quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

História de Natal

Lá pelos idos de 2009...
É isso mesmo, o tempo passa tão rápido que consideramos 2009 tempos idos, tempos mofados.
E naquele ano, nessa época de Natal, estávamos fazendo compras em uma dessas lojas de material & construção e mais um monte de coisas, quando Valentina encontrou uma coisinha.
Um boneco de neve aprisionado em forma de saleiro. Bonitinho, branquinho, pequenininho.
Quis comprar. Não achamos o preço.
Procuramos em outros setores. Nada. Perguntamos e o vendedor:
- ah não, não é pra vender, era par de um outro que desapareceu, era de por pimenta, alguém deve ter levado e não tem mais
E Valentina:
- ah Pobrezinho, vai ficar aqui sozinho?
Falei com o gerente, nos vendeu por algo em torno de R$ 3,00 para efeito de saída.
Ele é feliz em casa, apesar de ter sido batizado de Pobrezinho. Compõe nossa decoração de natal e depois, no dia 6 de janeiro, é recolhido com todos os outros apetrechos.
É um xodó de Valentina.
Ela também enxerga a alma das coisas e isso me encanta.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eu nasci assim

Quando meu pai era vivo todos faziam caras e muxoxos porque ele contava sempre as mesmas histórias.
Menos eu. Eu  gostava de ouvir. Talvez fosse um prenúncio de que eu viria a fazer a mesma coisa.
E eu faço. Eu conto sempre as mesmas histórias. Muitas vezes para as mesmas pessoas.
Hoje na hora do almoço contei de novo uma das minhas preferidas.
Eu nasci em casa. Minha avó Amélia fez o meu parto.
Minha mãe tinha 34 anos e três filhos crescidos.
Minha avó atravessou a rua comigo no colo, toda embonecada e me pesou na balança do armazém.
Pesei 4,5 kg. Não posso acreditar. Balança de armazém tem lá seus truques e não quero crer que ela tirou toda a minha roupa para pesar, no meio do armazém?
Era abril, 28. Tinha chovido na noite anterior e o dia amanhecera lindo.
Essa é a minha história.
Foi assim que cheguei. Entre mulheres naturalmente belas em sua essência.
E, talvez por isso, eu goste tanto de contar. Foi assim que eu nasci.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

nada

apertou o passo, mas a chuva não veio
arrumou a gaveta, mas não coube mais nada
lavou o copo, mas não teve coragem de macular a gotinha com o pano de prato tão feio
olhou o relógio, o tempo não se acelerou
apertou o peito, a dor não passou
olhou a janela, mas nenhum passarinho cantou
ligou a tv, mas nem pra tela olhou
discou um número, mas desistiu de falar alô
abriu a geladeira, mas nem o leite piscou
estava sozinha no mundo, e nem deus a escutou

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Dentista

A sala de espera do dentista precisa de uma pintura nova, cadeiras novas e de um ventilador que não se sinta humilhado por ter que fazer as vezes de um aparelho de ar condicionado.
Estou com raiva.
Se soubesse porque era mais fácil desfazer, mas eu não sei.
Ou sei e não quero listar, pensar, encarar, resolver?
Também não quero decidir isso. Tanta coisa para decidir.
Tão cansada de tudo sempre tão igual e nem sempre do meu jeito.
Melhor pensar no ventilador que tenta me refrescar.
Sábado de sol.
E ela, a mocinha da recepção, indiferente à minha cara de poucos amigos me fala do tempo.
Do sábado ensolarado. Do calor.
E me conta sem pudor da sexta-feira passada fria e chuvosa e sobre o casamento do amigo Manoel.
E me dá detalhes do vestido emprestado que usou.
Carol.
Por que as pessoas escolhem nomes tão bonitos para depois simplesmente rasgarem ao meio as sílabas indefesas?
Já me explicaram várias vezes, nunca encontro um argumento que ponha fim à essa indagação.
Meu braço arranhado.
Uma música antiga em uma rádio perdida no dial.
Esse sábado único.
Essa raiva besta que não me deixa aproveitar a vida direito.
O dentista olha, me recomenda bochechos de salmoura, marca uma nova data para quando o ano novo chegar.
A mocinha da recepção é tão simpática que tenho vergonha da minha raiva inútil.
Ainda bem que, conforme me ensinou a minha mãe, disfarcei meu mau humor o tempo todo e não fiz nenhuma mal criação!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Segredo

- Você tem um segredo?
- Eu não, por que?
- Porque eu queria que alguém me contasse um segredo.
- Pra que?
- Todo mundo tem um amigo que conta algum segredo.
- Eu não tenho.
- Não?
- Não!
- Você é mesmo bem esquisito!
- Eu? E você? Você também não tem, se até está me pedindo pra te contar um segredo!
- Exatamente porque sou normal e não quero ser esquisita que nem você é que eu quero que um amigo me conte um segredo! E você nem pra isso serve!!!
- Olha, quer saber, eu vou te contar um segredo!
- Jura? Qual? Você disse que não tinha nenhum!
- É, mas eu tenho, eu menti porque não queria contar pra ninguém!
- Nem pra mim? Mas eu sou sua amiga!
- É exatamente por isso!
- Como assim? Porque eu sou sua amiga você não quer me contar o seu segredo? Que segredo é esse?
- É que eu não quero que você seja minha amiga...
- ...
- Eu gosto de você de outro jeito, eu queria mesmo é que você fosse a minha namorada.
- Sério?
- Sério.
- Caramba... e eu que pensei que você nunca ia dizer isso! Eu quero muito ser sua namorada, ser sua amiga é muito chato!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Considerações

um tempo de considerações e reconsiderações
um tempo sem tempo de apenas abraçar e ouvir o coração bater
um tempo de dizer não
de sentir a explicação longa e dolorida
ser respondida com uma frase curta e aborrecida
um tempo de cartas ao papai noel
um tempo vermelho
um tempo de luzes

um tempo de respirar para não sucumbir nesse mar de gente
um tempo de correções
um tempo de olhar calmamente o tempo que passou
e esperar pelo tempo que virá
os olhos enxergam mais do que querem ver
o coração disfarça o sorriso que quer chorar
um tempo de repartir o pão
considerar e reconsiderar
um tempo de alucinação

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Alguém pariu

Se estava ali, alguém pariu.
Se alguém pariu, em algum momento deve ter tido um pensamento carinhoso, por menor que tenha sido esse tempo.
Se estava ali, sobreviveu.
Que leite tomou, que pão comeu, não é possível dizer.
Não se sabe se a vida veio vindo assim, dura até aqui ou se em algum momento foi diferente.
Não creio.
Se estava ali sobreviveu a sarampos e cataporas, mas se alguma vez teve o braço picado para proteção, não é possível dizer.
Gesticulava como quem conversa animadamente com um amigo, mas estava só.
A roupa solta no corpo magro poderia ser cool, mas era poor.
O cabelo embaraçado, duro.
Os olhos vidrados.
As mãos trêmulas.
Se estava ali, alguém pariu.
Cresceu a despeito de tudo.
Refazer o caminho do homem negro, magro, perdido na rua arborizada em segundos deveria valer como uma oração para que essa vida fosse outra.
Amém.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Boi

um boi na beira da estrada é sempre um boi na beira da estrada
a quem não se pode dizer nada e de quem não se vai ouvir nada
concordo que dele nada ouviremos
mas podemos dizer, sim, claro que podemos
o boi não sabe que vai ser natal
não é natal para os judeus
e o mundo não vai acabar no dia 31 de dezembro
mas parece que sim para algumas pessoas
elas parecem alucinadas, no trânsito, nas calçadas, nos shoppings
o boi da beira da estrada não sabe disso
e, portanto, ele é bem feliz
ele não sabe nem mesmo para quê está ali e também não faz diferença
enquanto ele está ali ele come a grama que está bem embaixo do seu nariz
e se uma fila de bois passa por ele
ele entra na fila e também caminha sem perguntar para onde ou para quê
um boi na beira da estrada é sempre um boi na beira da estrada
ele não sabe de que cor, ano, marca é o meu carro
me olha e me vê
mas não se impressiona, tampouco tenta me impressionar
ele apenas me olha
e eu posso explicar a ele que todo mundo está alucinado porque
vai ser natal
que é rico e glamouroso para alguns
que é pobre e triste para outros e, na verdade, para ele não faz a menor diferença
quero ser amiga do boi e nada mais

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Choveu

Choveu no meu sorriso
Choveu no meu sapato
Choveu no meu cabelo
Choveu na minha bolsa
Choveu no meu coração
Choveu no meu relógio
A chuva chove sem se preocupar
E eu não me ocupo com a chuva
A chuva faz parte de mim
E eu faço parte da chuva
Quando ela vem eu me preparo
Quando eu me preparo ela me surpreende
Às vezes ela passa ao largo
Choveu na minha lágrima
Choveu na minha camisa
Quando me lembro das chuvas em tardes infantis
Eu me vejo sonhando com um futuro de sol
Choveu nos meus sonhos
E eles floresceram
Estavam escondidos lá naquela despreocupação de criança
Ainda chove
Sempre chove
Eu sou parte da chuva
A chuva é parte de mim
Eu e a chuva choramos juntos
Um destino que não tem fim

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eu & os Doutores

Dizem que um fato é sempre lembrado de maneiras bem diferentes por quem esteve envolvido.
Eu acredito.
Dizem também que nossa memória sempre nos trai e que as coisas nem sempre foram exatamente como nos lembramos.
Eu também acredito.
De fato eu sou uma pessoa crédula.
E acredito também que nunca me esqueceria das coisas entre cômicas e absurdas que os doutores e doutoras já andaram me dizendo por aí.

