar antes e tentar aparar a queda?
O porteiro, na penumbra, perguntou: machucou? E tenho certeza absoluta que depois que o elevador fechou a porta se escrachou de rir!
O segundo machucou levemente a nádega e profundamente o ego.
Cai e escorreguei sentada por uma sequência de degraus que pareciam intermináveis em plena escadaria da FAAP.
Como estava invisível de vergonha, segurando desajeitadamente a mão do meu namorado, hoje meu marido, não vi ninguém dar risada. Não vi, mas ainda hoje ouço o eco medonho!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Olhar para baixo

E eu que estava esquecida da vida quando vi a água jorrar para molhar o gramado, porque agora começou o verão...
O que me ocorreu?
Aquecimento global, desperdício de água, condomínio organizado, grama bonita...
Não, nada disso.
A força descomunal da fêmea do Quero Quero chocando seu ovo, impávida diante daquela chuva inesperada.
Olhos de quem diz daqui não saio daqui ninguém me tira, meu filhote vai sobreviver.
Da imponência de seu bico me espiando e pensando, uma água a mais?
Não temos tempo de olhar para as lições que nos são ensinadas todos os dias.
Outro dia ouvi alguém dizer: ah, é tão fresco que tropeçou em uma formiga e torceu o pé!
Quem é esse que ousou cruzar o caminho da pobre criatura?
Eu gosto dos detalhes, eu gosto dos pequenos, eu gosto do impensável, eu quero ver o filhote de Quero Quero atravessar a rua andando na frente do meu carro como quem anda em um campo desabitado e eu quero parar e esperar que ele atravesse em segurança.
Não importa a marginal, não importa as 9h30, não importa o celular, depois que o Quero Quero nascer, crescer e me mostrar que tudo tem seu ritmo podemos remarcar a reunião!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Tocar o bumbo em outra banda

Tocava bumbo na banda.
De vez em quando pensava em algo maior. Já pensara até em ser o maestro.
Retrocedia.
Admirava os pratos. Os instrumentos de sopro então, um sonho inalcansável.
Porque tocava o bumbo desde sempre ninguém nunca o considerou para outro instrumento qualquer e sabia tocar!
Sabia tocar muito bem muitos outros instrumentos, mas como provar?
Arriscava algumas vezes. Indiretas. Uma experimentada em um instrumento nobre abandonado por um tempo.
Elogio? Não, nenhum.
Tocar o bumbo não era nobre e ele tinha a impressão de que todos tinham a impressão de que qualquer um podia tocar o bumbo.
Valia a pena investir?
Um dia, não bateu no bumbo na hora certa e a banda veio abaixo.
Era ensaio. Não tinha coragem de fazer isso em uma apresentação oficial mas vontade não faltava.
Hum, compreendeu que ele só importava quando não funcionava.
Mas quando funcionava, um elogio?
Pensou no bumbo. Pensou nos outros instrumentos. Era apaixonado pelo bumbo.
No começo da primavera não apareceu para o ensaio mas enviou uma carta delicada.
Um mês de férias e sua estréia em outra banda.
Uma banda diferente. O bumbo ficava bem na frente e em todas as fotos de anúncio da banda, o bumbo aparecia.
Tocou a vida sem remorsos. Admirável!

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Por culpa de sua ausência

Quero ir para onde o meu coração está batendo.
Não é aqui. É logo ali onde passei rapidamente.
Minha primogenita sendo entrevistada para uma revista.
ResultsOn - negócios inteligentes.
Uma revista como ela, pequena no tamanho, rica no conteúdo.
Ela se diz encabulada e revela coisas me olhando de lado e rindo:
- já escondi pastel embaixo do travesseiro
Mas a entrevista é para falar de business.
Meu Deus, ela tem 10 anos!
A filha dela talvez dê um entrevista sobre esse tema quando tiver cinco.
As coisas estão ficando very fast.
Será que eu gosto?
Encontramos uma amiga querida, Aline.
Participante ativa nos negócios da minha pequena, contribui com o bate papo.
É multimidia a pequena, enquanto responde as perguntas, cria uma história, come um cook e escolhe um livro na livraria que está há alguns passos.
Eu estou aqui.
Caixa de emails pipocando enlouquecidamente.
Planejamento 2010. Insano. Se depois tudo muda...
Não tive tempo de escrever longo email para uma de minhas leitoras mais queridas, distante que está, na terra em que tanto adoro, Espanha. Ro, escreverei quando estiver menos consumida pelo dia a dia.
Véspera de feriado, me anima.
Um filme, muita pipoca. Sol, piscina.
Vou deixar o meu carro aqui e voltar com a minha família toda.
Depois pensamos nessas questões operacionais do dia a dia, da hora a hora, do minuto a minuto.
A ausência pesa em mim quando não dou conta e depois lembro da frase de um amigo querido que porque era um anjo já se foi:
- eu estou aqui com os braços bem abertos, a não ser que este ser se tenha perdido por culpa de sua ausência