Oftalmologista - São Paulo há alguns muitos bons anos atrás.
- qual é o problema?
- acho que estou com a vista cansada (é assim que falam lá no interior!)
- bom, se ela está cansada é porque tem algum problema, se estivesse saudável não estaria cansada
- ué, mas se estou nessa consulta não é você que tem que me dizer qual é o problema? eu acho que ela está cansada...

Gastroenterologista - São Paulo
- qual é o problema?
- tenho tido dores de estômago e já tive gastrite antes
- você toma café? (sem olhar para mim)
- tomo
- (olhando para mim) você toma café e vem aqui reclamar de dor no estômago? mas é claro que vai sentir dor... vou te pedir uns exames
e blá, blá, blá

Ginecologista - Recife

- qual é o problema?
- o meu fluxo está muito irregular, agora mesmo já são quarenta e cinco dias e
- pode ser gravidez
- não, não pode, não estou em nenhum relacionamento e...
- bom, antes de tudo vou pedir um exame de gravidez, se não for, a gente faz outros exames
- se eu estiver grávida será do espírito santo e aí, nesse caso, não será preciso nenhum outro exame (levantei e  fui embora sem terminar a consulta)

Ortopedista - São Paulo

- ah, é uma cirurgia muito simples! esse joelho vai ficar novo em folha, um day hospital e você sai andando!
A parte do day hospital foi verdade, mas acordei com a perna imobilizada, engessada do alto da coxa até o tornozelo e para andar direito ele esqueceu de mencionar as quinhentas sessões de fisioterapia.

Todo esse registro apenas para voltar ao oftalmo. Dessa vez o mais prático que já visitei em minha carreira de paciente.
Atendeu na hora, sem frescura, fez todos os exames necessários, não alterou grau, constatou que o esquerdo enxerga menos que o direito mas que o grau ficará igual pra não ficar preguiçoso, que a receita é tão simples que nem é preciso conferir. Sejamos práticos. Sim, sejamos práticos!
E ele é vesgo. Sim, eu confio em um oftalmo vesgo, que provavelmente sofreu horrores na infância que não levantava temas como bullying na televisão e resolveu encarar o problema de frente, ou de lado, não sei de que lado. Mas eu confio nele!
Dia desses, óculos novo, oba!!!


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Maria José

Olhou as vitrines, entre apressada e desinteressada.
Não sabia há quanto tempo não comprava uma saia.
Não sabia mais.
Perdera o jeito de entrar, tocar, perguntar, experimentar, gostar, comprar.
Por isso simulava pressa, dava um sorrisinho sem graça.
Podia enumerar as coisas que não tinha tido.
Vestido de festa.
Vestido de noiva.
Vestido de reveillon.
Vestido de formatura.
Camisola de cetim.
Olhou o relógio, ainda tinha tempo.
O tempo esgarçara a sua vontade, mas não a ingenuidade.
Já se prometera tantas vezes que não mais agiria assim e lá estava ela, boba.
As pessoas andam agitadas quando dezembro sinaliza as festas.
Ela tentava disfarçar o descompasso, só ela não tinha para onde ir rapidamente.
Esperava.
Uma vez mais, uma última vez. Quando olhou para a bolsa deixou-se ficar e imaginou tudo o que poria ali.
Viu seu reflexo no vidro enfeitado, nenhuma moça veio lhe incomodar
e por isso deixou-se ficar.
O sapato era bonito. Não viu o preço, mas era melhor pensar que iria machucar,
não tinha seu número.
Melhor despensar.
Riu da palavra nova.
Olhou as vitrines uma vez mais.
Ele não vinha. Já era líquido e certo.
Escolheu uma porta lateral e saiu desejando não ter sido vista.
Pensou em todas aquelas câmaras.
Ficou com vergonha do desconhecido que certamente a acompanhou em seu passeio inútil, triste, feio e totalmente sem sentido.
Quis chorar pelo sentimento novo, mas apenas apressou o passo para não perder o ônibus.
Sempre boba, a Maria José.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Sol cego

Diante do sol, cego.
Diante das trevas, olhando o coração.
Diante dos livros, retina da emoção.
Diante das crianças, incrédulo.
Diante do diamante, metal.
Diante do pai, saudade.
Diante da mãe, compaixão.
Diante do medo, afeto.
Diante do fogão, irritação.
Diante do gato, sorriso.
Diante do cão, misto de novo e saudade.
Diante do belo, pena do feio.
Diante do feio, incompreensão.
Diante do novo, de novo.
Diante do fato, lamento.
Diante do ovo, a clara.
Diante da sede, a ânsia.
Diante da estrada, distância.
Diante do telefone, alô.
Diante da chuva, seco.
Diante do espanto, coração cego de emoção.
Incrédulo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Dezembro

Quando dezembra eu fico inquieta.
Quando começa a dezembrar eu fico animada, feliz, esperando as luzes se acenderem.
Quando vai adezembrando lá pelo dia 10 eu fico triste, muito triste, porque para sempre vou me lembrar que perdi um amigo querido.
Depois passa, já lá se vão tantos anos.
E assim, conforme vai dezembrando, meus sentimentos vão subindo e descendo como na montanha russa.
Lá pelo dia 22 é aniversário da minha sobrinha Roberta. O sorriso mais cheio de covinhas que mora em meus olhos.
E depois adezembra a ansiedade das compras de natal.
O papai noel, a comilança. O calendário que se arrasta para o trabalho, mas que se acelera para outras coisas como carro desgovernado!
Agora quando dezembra dia 24, comemoro o nascimento do menino Jesus e da menina Isadora.
A minha linda japonesinha que agora fará um ano, adezembrando ainda mais a nossa alegria!
Quando dezembra eu me assusto.
Depois me recupero.
Quando dezembra eu me cerco da alegria de ter uma família feliz, duas meninas correndo pela casa, tropeçando em gato e cachorro, sob o olhar meigamente severo do papai.
Quando dezembra pai, eu me lembro das bolas coloridas e imensas que, a despeito de qualquer outro presente que eu fosse ganhar, você gostava de me comprar!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Trovejar

queria só trovejar um verso, mas fez relampejar uma canção
a lua estava pelo meio, mas brilhante como sempre
um aperto no coração espremido entre rios pulsantes
as palavras tropeçando nas pedras desse rio
queria só trovejar um verso, mas choveu forte, respingaram palavras duras
choveu forte sem qualquer prenúncio
um único raio iluminou o caminho e foi o suficiente para avançar alguns metros
a vida é assim mesmo
de pedaço em pedaço vamos completando a jornada


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Fotograma

Ele dirigia um caminhão de lixo, moreno, de boné, entrou na minha frente sem a menor cerimônia quando a preferencial era minha.
Eu não quis voltar a olhar para ele quando fez a curva, porque não queria sentir raiva de um ser humano que é apenas um infeliz exercendo o seu mísero poder.

Eram bonitos eles.
Ela em uma improvável calça cor de limão e camiseta branca apoiada na bicicleta, um pé no chão, um pé no ar. Os cabelos transformados fugindo do rabo de cavalo esvoaçando pelo rosto moreno e sorridente.
Ele suportava o peso da mochila para conversar mais e mais com ela. Parados na passarela da ponte. De onde vinham e para onde iam ninguém precisa saber.

O dono tinha uma aparência lamentável. O cão parecia um príncipe descansado no gramado, sobre o cobertor. Vira-lata. Loiro. Grande. Cara de bonachão. E depois, se fosse uma cadela, seria tudo isso e um pouco mais. Esperando seu destino de vira-lata de mendigo, parecia mais um rei bom.
São bons e fiéis os cães dos desvalidos.