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Melhor pedir antes que seja tarde

Queria uma flor: margarida
Queria uma música: ?
Queria um animal: gato
Queria uma comida: pipoca
Queria uma diversão: balançar
Queria um passeio: caminho na mata
Queria um passarinho: bem-te-vi
Queria uma bebida: água com gás
Queria um descanso: rede
Queria um brinquedo: carrinho de rolemã
Queria um doce: quindim
Queria um momento de meditação: livro, livros, todos os livros
Queria uma língua: espanhol
Queria um país: Itália

Se tivesse que ter um último desejo agora diria: quero segurar uma foto bem linda das pessoinhas que amo, doar todos os órgãos possíveis, pessoas tranquilas sabendo que fui feliz e fazendo piadas e nada de flores... cubram-me com milho de pipoca para que durante a cremação as palomitas se pareçam com margaridas brotando no modo acelerado do vídeo.
É, de vez em quando temos que pensar em certos detalhes.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O que era e o que se pensava que era

Nunca batera o carro.
Nem nunca ninguém batera com qualquer coisa no carro dela.
Um tesouro.
Mas naquele dia, tudo ia mudar.
Dia comprido, reuniões longas, infindáveis filas de carro. Marginal anda e para, anda e para. Música lenta, melhor mudar isso!
Em um segundo, entre apertar um botãozinho do celular para uma música mais agradável começar, BUM!
Digamos um bum, mas um bum. Batera na traseira do carro da frente.
Tão leve que nada poderia ter acontecido. Mas como saber se o carro da frente era tão velho, tão amassado que olhando rapidamente não podia dizer se estava de frente ou de ré e tão pouco dizer que marca e modelo era?
Parada estava, parada ficou.
O cara do carro da frente desceu para olhar.
Ela não, abriu o vidro e sugeriu avançarem alguns metros mais para chegar em um recuo e não atrapalhar ainda mais o trânsito.
Antes mesmo de dizer isso e dele ter concordado, o tempo que ele levou para chegar nela pareceu uma eternidade em camara lenta e ela pensou:
- meu deus, que tipo, estou perdida, o mínimo que ele fará será dizer: desce do seu carro, segue no meu que eu fico com o seu...
Mas ele disse qualquer coisa de atenção e concordou em ir até o recuo.
Cara de bandido. Mas quem disse que bandido tem cara? Que pré conceito absurdo ronda nossas vidas, nossas obscuras faláceas de que não somos assim, de que abraçamos todo mundo!
Era grande, mal encarado e a única coisa que parecia ser um alento é que estava acompanhado de uma mulher.
Quando abriu a boca era um doce.
Quase pediu desculpas por estar em posição tão incômoda, bem na frente do carro dela, justo no momento em que ela precisava trocar a música.
Ela deu um cartão, se desculpou. Ele alegou avarias além da conta daquele toquezinho, mas tudo bem.
Dias depois telefonou.
- desculpa mas vai ficar em duzentos reais
Óbvio que o dinheiro não faria diferença nenhuma em qualquer ajuste que ele quisesse fazer naquele veículo, mas por que discutir?
- Ok, posso fazer um depósito?
- não, eu não tenho conta em banco não, minha noiva pode buscar um cheque?
- claro, pode vir amanhã, estou...
Ele mereceu meus duzentos reais pelo que era e pelo que eu pensei que fosse do alto de minha arrogância em revisão desde então!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Reflexo