Fotogramas do meu caminho.
Fotogramas da cidade.
Fotogramas que vão compondo o filme da minha retina, que repinta o que me faz sentir.



terça-feira, 29 de novembro de 2011

Véspera

s.f Dia imediatamente anterior àquele de que se trata. A tarde. S.f.pl. Dias que antecedem mais proximamente um fato ou acontecimento: às vesperas da independência, pressentia-se o desfecho iminente.
Religião católica: parte do ofício divino que se celebra à tarde, depois das nonas, hora canônica correspondente às duas ou três horas da tarde.

Mas não é isso o que importa.
O que importa é que uma véspera nunca é lembrada depois que passou.
Nenhum dia é tão intenso de expectativa e ansiedade como uma véspera e tão esquecido na memória futura que se vai construir.


Véspera de casamento.
Véspera de vestibular.
Véspera de um nascimento.
Véspera de Natal e Ano Novo talvez sejam as vésperas que se salvam nas recordações engavetadas porque por si só são os acontecimentos.
Fora isso...
Quem se lembra da véspera?
Se o dia imediatamente posterior é o grande astro do acontecimento.
Véspera do primeiro dia de aula.
Véspera da primeira viagem de avião.
Véspera da primeira estréia.

As vésperas se reúnem em uma daquelas gavetinhas que temos na memória, tantas vezes descritas.
Mas são silenciosas. Não falam nem entre si.
Véspera de coisa boa, véspera de coisa ruim, irmanadas em sua natureza de véspera.

Todo hoje é véspera de amanhã, alguém poderá pensar.
Mas nenhum dia pode se vestir de véspera se o coração não estiver acelerado, enorme, se as mãos não estiverem agitadas, os pezinhos balançando.
Não, as vésperas não vivem de filosofia, elas vivem de ansiedade e quase sempre de alegria.

Eu sou véspera de mim, ansiosa e confinada, alegre e depois resguardada, dia sim, dia não, até a véspera do fim.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

ogoláiD

- Bom, é um tempo de tudo sei.
- Ah é? Eu não sei uma porção de coisas.
- Bom, de cara eu já sei que uma pessoa com menos de 30 anos não fala uma porção de coisas.
- Ah não? E fala o quê?
- Sei lá, fala não sei uma porrada de coisas.
- Sei lá não, porque se é um tempo de tudo sei você acaba de cair em contradição.
- É só uma expressão, dãh.
- Certo. Mas como porrada se encaixa nessa frase? Eu sei o sinônimo de porrada e não me parece fazer muito sentido.
- Aí é que tá! Você precisa intuir o significado da coisa.
- Hum, é para mim será bem complicado, eu tenho intuição para outras coisas.
- Você não pode ficar amarrada nas literalidades...
- Está ficando cada vez pior...
- Mas você está entendendo o que estou dizendo, certo?
- Bom, não estou muito segura, mas acho que estou acompanhando o raciocínio.
- Isso, isso, o que não pode é ser lenta, ficar pensando, tem que sacar na hora e responder de pronto!
- Mas, se eu não entendo tenho que perguntar, certo?
- Nem sempre, se é tempo de tudo sei, faz uma cara e depois procura no Google...
- Ok, mas e se para continuar a conversa eu precisar saber com certeza, não posso perguntar?
- Olha, isso era cool nos anos 80, agora não é mais.
- Como assim cool? O que era cool nos anos 80?
- Achar que quem pergunta tudo o que não sabe é que é bacana, inteligente.
- Complexo para mim.
- Oh, eu tenho mó paciência e você pode treinar comigo... eu não quero pagar mico!
- Está bem, saquei.
- Agora! Viu como não dói? Sacou? B'ora lá treinar!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Teatro de Sombras

O teatro já fez parte da minha vida.
Já fiz parte da vida do teatro.
Da parte boa e da parte ruim.
Da parte boa de conhecer Paulo Autran.
Da parte ruim de esquecer o texto e quase ter um acesso de riso.
E hoje, uma vez mais o teatro cresceu em nossa rotina.
Teatro de Sombras.
No país dos prequetés de Ana Maria Machado.
Estrelando Valentina.
Voz, sombra e para mim pura luz.
Identificar uma sombra entre tantas sombras como figura que te ilumina...
Não tem campainha no início ou aplausos no fim que possam competir com o pulsar do coração.
A escola, às vezes, me obriga a quebrar a rotina e é bom que faça isso para que eu possa sempre ter bons olhos e outros olhos para o que me faz ser feliz: Valentina!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Água de beber

Quando era pequena, leite. Não lembro.
Não lembro de gostar de leite.
Quando era menos pequena, água.
Água da torneira, água da geladeira, água da moringa, água da mangueira.
Água debaixo de sol, quente.
Pra quem está descalça, suada, brincando no quintal, que mal?
Coca-cola.
De garrafa grande pra toda família.
De domingo.
De tampinhas com personagens da disney.
Cuidado ao abrir para não amassar.
Coca-cola - bolinhas rasgando a garganta.
Guaraná para as visitas.
k-suco de uva todo dia.
Uma jarra inteira para meu irmão adolescente.
Sucos de frutas verdadeiras.
Laranja, abacaxi, melancia, limonada.
Leite com chocolate, leite com groselha.
Quando era menos pequena ainda... vinho, vodca, pinga pra caipirinha - tudo baratinho, de turma, de vaquinha.
Quanto menos menos pequena... vinho do porto, cerveja premium, vodca importada.
Água de coco.
Água quase nunca, mas sempre gelada, sempre com gás.
Água.
Água sem final.
Quando era pequena, leite.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Eu leio

E sobrevivo e sobrevôo porque leio.
Não lembro de mim sem ser um ser leitor. Pequena na constituição, mãos grandes e magrelas e fortes o suficiente para segurar livros.
Eu leio.
Eu passo pelas vitrines e posso resistir até mesmo a um sapato e uma bolsa.
Mas dificilmente eu posso resistir a um livro.
Leio a resenha na revista.
Leio um pouco mais na internet e fico a um clique pulsante de mão e coração para comprar.
E esgotado é a palavra que mais perturba nesses momentos.
Livros são sempre caros. De queridos, nunca precificados. A racionalidade fica para depois.
Sempre há uma listinha que me segue, no excel, no celular, no que a cabeça dá conta de armazenar.
Nomes. Capas. Histórias que sei começar mas não sei como acabar.
Na livraria passo os olhos pelas prateleiras.
Não resisto em perguntar.
A moça é mais que simpática, é hábil para encontrar: Grotescas - Natsuo Kirino.
Não é um livro barato, mas não posso me separar dele.
Ele me espera na mesinha de cabeceira, enquanto termino E depois, de Natsume Soseki.
E se me perguntar com que personagem eu poderia me identificar eu posso dizer que acabei de encontrá-lo, ali mesmo em E depois, na página 192 - quando Natsume descreve Daisuke:
E, pela força do hábito, sentia-se arrasado se ficasse um único dia sem ler ao menos uma única página. Por isso, houvesse o que houvesse, sempre procurava dar um jeito de manter intimidade com as letras impressas. Às vezes, tinha a impressão de que seu único e verdadeiro talento era o de leitor.

Eu apenas trocaria uma única página por uma pagininha...

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Desalento

Amanheceu, mas já era de noite.
Terminou de ler o livro, mas não lembrava do início e, portanto, não sabia se a história fazia sentido.
Apaixonada por sorvete de limão pediu um crocante de chocolate.
Ficou o dia todo em casa e preferiu caminhar a noite.
Não, não é perigoso quando se é invisível.
E era assim que se sentia.
Sentia-se invisível desde que fora deixada de lado. Deixada pra trás.
Dizia sempre com todas as letras e com a boca cheia que cada um é absolutamente responsável por tudo aquilo que lhe acontece, mas e agora? Fazia o que com essa filosofia barata.
Pagou tão caro pela consulta com o médico recomendado para ouvir dele que tinha que mudar de vida e esquecer o que havia passado.
Que isso não é fácil, mas com o remedinho que lhe receitaria tudo seria uma fase de transição.
Apenas isso.
Amanheceu, mas já era de noite.
Sonhou tudo de novo.
Não via a menor luz no fim do túnel e que importava?
Se não sabia nem mesmo onde o túnel começava...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Trocado

- Tem um trocado?
- Tenho
- Então me dá
- Não posso
- Por que?
- É o único que tenho e vou tomar um café, não como desde ontem
- Nossa, mas o senhor tá de terno
- É, mas procurando emprego há meses
- Sério?
- É, e andando a pé porque nem para o ônibus e metrô eu tenho
- Mas gente de terno anda de carro
- Você que pensa
- Você não tem carro?
- Tenho, mas não tenho dinheiro pra por gasolina
- Põe álcool
- Também custa dinheiro...
- Puxa, que chato
- Toma o trocado
- Não, pode ir tomar o café
- Melhor não, daí vou querer fumar e não tenho para o cigarro
- Peraí, vou pedir para aquela mulher ali, se ela me der um trocado eu tomo um café com você...