Chove muito, todo mundo comenta.
Árvores caem, rios alagam e inundam ruas e avenidas.
As pistas ficam molhadas e os congestionamentos aumentam.
Nada a fazer. Alguns falam no celular, outros ajustam as músicas nos infindáveis aparelhos.
Alguns ajustam inúteis GPs.
Eu gosto de olhar as pessoas mas em noite de chuva eu não as vejo em seus carros herméticos.
Então, eu olho os carros.
E ouço rádio, mas isso já é lugar comum.
Ontem à noite aprendi um jeito novo de ver os carros.
No reflexo do asfalto molhado.
O Ka cinza de placa DSK 8742 cortou a minha frente.
Não sei se era homem ou mulher, mais provável que fosse uma mulher.
Uma necessidade absurda de ficar 18 centímetros à minha frente.
Uma pena.
Mas foi então que eu vi toda a intimidade do carro dela.
Sem protetor de cárter ele parecia tão frágil. Tudo exposto como um corpo que se prepara para uma cirurgia.
O escapamento, outras peças inomináveis, tudo à mostra, tudo aparente, tudo exposto.
No chão molhado, negro, brilhante, parecia uma foto do sistema digestivo em um livro escolar qualquer.
Depois ela se foi, precisava ganhar rapidamente mais 18, 20 centímetros.
E fui descobrindo outras intimidades.
Fotos lindas impossíveis de serem fotografadas.
Imagens em movimento de uma intimidade quase invasiva.
Quando o ócio não gera o óbvio eu fico mais feliz, mesmo num congestionamento quase histórico.
Reflexo de reflexões.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O caso da neosaldina

Tive uma sexta-feira cheia.
Cheia de contratempos. A Rodovia dos Bandeirantes um verdadeiro tapete, de carros, todos parados.
Horas para chegar
Usar o celular para avisar no escritório que não chegaria para a reunião das 10h00, que na verdade era a 14h00!
Compromisso do almoço desmarcado no último minuto.
Aproveitar para ir a manicure, aproveitar e cuidar do pé, aí o que era facilidade começa a se complicar, o ponteiro do relógio de uma hora pra outra começa a andar mais rápido, mas deu pra comprar a bolsa...
Reuniões produtivas. Uma atrás da outra, muitas idéias, muita coisa pra fazer no pós-reunião, emails jorrando na caixa de entrada.
Pensar no Buda sentadinho embaixo de uma árvore, recebendo oferendas, calçar as sandálias dele e por um momento, minimizar a confusão.
Em casa, as crianças me esperando para uma festa infantil.
...o papai pode levar, mas o convite diz Valentina e família!
Trânsito devolta, obra em todas as marginais, quando há farol, há esperança, porque em algum momento ele abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha, mas você vai, sem farol, você simplesmente está parado, sem qualquer esperança.
Em casa, quase a tempo, tomar um banho rapidinho, trocar de bolsa, grandona por uma pequenininha, separar uma roupinha para as meninas, desembaraçar esses cabelos (ninguém merece essa parte!)
E o presente, e o convite com o endereço.
E lá vamos nós fechar a semana com uma noite de sexta-feira em festa de sete anos.
Minha cabeça quase explodindo. Ao parar em frente ao local, vejo uma farmácia, penso em uma neosaldina, mas a farmácia está fechada.
Abro um sorriso, deixa prá lá.

Não tem jeito mais feliz de terminar uma semana, cheia de sorte, com ânimo para curtir a criançada!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Vera

Uma das brincadeiras mais divertidas da minha infância chamava-se Vera.
Não sei como o nome surgiu, mas eu me chamava Vera e, minha irmã caçula, que na brincadeira continuava sendo minha irmã, também se chamava Vera.
Não desgosto do nome, mas naquela ocasião era um nome comum. Será que era uma catarse porque eu não gostava de me chamar Lusia e achava o nome de minha irmã caçula, Laís, o nome mais lindo do mundo?
Será que era uma maneira de igualar essa desvantagem?
Não sei. Mas também, nem quero saber. O que era divertido é que Veras podiam ser qualquer coisa.
Vamos brincar de Vera loja? Sim!!!
E, rapidamente, montávamos uma loja tirando roupas, bolsas e sapatos de seus abrigos e uma de nós era a vendedora e outra a compradora.
Feita a compra:
- tchau Vera, tchau, obrigada, ah, foi um prazer Vera
Outro dia, tarde chuvosa: vamos brincar de Vera viagem? Vamos!!!
Arrumávamos umas cadeiras em forma de trem no meio da sala e nos sentávamos para conversar como quem teria um longo trajeto pela frente. Em dado momento:
- Vera, vou ao vagão restaurante, quer alguma coisa?
- Ah Vera, traz um suco, umas bolachas...