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Cotidiano resgatado

Saio apressada para o almoço. Frio em plena primavera. Tempos esquisitos.
O sol com cara de preguiça, sem vontade de esquentar me obriga a andar com mais vagar e observar.
Duas moças estão sentadas em uma muretinha baixa na beira da calçada.
Uniformes de quem limpa, serve café.
Uma delas usa uma melissa transparente.
As unhas dos pés bem pintadas de um roxo colorido, que ultrapassa o transparente do calçado.
Impossível não olhar.
E não lembrar que sou da geração das primeiras melissas.
Transparentes.
A minha substituiu minhas havaianas amarelas no verão que me deixava caminhar pela avenida paulista, um cinema e um sorvete.
Não tenho mais melissa.
Não compro mais melissa.
Não me ocorre transpirar o pé em uma sandália de plástico, mas tenho um carinho enorme pela lembrança que ela carrega de mim mesma e de minha juventude despreocupada.
Almocei.
Quando voltei a moça da melissa não estava mais e a companheira explicava no celular:
- meia noite do dia 11 não é mais dia 11 é dia 12, então...
Não pude ouvir o resto da conversa, mas devia ser deveras interessante!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Férias

Abasteceu a alma no supermercado.
Andava tão sem paciência.
Ouvia sem prestar atenção, fazia que sim com a cabeça sem saber se era mesmo sim que queria dizer.
Abasteceu o coração na banca de revistas.
Não queria mais protestar sobre nada nem assinar nenhum abaixo assinado.
Caminhava sempre pela mesma calçada, os mesmos buracos, as mesmas lixeiras fora de lugar e agora, agora umas bituqueiras.
Abasteceu o fígado no bar.
Vodca.
Andava tão sem amigos que a cerveja não fazia sentido.
Não queria mais enviar um e-mail, uma mensagem pela rede social, um sms marcando um almoço que nunca ia acontecer.
Abasteceu as mãos com um lápis e um poema, os pés com um cobertor quentinho, mas não pesado e resolveu tirar um sabático de si mesmo.
Abasteceu a alma de seu cansaço e agora espera reintegrar-se como uma lagarta que saindo do casulo se incorpora ao grupo de devoradoras de folhas.
Depois das férias.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Manga

Manga suculenta.
Manga de camisa.
Mangueira para lavar a calçada.
Maneira de sentar.
Madeira na beira da estrada.
Madureira bairro que não visitei.
Madura a manga mancha a manga da camisa, agacha, abre a torneira, pega a mangueira que dá pra lavar.
Madeira na beira da estrada é tronco caído, dá pra sentar e esperar carona pra Madureira.
Manga suculenta.
Manga que... voglio mangiare e nada mais!

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Límpido

Apenas sorriu.
Tinha os olhos claros como águas límpidas.
O rosto pálido que conseguia um tom rubro quando envergonhada.
O lábio fino como não gostava.
Apenas sorriu.
Recolheu as mão magras de dedos longos no colo aquecido.
Não sabia muito bem como se comportar.
Nunca soubera, tímida que era.
As meninas não gostavam dela.
O caderno era organizado, mas não enfeitado.
Os trabalhos eram corretos, nunca exagerados.
Os lápis sempre muito bem apontados.
O discurso era na medida exata para não ser de menos para o professor nem demais para os colegas.
Apenas sorriu.
Depois arriscou esticar o pé porque já estava há muito com ele na mesma posição.
A canela fina e branca espiou por baixo da barra da calça.
Sem nenhuma perspectiva de sair do lugar.
Tinha os olhos claros.
Tinha medo da mãe mais do que do pai.
Ela chegaria a qualquer momento. O pai não mais.
A diretora iria fazer cara de espanto ao explicar.
A mãe cara de ódio para encarar.
Apenas sorriu.
Nem mesmo ela sabia o quão má podia ser. E de repente era assim.
A escuridão também pode ser límpida?
Podia ser um tema para a próxima redação.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Entorpecido













Entorpecido.
E outra palavra não tinha para descrever como se sentia.
A mão pesada.
O coração leve.
A perna tensa.
O fígado comprimido.
Entorpecido.
E outro mundo não havia além daquele que já conhecia.
Um olhar de nuvem.
Um sol de rascunho.
Um sono profundo que adiara.
Entorpecido.
E outro sentimento não tinha para curar aquela dor.
Recolhido.
Traduzido.
Confundido.
Tinha ido.
Tinha sido.
E mais não era do que um sonho adormecido.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Infortúnio

Quis o infortúnio - acredito piamente na inocência do destino - que no dia 26 de julho de 2011 Haku nos deixasse.
Infortúnio: s.m. Fortuna adversa, desgraça, infelicidade: viver no infortúnio. Fato, acontecimento funesto.
Haku: cão da raça whippet, predominantemente branco, tigrado, 7 anos completados em 22 de janeiro de 2011.
Pois quis o infortúnio que saísse pelo portão da casa onde era visita, na cidade em que visitava vez ou outra e que nada do que foi feito resultasse em sua volta.
Nem as caminhadas, nem os folhetos, nem os anúncios, nem a internet e seus asseclas. Nada, somente pistas falsas.
O infortúnio é inimigo do destino.
Destino: s.m. A fatalidade a que estariam sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo; fado; fortuna: ninguém é senhor do seu destino.
O infortúnio faz acontecer de maneira tal que toda a culpa caia sobre o destino.
Mas eu acredito piamente na inocência do destino.
Já acreditei também que Haku pudesse voltar.
Lembro do seu olhar, dos seus pulos na hora de passear, do jeito de balançar a cabeça me pedindo pipoca.
A guia vermelha, a guia verde, ficaram penduradas como os enforcados das histórias que decorei para as provas escolares, sem vida.
Quis o destino que o infortúnio levasse o primeiro cão que tive, eu que cresci sem eles, aprendi muito depressa que, sem eles, a vida tem menos graça.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Nome de rua

Sonhava ser nome de rua.
Sonhava com coisas tão bobas.
Ficava pensando que se salvasse alguém de um incêndio, um bebê, uma senhorinha, poderia ter sua foto no jornal e depois virar nome de rua.
Sonhava com isso.
E ficava pensando que coisas aquelas pessoas tinham feito para terem seus nomes nas placas da rua.
Um era médico que ele sabia.
O outro era fundador da cidade.
Um dos nomes mais esquisitos tinha sido um padre alemão que ensinava ler e escrever além de rezar.
Sonhava ser nome de rua.
Talvez se fizesse um grupo bem grande de amigos e depois se candidatasse a vereador, depois poderia ser nome de rua.
Confessava esse sonho a qualquer um que lhe desse atenção.
Normalmente a mãe.
A avó também, mas essa mal ouvia, nem devia entender o que era tudo aquilo.
Um dia teve um incêndio enorme na loja de tecidos na rua principal da cidade.
Estava do outro lado da calçada.
Não duvidou, entrou, ajudou as moças a saírem, voltou e salvou uma peça inteira de tecido desses que se usa para fazer vestido de noiva.
Ficou com o cabelo sapecado. Com o braço e as mão queimadas.
Esperou uma notícia no jornal. Nada.
Sonhava ser nome de rua, outro sonho não tinha.
Viver pelo simples pode ser mais doloroso do que viver pelo glorioso.
Quem define?

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Aceitação

Era tão seguro de si que nenhuma mudança mudava nada nele.
Era valente. Sempre cara de contente.
Não tinha dia de chuva ou sol ardente que tirasse aquele sorriso daquela cara de cara polivalente.
Era até de desconfiar.
Não tinha essa de chefe zangado, não tinha isso de insubordinação.
Era um cara durão.
Nem que o time perdesse, nem que o pneu furasse, nada que atrapalhasse os outros parecia interferir na sua sensação de que nada muda nada se você mesmo não deixar.
Era espantoso.
Era chato até.
Era tão seguro de si que quando se deu conta, tudo o que tinha engolido, porque santo não era, começou a brotar aqui e ali.
Levou um susto.
Era tão seguro que era sozinho.
Não soube o que fazer.
Uma mudança começou a se desenhar, mas não deu tempo de ver no que ia resultar.



terça-feira, 1 de novembro de 2011

Os mortos

Só estão mortos os que não viveram para amar.
Aqueles que foram surpreendidos pelo fim sem ter um bicho de estimação andando pela casa.
Só estão mortos aqueles que não se aventuraram a aprender a andar de bicicleta, de skate, de patins.
Aqueles que nunca tomaram chuva.
Aqueles que nunca tomaram um gole da cerveja ainda quente.
Só estão mortos aqueles que não roubaram um beijo, aqueles que não rabiscaram um poema mesmo que em pensamento, escondido no banheiro.
Só estão mortos aqueles que nunca passaram vergonha.
Aqueles que nunca parabenizaram pela gravidez uma mulher fora de forma.
Só estão mortos aqueles que nunca trocaram o nome de alguém.
Aqueles que nunca tiveram um desafeto.
Aqueles que nunca fizeram careta em frente ao espelho.
Só estão mortos aqueles que não olharam com carinho um avô, uma avó, mesmo que de um amigo.
Aqueles que nunca foram verdadeiros e esconderam momentos de raiva.
Momentos de raiva são vida da vida que não queremos ter.
É luta pura e só estão mortos aqueles que apenas sorriram, porque as lágrimas lavam a alma.
Só estão mortos aqueles que não deixaram uma história qualquer para contar.
Só estão mortos aqueles que passaram pela vida com indiferença.
Só estão mortos os que não viveram para amar.
Uma pessoa, uma árvore, um bicho.
Só estão mortos os que não deixaram raiz.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O meu 31 de outubro

Gosto de pensar que já passei por 47 dias 31 de outubro.
Pelo menos nos primeiros 40 essa coisa de dia das bruxas era só parte da cultura americana cultivada nas escolas particulares de inglês.
E foi daí que de repente eu me vi ajustando fantasias nas meninas e orientando o passeio pelo condomínio para o fatídico gostosuras ou travessuras.
Mas o que gosto mesmo é de entre tantos escolher um especial e relembrar.
Pois eu me lembro do dia do casamento da minha amiga Marianne.
Era uma sexta-feira.
Era no Rio de Janeiro e eu fiz todas as escolhas erradas possíveis!
Escolhi ir de carro, não de avião.
Escolhi passar no escritório de manhã.
Portanto, sai atrasada do escritório, de casa, desconsiderando que o Rio de Janeiro em uma sexta-feira tem trânsito igual São Paulo.
Preocupadíssima com o transtorno que eu iria causar, seguimos e seguimos.
Direto para a casa da amiga Rosely, com quem iríamos para a igreja.
Outras considerações: Marianne avisara que não atrasaria a entrada na igreja, no que sempre a apoiamos.
Coisa mais chata essa de noiva atrasar! Tem o dia todo só para pensar na cerimônia...
Rosely grávida da caçula, madrinha!
O meu par se enroscou no nó da gravata, Nuno, acho que nunca agradeci seu nó!
Não sou menina de maquiagem, mas comprei coisas especiais! Depois de um tempo foram descartadas porque até essas coisas caras tem data de validade. Não usei.
A estrada da Floresta da Tijuca é linda, quando pode ser vista sem ter que segurar o coração na mão por mais arregalados que os olhos estejam!
E o desconforto daquele barrigão lindo, todos atrasados por minha culpa, minha inteira culpa!
Chegamos com a linda noiva se preparando para entrar.
Entramos pela porta lateral.
Igreja linda, noiva linda, uma madrinha linda!
Esse é o dia 31 de outubro que escolho como o mais especial entre os meus 47.
Não me lembro em que ano foi, mas não importa, no meu coração foi o ano passado!
Ser feliz nada mais é do que ter histórias para contar, mesmo que você não esteja lá muito bem na foto!

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Rotina


A gata tem rotina.
A gata tem nome: Dora.
Dora Aventureira.
Por volta das seis horas da manhã mia para entrar e dormir quinze minutos aos meus pés.
Quando precisei acordar as 5h30, não sei como, as 4h20 ela já estava em seu ritual de "querer entrar".
A gata, depois que levanta dos meus pés, quer comida.
O pote pode até estar abastecido, mas ela só come a ração que se põe enquanto ela observa.
Fresquinha. A comida, posta assim, fica sempre mais fresquinha.
O pote fica sobre um balcão.
Era uma precaução de quando tínhamos o cão que adorava a ração dela.
Pois ela prefere ser alçada até lá...
A gata tem bons hábitos como beber água. Diferente de mim.
Mas a gata só bebe água corrente e por isso espera que alguém abra a torneira do lavabo do corredor.
Às vezes espera no banco em frente, às vezes mesmo na pia onde nem a vemos pela iluminação.
Mas a gata mia.
A gata mia um miado manhoso.
Depois de tudo, até mesmo de usar a caixinha de areia, a gata vai passear.
Inspeciona o quintal.
Vaso por vaso vai experimentar. Arranha, deita, se estica.
Escolhe um canto e espia o portão.
Depois pula o muro e então não sabemos mais como a rotina segue.
Quando volta, a gata mia no alto do muro.
Alguém tem que pegar.
Alguém não, um adulto, porque é alto e... ela mia até o chefe da família a salvar.
No corredor entre a sala e a cozinha se esparrama como a rama se esparrama pelo chão.
Descansando.
A gata deve ir longe, de telhado em telhado, de muro em muro e volta dona de si.
A gata tem rotina.
Tem brinquedos divertidos.
E um rato peludo destroçado preferido.
A gata adora uma sacola.
A gata adora deitar no teclado do computador.
A gata gosta de se ajeitar em nosso colo sozinha, não precisa ajudar.
A gata mia quando a poltrona que gosta está ocupada com livros, brinquedos, uma bagunça de lar.
A gata tem nome.
A Dora explora a nossa vida e sempre nos faz abrir um sorriso com o seu rebolar.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

How

O silêncio faz a palavra recolher-se sem alarde.
Ele impera, domina sem imposição.
O silêncio não precisa de coroa, de trono, de nada além de silêncio.
As palavras se atropelam.
As palavras se confundem.
As palavras se perdem.
As palavras nunca andam sozinhas.
Mesmo as más sempre estão acompanhadas.
As palavras transformam um pequeno tijolo em palco.
As palavras buscam a luz como faz o girassol.
O silêncio acompanha e quando decide que é seu momento
não tem palavra que o demova dessa ideia.
As palavras estão por toda parte. Visíveis.
Quem consegue enxergar o silêncio não tem palavras para descrever.
How can we find the silence?
As palavras não querem contar.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Passando a limpo

Se eu voltasse à fazenda hoje eu desceria logo depois de Gália, nas cruzinhas.
Sairia correndo sem olhar pra trás para chegar primeiro que minhas irmãs mesmo estragando a surpresa.
Sob gritos de protesto.
Pararia na "calça comprida" para descansar. Um tronco de árvore que mais parecia um banco e que pela formação dos dois galhos lembrava uma calça comprida.
Mas antes de minhas irmãs me alcançarem eu já estaria de fôlego recuperado e partiria novamente em disparada.
Depois do beijo do avô e dos afagos da tia iria para a cozinha verificar se o bolo de milho - o melhor que já comi em toda a minha vida - estava esperando por mim. E se não, faria a encomenda.
Se eu voltasse à fazenda hoje, logo depois de descalçar os sapatos de viagem eu iria surrupiar uma espiga de milho, uma única, e jogar aos porcos, sem atinar que era maldade pura incitar uma disputa considerando que alguns mal podiam se levantar.
E depois iria olhar o Pombinho tomar banho. O cavalo branco xodó do avô.
E espiar as casas da colonia.
E sentar na sala tão limpa e tão quieta e pensar que aquele silêncio podia me devorar e por isso eu não podia estar ali mais do que cinco minutos.
Se eu votasse à fazenda hoje talvez eu encontrasse lá pessoas queridas, que deixaram marcas no meu coração.
Talvez encontrasse a minha tia Cida, a tia do bis, do jeito carinho de lidar comigo, com os meninos e com o meu tio Nelson que me deu o apelido mais apropriado que já tive até hoje: mosquitinho elétrico.
Se eu voltasse à fazenda hoje eu sairia nessa foto com um sorriso bem maior!
E, claro, ia perguntar pro Luis Otávio porque ele ainda não tinha relógio?