E lá ia eu para a cozinha arrumar um lanchinho.
E Vera noiva? Usávamos pedaços do véu do berço da pequena, uma relíquia que minha mãe nos deu e desfilávamos pelo quintal. Ora entrando na igreja, ora na passarela, e ora entrando correndo, envergonhadas do vizinho bonitinho estar espiando a brincadeira.
A única lembrança triste que tenho da nossa singela brincadeira de Vera é que um dia, meu tio Delfino tinha chegado para passar uma temporada conosco e não conhecia a brincadeira.
Ao ouvir minha mãe chamando por mim e por minha irmã ele respondeu:

- acho que elas estão brincando com uma amiguinha, a Vera...

Meu tio Delfino não podia ver, nunca pode, não com os olhos.
Contamos a ele sobre a brincadeira e ele se divertiu, balançou a cabeça, as mãos. Eu me balanço como ele até hoje, quando resgato meu tempo, quando morro de saudades dele.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Desprendimento

Será que quando começamos ter a sensação de que todas as nossas histórias foram há muito tempo é porque estamos nos sentindo velhos?
Estou com essa sensação. Lembrei de uma história bonita e mesmo antes de começar a coreografar as palavras no balé da narrativa eu me surpreendi pensando: nossa, mas eu nem tinha filhos quando isso se deu... E pensar que minha primogênita recém completou dez, não é tanto tempo assim.

Bom, mas essa é outra história. As minhas histórias disputam, todas querem ser a primeira bailarina do municipal.
Certa noite, após um dia cumprido de trabalho, atirei-me no sofá, pés para o alto, não me lembro mas certamente um gato no colo e vi uma cena de novela na TV.
Não sei que novela, não sei quem era a atriz, mas o fato é que ela usava um cordão com um coração vermelho e eu tive certeza absoluta de que aquele coração já tinha sido meu.

Eu conhecia aquele objeto, eu já usara aquele coração, aquela peça já tinha andado em meu pescoço, sem nenhuma sombra de dúvida.
Era como se eu tivesse vivido uma outra vida, como se uma recordação distante, meio amarelada, se intrometesse em uma vida nova e dissesse: lembra que me esqueceu?
Jantei, fui dormir, não sei se sonhei, não comentei com ninguém, mas desenvolvi o hábito de levar a mão ao colo em busca de um cordão com um coração inexistente.
Dois ou três dias depois em uma reunião, uma amiga perguntou:
- esqueceu o colar e está sentindo falta? você não pára de passar a mão no pescoço...
Resolvi contar a ela. Inclinou a cabeça, me olhou demoradamente. O cabelo bem curtinho escondeu o que ia na cabeça mas os olhos castanhos não esconderam o que ia na alma.
No dia seguinte na minha mesa...
- trouxe um presente!
Abri um pacotinho e lá estava um coração de ouro.
- não é o mesmo, mas ganhei da minha mãe, que ganhou da minha avó e acho que você é a melhor pessoa para cuidar dele
Como pode ter esse desprendimento? Pensei, perguntei, olhei curiosa.
- acho que os objetos escolhem as pessoas e nos enviam alguns sinais
Saudades Malu.



quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Onde andará Davi?

De Castro. Era esse o nome dele. Por quatro anos estudamos juntos em Tupã.
Correção: por quatro anos disputamos atenção e performance.
Da primeira a quarta série primária. Excluindo Dona Terezinha, minha primeira professora, que era alheia a essa disputa todos acompanharam.
Eu não me lembro que nota o Davi tirou quanto eu me acabei de chorar, sozinha, no caminho de volta para casa, com o meu 98 vergonhosamente ajeitado dentro da pasta escolar.
Mais que eu não foi porque essa foi a maior nota da classe, a professora deu parabéns, mas se valia 100, como me contentar com 98?
No segundo ano a disputa acirrou-se. Ele era o preferido da professora e não importava por quanto tempo eu ficasse com o braço levantado para responder uma questão, ela sempre me ignorava e perguntava a qualquer outro. Mas de cinco vezes, em quatro era o Davi que respondia, de pé, imponente, para depois me olhar de rabo de olho.
Era o mais velho de quatro irmãos ou três? Depois, já no quarto ano, a mãe teve uma menina, felicidade geral. Mas não importa, me lembro bem dos meninos, tão iguais, apenas menores em sequência, poderiam passar por um conjunto de bonecas russas. Matrioska, matriosca, matrioshka, matriochka, matrioschka ou matryoshka, nossa! Um brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas feitas de diversos materiais, ainda que o mais frequente seja a madeira, que são colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor, a única que não é oca! Apesar de ser o maior, ele não era oco, nenhum deles era.
No terceiro ano disputávamos a leitura das composições e a batalha ficou mais equilibrada. A professora entendia nossa aflição e depois fizemos um acordo, ela nos pediu que incentivássemos os outros alunos a ler os seus trabalhos, porque nosso comportamento acabava inibindo os outros e isso nos uniu.
Ele era bom. Ele era muito bom e isso me estimulava a ser melhor.
Além do mais ele era bem parecido comigo, magrinho, de canelas finas, e em boa parte do tempo, banguela e sardento como eu, menos que eu, mas sardentinho... Eu me lembro! Onde andará Davi de Castro e seus irmãos?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Casa de Boneca


Quando minha irmã Lucinete se casou a casa dela me encantava!
Tudo era novo e limpo e organizado. Para mim era uma grande casa de boneca.
O que eu nunca tive porque me interessava mais o carrinho de rolemã do meu irmão, um pneu rodado no asfalto (quando meu pai não estava!) e caminhos de terra com piche, que pedíamos aos homens que asfaltavam a rua de cima.
Era uma casa silenciosa, cheirosa, não que a minha não cheirasse bem, mas era um cheiro conhecido demais e silenciosa, bem, isso nunca foi. Por minha culpa, minha tão grande culpa.
Eu olhava, admirava e achava ainda mais bonita a minha irmã dona daquela casa toda.
Preparando coisas, arrumando coisas, casa dela, só dela.
Sem contar que eu adorava visitá-la porque era meu primeiro "parente" na cidade a quem eu podia visitar. Apesar de sermos parte de uma grande familia com muitos tios e primos, nunca moramos muito perto e eu admirava meus amigos que vez ou outra estavam na casa dos primos, na casa da avó, na casa da madrinha e então, chegou a minha vez, eu estava na casa da minha irmã.
O pão fresco, casca morena e crocante, com excesso de amendocrem era um lanche de sonhos!
Na despedida, minha irmã ficava no portão, me dava um beijo no rosto, despenteava meu cabelo e, talvez sem saber, com esses gestos simples me preparava para entender que a vida é feita de pessoas que vivem perto e outras que vivem distante, mas que o amor não conhece esses limites.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Cultivar o silêncio

O que ela gostava nele era a capacidade de cultivar o silêncio.
Como quem planta e rega uma sementinha, que cresce, que dá flor.
Olhos postos nesse vaso de boca fechada. Bonito, cor viva, balançando ao vento leve, em paz.
O que ele não entendia nela era aquela incontinência verbal.
E tanto que não sabia sinônimos. E tanto que sinceridade passava por brutalidade, que novidades pareciam milho em óleo quente. Pipoca a toda instante.
Segredos não, que esses usavam um código que não lhe escapavam de maneira nenhuma, nem quando ele alegava falta de amor, falta de confiança.
Na verdade, não era o conteúdo do segredo que lhe interessava, mas o mecanismo que a fazia contê-los.
Se descobrisse esse mínimo detalhe, chegaria a um método didático de lhe ensinar a cultivar o silêncio.
Não sabiam nada um do outro além do amor que sentiam.
Descobriam as palavras ausentes de um e o excesso delas do outro entre um café, um cinema, uma tarde na livraria.
Com o tempo ela foi aprendendo. Cultivou o silêncio do seu modo, mas logrou.
Ele se questionou se era isso mesmo que esperava e temeu sentir saudades de outros tempos e até perguntou, mas ela já estava bem adiantada nas lições e não respondeu. Ambos agora cultivam o silêncio e ainda não sabem onde vão chegar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Paçoquinha