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pinceladas de uma segunda-feira

Preparar o espírito para o que nos espera, por menor que seja o que nos espera, nos torna grande.
É uma constatação. 
Mais fácil de fazer quando o coração está tranquilo e a data da TPM ainda está restrita ao aplicativo do celular.
Quando a segunda-feira chega sem dó nem piedade.
A chuva que a meteorologia previra só caiu no final da noite e onde eu estava, em conta contas. 
Fui trabalhar de vestido preto, em uma sala em obras. Passei o dia limpando os traços brancos que minha pressa ia deixando na saia rodada.
Saia do vestido. Eu não tenho saias. E adoro saias. Nesse verão hei de ter saias.
Equipe. Gente que vai, gente que veio.
Tudo ao mesmo tempo e agora.
Viver é uma eterna adaptação.
Quando atendo o telefone apesar do número identificado, é uma oferta de não sei o quê.
E quando desconfio do bloqueado, é a voz doce da minha querida amiga.
Uma segunda-feira de peças pregadas.
A festinha de aniversário é à fantasia.
Já não servem mais a de abóbora, a de esqueleto, mas nem que servissem...
A ideia da caçula é ir fantasiada de gato preto, afinal, toda bruxa tem gato preto.
A lógica que vence meu cansaço.
- Porque não tenho camiseta preta?
- Preto não é exatamente cor de criança
- Não concordo, se preto é cor e criança gosta de cor, tem que ter de cor preta
Camiseta comprada. Falta uma pluma preta para ser a cauda.
Uma mensagem no celular chama para almoçar.
Quero ir mas dependo da agenda que depende de...
Variáveis que não controlamos.
Faróis que não controlamos.
Temperatura que não controlamos.
Li mais uma parte do livro. Ler livro como trabalho é uma variável que quero sempre controlar.
Avancei no relatório.
Quando a segunda-fera chega sem dó nem piedade, é melhor ter pensado nela com carinho já no domingo.
Ufa, sobrevivi!

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Festa

Olhou e não viu
Olhou de novo e tudo pareceu reluzir
Nunca se sabe onde os sentimentos se escondem
Nem dentro da gente
Nem fora
Nem além
Festa Junina
Festa da escola
Festa na rua
Festa - quem define a festa é o estado de espírito
Um estado inabitado
Olhou e não viu
Olhou de novo e tudo pareceu reluzir
Aproveitou a luz
Depois perdeu
Buscou outras festas
Lembra do nome
E de nada mais

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Pode xingar?

Quando eu era criança eu xingava.
Longe dos ouvidos da minha mãe, claro.
Porque se tem uma coisa que a propaganda não conta é que havaianas, além de não soltar as tiras, voa!
Longe dos ouvidos do meu pai também, e de seus olhos azuis vigilantes.
Eu xingava de bobo, de feio, um dos meus xingamentos preferidos e que eu achava o máximo de tão ofensivo era: sua pessoa sem graça!
Eu xingava de tonto.
Xingava às vezes de burro, mas eu tinha pena do burro e então só usava isso quando a briga era feia, composta por um repertório maior de xingamentos e eles iam acabando.
O repertório não era tão grande.
Era disso que eu xingava. Nada mais.
Hoje em dia eu tenho vergonha de ouvir os xingamentos que as crianças usam.
E não adianta olhar espantada para os pais ou os adultos responsáveis porque eles parecem surdos-mudos, mas quando abrem a boca, muitas vezes falam igual.
Eu só arregalo o olho.
E essa criançada toda tem ido parar em grandes empresas, em agências de publicidade e não raro usam essas palavrinhas para expressar uma coisa boa do tipo: nossa, essa campanha ficou do...
Não posso escrever, mas tenho certeza que todo mundo foi capaz de completar.
Sou antiga.
Eu para mim mesma diria: sua pessoa sem graça! Se incomodando com o linguajar dos outros, sua fora de época!
É, eu sou.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Álibis


E o que aconteceu naquela quarta-feira foi que saí desavisado
de que choveria e não levei a capa nem o guarda-chuva. Aliás,
esqueci-me até do chapéu.
Saí atrasado, apressado.
Queimei a mão na caneca de café, pisei no rabo de Aristodemo,
que como sempre, dormia na porta da cozinha.
A verdade é que não dormi bem. Tive pesadelos, fui picado por
pernilongos.
E como se não bastasse a noite infernal, o dia! Tem muitas
goteiras na repartição, eu não sabia se trabalhava ou se acudia os
móveis do aguaceiro.
Não pode me poupar? Vou para casa, tomo um banho e volto.
Como naquele dia, saí sem o guarda-chuva e preciso tirar essa roupa
molhada.


Faço questão de dizer que não sei de nada. Vim porque fui
obrigada.
Naquela quarta-feira eu fiz o que faço todos os dias. Sou uma
mulher de respeito, não fico de lá para cá.
Levantei cedo, fiz o café, arrumei a mesa e fui lidar no quintal.
Vi quando ele saiu porque Aristodemo gritou. Ele sempre pisa
no rabo do bichinho.
Eu sabia que ia chover porque tinha escutado no rádio. Por
isso nem fui para o tanque, fui fazer uns consertos nas roupas. Pregar
botão, arrumar barra, essas coisas.
Não posso ajudar. Não saí de casa, eu tenho medo de chuva.


Gozado, eu não me lembro bem daquela quarta-feira. Mas
também, não sou um homem de ficar recordando, observando,
guardando detalhes.
Sei é que choveu muito ali pelas dez da manhã.
Disso eu recordo porque era a hora que eu ia ao Dr. Veiga e
nem pude sair. Meu dente está sem arrumar até hoje.
Fiquei na sala fazendo contas, sabe como é, hoje em dia é tudo
na ponta do lápis.
Pois é isso, fiquei em casa o tempo todo.
Almocei. Sentei um pouco na varanda e fiquei olhando a
chuva.
Passei o dia olhando a chuva.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Tempo perdido

ah perdeu algumas horas que o tempo lhe reservou para perder mesmo
perdeu olhando uma margarida
tão branca no meio de mato tão seco
perdeu olhando a avó esperando pelo neto
quem mais lento que o olhar que perdia?
perdeu algumas horas
folheando revistas na banca de jornal
se a banca é de jornal porque as revistas abundam?
perdeu o trem porque demorou comendo
devagar o pão na chapa com café quentinho
perdeu algumas horas porque trocou
o pneu da moça que saiu com o carro do pai
ah perdeu algumas horas que o tempo lhe reservou exatamente para isso mesmo
para perder
deixar escorrer
deixar a formiga passar
deixar a tia contar toda a história de novo daquele moço que arruma panelas
deixar a jaboticaba amadurecer
deixar o vento dessarumar o jornal
ah perdeu algumas horas escutando o garoto do vizinho aprendendendo violão
e porque era exagerado essas horas não foram mais que minutos
e minutos assim o tempo separa na vida de cada um
pra que ela floresça e cresça sem piedade
das horas que tanto se quer economizar
pra que?

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Bonito, né?

Terno bem cortado, sapato bom.
Mas acha que bituca de cigarro não é lixo e joga no chão.
Bem em frente ao prédio onde trabalha.
Prédio bonito. Todo envidraçado, colunas de aço escovado.
Mas não cumprimenta o porteiro quando chega.
Nem se preocupa em ajeitar o carro na vaga.
Deixa assim mesmo, torto, mesmo ocupando duas vagas.
As unhas bem cuidadas, parecem esmaltadas de tão limpas.
Mas não dá seta quando vai mudar de faixa.
E, falando em faixa, não respeita faixa de pedestre.
Quem olha nem imagina.
Não se sente pedestre nunca e por isso abomina as esquinas.
Não deixa ninguém entrar e qualquer movimento é gatilho para acelerar.
Na reunião fala inglês, espanhol, bom português!
Mas não agradece a água e o café, nem sabe que a moça chama Maria Inês.
Bonito.
Namorada bonita.
Carro bonito.
Apartamento bonito, minimalista.
Mas feio, de hábitos muito feios.
A mãe nem imagina, mas a babá bem que tentou avisar!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Balão

Balão de ar
Balão de água
Brincadeira de criança
A criança que fui
A criança que sou
Quando chove eu me lembro da enxurrada
E da mãe apavorada pra não deixar a gente se molhar
Pirulito e brigadeiro
Bala e goma de mascar
Peteca e pião
Carrinho de rolemã
A goiaba meio verde comida assim, direto do pé
A água que se bebia na torneira do quintal
O sol que escaldava os ombros saltitantes
Balão de ar
Balão de água
A criança que fui
A criança que sou
A criança que guardei
A criança que nunca parou de se encantar
Um dois, feijão com arroz
Mãe da rua e esconde-esconde
Esconde que eu quero encontrar
Em cada verso que eu ainda puder cantar
A menina magrela e sardenta
Que coreografa a vida com palavras que dançam para não se sentirem sós

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Juarez

e o que sabia de si mesmo era tão pouco que nas horas vagas vasculhava tudo dentro de si
e as horas vagas que tinha eram tão poucas que vasculhava no tempo os minutos que compunham horas escassas
e o que encontrava na arqueologia da vida sem graça era guardado como tesouro
e por isso falava sozinho quando almoçava sozinho no restaurante barulhento e disputado na fábrica
e porque falava sozinho era cada vez mais sozinho porque levantava suspeitas de que não era lá muito certo das ideias
e o que sabia sobre os outros era quase nada porque quase nada falava
absorvido
movimentos iguais
peças de peças que fariam uma peça final, sempre igual e para ele tão sem importância
o quarto nu da pensão
o jantar que era quase sempre pão
a tv com tão poucos canais
e o que sabia de si mesmo era tão pouco que não carecia explicar
vasculhava uma história dentro de si
vagueava nas horas que custavam a passar dos domingos de sol
absorvido
consumido por um destino que não tinha vontade de alterar
prazer, Juarez
mas tanto faz, tanto fez