Quando eu tinha 4 anos morava em Osvaldo Cruz.
Em uma casa com varanda, com um caminho que dava para um portão pouco depois de alguns degraus.
Havia uma árvore com flores pequenas e rosas, lindas, que não sei como se chama e que era a alegria das formigas saúvas e essas, o desespero da minha mãe.
Eu adorava vê-las em fila, disputando forças pelo tamanho dos pedaços de folhas que conseguiam carregar.
Em noites de verão nos sentávamos na varanda para conversar.
Nem sempre meu pai estava porque viajava muito mas, em casa, poucos sempre pareceram muitos porque sempre tínhamos muitas histórias para contar.
E, pouco antes delas começarem, eu atravessa a rua, dobrava a esquina e comprava, no armazém, uma paçoquinha.
Hum... minha boca enche d´água até hoje.
O dono do armazém, de quem já não me lembro o nome, apelidou-me paçoquinha e por muito tempo eu cumpri esse ritual.
Até que um dia eu tive um sonho. Um sonho não, um pesadelo.
Sonhei que o dono do armazém estava sentado em nossa varanda, em nosso banco e pasmem, minha mãe estava sentada no colo dele, apenas de saiote e sutiã. Saiote naquela época fazia parte das roupas íntimas.
Acordei assustada, preocupada, olhava desconfiada para minha mãe e nunca mais, sozinha ou acompanhada, eu entrei naquele armazém.
Logo nos mudamos de cidade e voltei a comer paçoquinhas, compradas no armazém do Seu Toninho, que merece um post qualquer dia desses, até porque, nunca, nunquinha invadiu os meus sonhos com essas perturbações!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Dia de quarta-feira

Chegou em casa tão cansado que os pés mal saíam do chão.
Dia cheio, trem cheio, marmita quase vazia, mestre com saco cheio, faltou pedra, o cigarro acabou, banheiro ruim, nossa, a lista era grande demais, melhor nem continuar pensando.
E o sujeito do ônibus que não contente em sentar sozinho em um banco ainda esticava o pé no corredor fazendo todo mundo tropeçar? E brigar com um tipo daqueles? Quem? Ele que não, com menino pra sustentar, mas que dá vontade de falar umas bem boas ah isso lá dá.
Estava tão cansado que se jogou no sofá e fez uma carinha de quem pede sem palavras um prato com tudo que tem, que hoje o dia foi brabo!
A estratégia é sempre a mesma, o texto é sempre o mesmo, ninguém esquece, ninguém põe um caco sequer, é quase uma cena de novela. Bom, aí também não que casa de pobre em televisão é bemm mais bonita que a dele. Na televisão não tem sofá das Casas Bahia, o que tem é abajur pra todo lado. É tanto canto pra ter mesinha com abajur em casa de pobre de novela que bem caberiam mais umas duas ou três famílias lá.
Mas o fato é que, enquanto a mulher prepara o prato, ele pode mudar o canal da televisão.
Dia de quarta-feira é dia de jogo, ah que ele não ia perder mesmo, de quarta-feira já sabe, é jogo porque novela tem todo dia. Ele mesmo que não vê quase nunca consegue acompanhar! Um dia só não faz diferença e nem é bom pro moleque.
Estava tão cansado que não se levantou quando ouviu a primeira pessoa gritar.
O prato chegou, deu a primeira garfada. Ai se tivesse uma cerveja gelada ela ia descer rasgando de delícia. Mas isso é só de sábado, quando tem pagamento, que pobre tem que juízo.
A mulher já foi logo espiar pela janela, ô bicho curioso, mas também, não foi uma nem duas pessoas que gritaram, começou uma correria que ninguém fazia idéia.
A mulher na janela, ele com o prato na mão, quando viu o moleque escapando pela porta já era tarde!
Se não é festa de são joão isso não pode ser rojão. Se tudo ficou em silêncio de repente isso não pode ser nada bom. Se a Dirce perdeu a cor, perdeu a fala e gesticula em câmara lenta... será que o jogo acabou?