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Indolência

A primavera é uma morena indolente, que pega os dias de um inverno cansado e os entrega ao verão.
Com sedução, com indolência.
Dias de primavera com sol preguiçoso, com vento que sopra em qualquer direção.
Dias que convidam a sorrir e prestar atenção.
Almoço sem fome, caminhada sem pressa.
O desfile dos grupos que saem para almoçar.
O quase uniforme das calças pretas com suas camisas brancas. Algumas alinhadas, outras em desalinho com o sobrepeso.
Saltos improváveis em joelhos que não se sustentam.
Quase todos os cabelos são loiros. Ou castanhos? Já se confundem no cruzar das ruas.
Quase todos os ternos são mal cortados e os ombros desaparecem na esquina das costuras apressadas.
A calçada desafia saltos finos e os bicos dos sapatos engraxados.
Os buracos são trapaceiros.
Os sorvetes vem derretendo a dieta que não se cumpriu.
A saia é bonita, mas curta demais.
O casaco é bonito, mas a cor não conversa com nada mais do que decidiu trajar.
Trajar é uma palavra perigosa.
A primavera é uma morena indolente.
O meio do dia pode mudar nossa direção.
Olhar a vida com indolência pode nos ensinar paciência e sim, eu preciso muito dessa lição!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

SIC

- ô Virgulino, o teu pai te boto esse nome porque ele gostava dessa coisa de escrever, ponto, vírgula, essas coisas?
- magina, que o pai nem sabia escreve lá ia sabe isso de vírgula?
- então é por causa de que? tinha um vô com esse nome?
- não, sei lá, acho que era nome de moda
- moda, que moda? se fosse de moda tinha um monte de Virgulino da sua idade né, não?
- ué, mas eu não nasci aqui, nasci lá no sertão, lá deve de te um monte
- será?
- ah num sei, morre muito minino pequeno, vai ve no cimiterio tem um bucado!
- hum
- e por causa de que voce tanto quer saber do meu nome? um cabra que chama Marinaldo!
- pelo menos eu sei explicá, minha mãe Marineuza e meu pai Reinaldo, junto os dois Marinaldo!
- gosto não, por isso lá em casa os menino tudo chama Pedro, João, José e Tereza - é nome feio mas todo mundo sabe escreve e falá
- feio nada, é tudo bunito, agora tem é um monte de rico que chama esses nome, é só que é tudo de dois, é João Henrique, Pedro Paulo, tudo assim
- ah eu simplifiquei tudo
- melhor, eu só tenho minha Maria Cláudia - Maria da minha santinha mãe do meu Senhor Jesus Cristo e Cláudia de uma patroa linda que tive lá em Santos...
- é?
- a Gisleine nem sonha que é isso, mas é...
- ó só Marinaldo, eu gosto é de cochilar depois de comê não de fica de papo, agora já tá quase na hora de voltar
- ié... e com esse sol, mas Virgulino, escutá só
- não, num quero escutá mais nada não, deixa eu descansá home!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Do's & Don'ts

Eu não falo palavrão.
Eu não faço gestos obscenos.
E eu não tenho o poder da síntese.
Portanto, concluo que não me comunico com outros motoristas enquanto dirijo e, não raro, eu quero me comunicar.
Segunda conclusão: eu poderia criar um intercomunicador já que temos tanta tecnologia disponível.
Wi-fi, tablets, projeções em 3D, painéis interativos, bluetooth, rfid, a lista não tem fim.
Eu poderia criar um dispositivo que me permitisse falar o que quero enquanto dirijo e esse recado seria projetado para o motorista do carro com o qual quero falar... No painel, em um leitor no centro do volante, no espelho interno e aceito sugestões.
Eu até poderia praticar e aprender algumas abreviaturas comumente usadas na internet além do vc, 4u, para ser ágil.
E o que eu teria para dizer? Posso listar, ainda sem síntese nem abreviações:
- o que seta significa para você?
- seu farol alto está ligado, piscando para mim, me conhece? ou pretende que eu te explique que não sairei para o canteiro central, que vou terminar de ultrapassar os três caminhões, das três pistas de rolagem, que andam a mais de 90 km/h dentro da maior velocidade permitida na rodovia.
Nossa, essa nem com síntese, nem com abreviação, só em uma palestra para motoristas idiotas.
Idiota não vem a ser exatamente um palavrão.
- Não fique nervoso, o pedágio se aproxima e há redução de velocidade. Eu vejo as placas, você não? Que perigo!
A única frase bem curtinha e bem maldosa, já que eu sei ser bem má quando quero seria: BEM FEITO.
Talvez com um canhão de luz colorido? No céu?
Daria pra ver de qualquer parte...

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

maçã mordida












sem pai, sem mãe
com amigos
com inimigos
com uma cabeça
que poderia ser a de um dragão
um homem manso
com quem nunca se encontrou
uma fera de homem
que sempre se reclinou
não está no sorriso
não está na lágrima
está em um tempo que transformou
sem pai, sem mãe
aprendeu a enfeitar letras
aprendeu a viver sem letras
aprendeu e dividiu
sem pai, sem mãe
que os postiços
lá serviram pra alimentar
de um amor que amor
bem que foi
se foi
sem pai, sem mãe
um cara que só mordeu
um pedaço da maçã

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Provas de Vestibular

Agora que tenho uma adolescente de doze anos preciso de uma auto avaliação.
Chegar aqui significou fazer a primeira prova do vestibular.
Estudar, pesquisar, experimentar coisas diferentes. Ficar sem dormir, conversar com outras pessoas o tempo todo sobre o mesmo assunto.
Contar o que senti.
Contar o que não senti e deveria ter sentido.
Exercícios importantes que deixei de fazer.
Exercícios inúteis que refiz muitas vezes.
E não adianta aproveitar tudo isso para a prova que ainda tem nove anos porque há perguntas diferentes.
Perguntas que podem ter duplo sentido nas respostas.
Pegadinhas.
Agora preparo-me para a segunda prova, a de aptidão, habilidade, específica ou seja lá que nome essa prova tenha agora.
Passei na primeira fase. Passei? Ainda não sei em que classificação, mas passei, sim.
Rumo a segunda.
Sempre fui boa aluna, mas provas, vestibulares sempre me deixam um pouco aflita.
A sorte é que posso fazer a prova em dupla e escolhi e fui escolhida pelo melhor "carinha" dessa classe - a vida.
Vamos em frente! A banca está sempre atenta!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Tio

Assombrado por seu tempo não sabia mais como se comportar.
Quando tentava ser moderno, alguém sempre olhava torto, como se fosse um pecado.
Quando tentava contar as coisas do seu tempo, alguém sempre balançava a cabeça como quem diz essa história de novo?
Usava e-mail como ninguém, mas as respostas começaram a rarear e então descobriu que as pessoas não tinham mais tempo para esperar pela resposta, por isso se falavam por um quadradinho chamado de mensagem instantânea e mal aprendeu a lidar com isso, ninguém mais estava online.
Estavam todos nas redes sociais.
Chegou. Meio atrasado, mas chegou.
Primeiro só observou e depois arriscou os primeiros posts.
Eram sempre longos por mais curtas que fossem as ideias porque escrevia todas as palavras por inteiro.
E deixou de entender muita coisa porque não entendia as abreviaturas, mas não se entregou.
Fez novos amigos, encontrou antigos, a sobrinhada toda logo curtiu uma foto e ele se empolgou.
Um dia fez uma viagem espetacular a Nova Iorque, visitou uma feira de tecnologia e se fotografou em um painel interativo.
Postou usando o celular. Incrível. Estava tudo bem até que o primeiro comentário apareceu: ai que legal tio, como tá aí?
Nunca a palavra tio tinha pesado tanto. Nem respondeu!

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Canteiro Central

Era bonita. Para olhos não exigentes com a simetria das formas.
Pequena. Morena. Cabelos lisos.
Ele não era feio. Distinto. Negro, magro, maduro.
Ele segurava um papel na mão e ela indicava a direção, o melhor caminho.
Canteiro central da avenida travestida de carros, enfeitada de motos, como se fossem os gigantescos colares de um pescoço disforme.
O guarda no farol olhava mais o rebolado de quem corria para atravessar a rua do que para o motorista inventando uma improvável quarta pista de rolagem.
Eles estão indiferentes. Ele perguntou, ela respondeu.
Ninguém percebeu.
Ele agradeceu comovido. Comovido? Impossível afirmar.
Ela sorriu como quem diz imagina, não foi nada.
Ele foi para a direita e ela para a esquerda.
Ou vice-versa dependendo do olhar.
Eu não fui para lado nenhum, engolida pelo congestionamento, mas pude ver a vida gentil que pode existir no canteiro central.
E então está bem, ficamos assim.




quinta-feira, 29 de setembro de 2011

85

Oitenta e cinco partidas de futebol.
85 estradas percorridas.
Oitenta e cinco palavras boas.
85 piadas.
Oitenta e cinco bacias de pipoca.
85 sopas diferentes.
Oitenta e cinco beijos.
85 broncas.
Oitenta e cinco contas.
85 desenhos.
Oitenta e cinco anos que pararam nos setenta e 2.
Um coração que parou, o seu.
Um coração que acelerou, o meu.
Para suportar olhos que agora veem por dois.
Feliz aniversário pai.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

9 anos de Valentina!


De manhã, enquanto eu tomava café, um beija-flor me espiou pela janela da sala.
Como quem queria entrar.
E queria.
Ele procurava uma flor, Valentina, para dar parabéns pelo aniversário!
Um beija-flor procurando sua flor.
Nove. Nove anos.

Nove, o número da sabedoria. Para um ser tão pequeno?
E tão sorridente, de olhos tão brilhantes, é claro!
Coroamento dos esforços, término de um ciclo.
Há noves anos, na primavera, eu ganhava uma flor.
De inestimável e indivisível amor.
Que ensina pequenos truques.
Que lê as enciclopédias ainda em papel e me conta segredos de animais.
Coisas da ciência.
Que quietinha num canto perguntada sobre o que está fazendo responde:
- Não achei nada legal, então estou lendo sobre a gravidade, você sabia que...
A menina que quer comprar um furão...
A menina que vai pedir ao papai noel um ovo de dragão...
A menina que vai pedir ao papai um tablet...
A menina que gosta de tomar chá...
A menina que adora ajudar, por a mesa, guardar copos...
A menina que adora contar histórias, ler antes de dormir, desenhar...
Quanto mais descubro as pequenas coisas, mais tenho certeza de que lá está uma grande alma porque singela e nada fugaz!
Valentina e nada mais.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Primaveras

Balançou a cabeça para sentir o cabelo nos ombros nus.
Depois passou a mão na testa para descortinar os olhos.
Não eram azuis. Não eram de Capitu.
Mais um ano e seria outra a postura ao apresentar o documento.
Segurança, confiança, despeito pelos guardas que guardam os lugares onde quer estar.
E não pode.
O pai vai tentar impedir.
A mãe vai tentar negociar, fingir que não vê.
Balançou a cabeça.
Balançou os quadris.
A escola já ficara a umas três quadras, mas hoje não.
Hoje era dia de apenas passear e pensar e planejar um futuro luminoso.
Luminoso...
Precisava mesmo era tomar um sol, a primavera é sempre assim fresca?
Ergueu os ombros nus.
Quem precisa saber?

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Adolescente

tenho um frágil passarinho nas mãos
não tem asa quebrada, mas ainda tem medo de voar
o medo do coelhinho assustado
que não quer ficar na toca, mas que quando na toca não está
tem medo do que possa ser
transição é uma palavra que assusta
ninguém transita bem por ela
é sempre um não saber alguma coisa
tenho um delicado tecido para bordar
qualquer ponto apertado demais pode rasgar,
frouxo demais pode desmanchar
as minhas palavras dançam melhor em coreografias de papel
não quando são ditas entre caras e bocas
digo o que não penso,
não penso no que digo
cada peso tem sua medida exata
tenho um frágil passarinho nas mãos
que quero forte
que quero livre
que quero de voo seguro
preciso aprender para ensinar

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sabores

Gomo de laranja, suculento, fresco, textura indescritível.
Jaboticaba. Adjetivo de olhos bonitos das morenas jambo.
Jambo. Fruta com gosto de perfume. Divertida, desconhecida.
Suco de tamarindo. Na casa de sucos da estrada que leva a Presidente Prudente.
Trava o maxilar. Desce desafiando o paladar.
Tamarindo marrom, formato e tato que escondem a impossibilidade de sabor.
Frutas da minha infância.
Amoras caídas no quintal.
Mexerica azeda que trinca dentes e abre a gargalhada.
Brincadeira de criança.
Maça não. Maça era fruta que a mãe dava quando estava doente!
Uva pequena de parreira.
Melancia e abacaxi.
E todas aquelas que não estão aqui, desculpe caqui.
Não tenho fome de frutas, tenho fome da memória que as  frutas guardam em mim.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Nicanor

Inóspita pode ser a vida
De trânsito carregado
De horário apertado
De fome fora de hora
De lanche beliscado no carro
Inóspita é a motorista do Audi
Impaciente, descontente ser
Inóspita é a parede que separa
Inóspita pode ser a vida se você
não vê o que é transparente:
que a arrumadeira precisa de um sorriso,
que o porteiro precisa de um bom dia,
que a moça do café precisa de um elogio,
são presentes fáceis de dar
e hoje aprendi mais um:
flores e cumprimentos na manhã
de trabalho corrido
só para celebrar a chegada da primavera
só?
Inóspita pode ser a vida se não souber dizer:
obrigada Nicanor!


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Emiliana

Deixou que o vento levantasse a saia.
Trigueira ela.
Sempre ouvia essa palavra para definir sua morenice: morena trigueira.
Nem sabia o que era isso.
Por enquanto não lhe servia para nada.
Sonhava sonhos de adolescentes.
Comprava revistas com os trocados que a mãe lhe dava.
Olhava os mínimos detalhes de cada foto.
A correntinha no tornozelo da modelo.
A cor do esmalte da unha de outra.
O jeito de prender o cabelo.
Isso era sempre tão perturbador...
Porque elas pareciam sempre descabeladas
e mesmo assim lindas
ao passo que ela, quando descabelada tão feia
e quando o cabelo arrumado com cara de tão antiga...
Acelerou o passo.
A mãe precisava das compras.
Depois esperou para atravessar a rua e foi então
que ele sorriu.
A mãe precisava das compras,
mas ele era tão bonito
A mãe ia ficar tão brava, mas ele era tão educado
A mãe ia desfiar o sermão que já tinha até decorado,
mas ele parecia saído daquelas revistas que ela guardava com tanto cuidado.
Trigueira ela. E muito bonita.
A mãe precisava das compras, mas ela nunca mais voltou.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Iluminada

quando faço silêncio consigo escutar a voz que preciso
quando fecho os olhos consigo ver a luz que me ajuda a enxergar melhor as pedras
não preciso me livrar delas
ora servem para eu me sentar, ora para marcar o caminho
ora as pedras servem para machucar os pés na trajetória
como se um aviso fosse: não é preciso ir mais devagar?
quando respiro profundamente limpo o ar poluído que me rodeia
quando deixo a expressão tranquila
as únicas rugas que aparecem são as da idade, não as de preocupação
quando faço silêncio consigo que meus lábios digam pelos meus dedos
em um teclado cheio de tecnologia
o que vai guardadinho em meu coração
e o que vai guardadinho em meu coração é a certeza
de que apenas sendo seguirei iluminada

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Retalhos de ontem

Dias de offline guardam histórias para o dia seguinte.
15 de setembro entregou para 16 de setembro um presente: hoje é o primeiro dia depois de 21 anos de casamento e eu me casaria de novo, com o mesmo rapaz, só mudaria a temperatura daquele setembro de 90 que me fez usar um sobretudo e mesmo assim bater queixo.
Certo, eu exagero. Mas quero ficar com a lembrança que lembro, não quero consultar o google para checar exatamente o número que o termômetro marcava.
Agora podemos checar nossas memórias.
Quem me fez atentar para isso foi outro presente, um que eu mesma me dei e pelo qual estou encantada: "Se eu fechar os olhos agora" primeiro romance de Edney Silvestre.
Cheguei cedo ao aeroporto, impossível não comprar um livro.
O Rio de Janeiro estava nublado.
O taxista me perguntou porque eu não ia ao Rock in Rio. Respondi que estava velha e ele, despreocupado, apenas completou dizendo que tudo bem porque todos os bons roqueiros estão velhos.
Sensato.
Revi pessoas que vão e vem nessa deliciosa aventura que é viver.
Ouvi coisas novas, almocei explicando a um inglês como é facebook, orkut e twitter aqui no Brasil.
Telefonei para casa.
Minha caçula pediu pra eu tomar cuidado com o Mauro... Um personagem do filme Rio.
Espirituosa.
Dias de offline guardam histórias para o dia seguinte, hoje.
Tantas notícias ficam para trás.
Viver é ir juntando letras, palavras, uma frase e outra.
Viver feliz é poder colecionar dias com o seu amor, eu já tenho 7.760.