quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Adeus dia útil de 2010

Tenho um compromisso comigo: escrever um post em meu blog em todos os dias úteis.
Hoje é um dia útil.
Já participei de uma reunião. Já organizei algumas coisas para o Natal.
Já li e-mails, respondi alguns, apaguei outros, um especialmente me emocionou. Hey, Lusia. Ele começava assim.
E era um email para terminar uma coisa que nem sei bem onde começou.
Mas a vida é assim mesmo.
O dia também foi útil porque ouvi a voz da minha amiga Cláudia!
Ela, de fato, tirou dez com louvor na prova que ia fazer e, ainda que eu não estivesse vendo seu sorriso porque falei pelo telefone, estava com um sorriso no rosto.
Tagarela. Feliz. Renascida.
Há vida por toda minha vida porque depois de falar com ela falei com Renata, que carrega Isadora, que está prestes a nascer.
Voz doce de mãe que faz bolo. Não para ela, mas para a irmã que lá estava. Roberta.
Um bolo para Roberta.
Pode ter cena mais delicada do que irmãs que fazem bolo juntas?
Parabéns Roberta pelo aniversário. Por mais uma etapa cumprida. Por mais um dia que fica no calendário.
Dias especiais, momentos especiais.
Não estou lá para dar um beijo em cada uma das três!
Mas minha alma anda por toda parte.
Brinca, observa, se reserva o direito de descansar enquanto fecho os olhos e vejo aquilo que muitos não enxergam.
Dia útil. Mais que útil. Dia. Cheio de coisas.
Agora at home... Como já dizia o ET naquele eternizado filme: there is no place like our home!
Agora tenho um compromisso comigo: aproveitar dias inúteis de férias com minhas meninas, com meu amor, a quem quero chamar de José depois de vinte anos de Beto! José, um nome tão distinto, Beto, um nome tão menino!
Aproveitar dias inúteis com meus livros, com minha gata, com meu cachorro, com os filmes que fui gravando, agendando, esquecendo.
Dias inúteis e praticamente off-line.
Quando janeiro chegar e os dias úteis invadirem a minha agenda quero ter novas histórias para contar!
Adeus dia útil de 2010.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Saias

Eu não tenho saia.
Não tenho mais.
Toda vez em que entro em uma loja de roupa compro todo tipo de peça: vestidos, calças, blusas, camisas, bermudas, mas nenhuma saia.
Nenhuma saia olha para mim de maneira desafiadora, de modo que eu não consiga sair da loja sem ela, ou sonhar, ou voltar no mesmo instante, ou telefonar e reservar, ou correr na internet.
Nada. Nenhuma saia.
E todas as meninas estão de saia por onde vou.
Saias curtas, saias compridas, pretas, coloridas, saias rodadas. Saias de hoje e saias de ontem.
Tive muitas saias.
Da que mais tenho saudades é da minha saia amarela. Cortada de um jeito diferente ela embalava o meu caminhar.
Saias são atrevidas.
Saias envolvem as pernas.
Saias convidam para dançar.
Saias me lembram um tempo em que caminhar de saia e havaianas sob o sol me levava sem pressa para o futuro que é hoje. E lá, eu não me via sem saia agora.
Eu não tenho saia.
Não tenho mais.
Vestidos muitos. Mas vestidos não contam.
Vestidos ornamentam todo o conjunto.
Saias são seletivas.
Quando vejo uma menina de saia, logo penso que ela vai descalçar e começar a dançar.
São mais bonitas as meninas de saias.
Quando saia tiver vou descalçar os pés e dançar.
E tirar uma foto, talvez!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nunca estamos prontos

Nunca estamos prontos e aí reside a graça da vida, mas por que demoramos tanto para aprender?
Nunca estamos prontos para perder um grande amor, para perder um grande amigo.
Pais jamais estarão prontos para perder filhos, filhos não esperam e não estão prontos para perder os pais.
São leis praticamente naturais da vida, todo mundo sabe, todo mundo observa, todo mundo lê ou escreve sobre o tema.
E não estamos prontos quando damos ou levamos uma batidinha no carro, quando nos roubam o celular ou o notebook.
Não estamos prontos para nada, nem para as coisas boas. Não estamos prontos quando recebemos um telefonema de quem mora do outro lado do mundo.
Não estamos prontos quando nasce um bebê na família, quando alguém se casa sem avisar.
Nunca estamos prontos.
E porque nunca estamos prontos é que tudo é vivido intensamente, fortemente, algumas vezes deixando na alma, no coração, na lembrança uma imagem não como cicatriz, mas como uma tatuagem desenhada caprichosamente.
Dói muito. Mas depois que passa está lá, indelével, bonita às vezes, algumas de maneira que todo mundo pode ver, outras tão nossa que nem quando partimos fica exposta.
O fato é que nunca estamos prontos.
Não há ensaios, não há reprises, pode ser refeito, mas nunca será do mesmo jeito.
Algumas variáveis não controlamos.
E se não controlamos porque sofremos por elas?
Nunca estaremos prontos e aí reside a graça da vida, mas por que demoramos tanto para aprender e por que não conseguimos ensinar? 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Besta

É assim, desse jeito meio caipira que minha Cláudia me “repreende” quando falo alguma bobagem. E quase sempre eu falo.
Minha amiga é dessas pessoas que existem e são queridas sem esforço nenhum. Existência leve, ainda que nunca se sabe o quanto pesa a trouxinha que se vai fazendo ao longo da vida.
Eu me lembro da primeira vez em que a vi.
No almoço de aniversário de Jorge, um amigo de trabalho.
Esquisita. Uma moça que usava uma blusa de malha por cima de uma camisa e depois um vestido por cima de um jeans.
Moderna.
Sorriso tímido.
Olhar profundo.
Depois começou a abusar e me chamar de besta.
Tantas viagens. Tantas bancadas divididas no banheiro, meu creme dental e minha escova de dente e o baú de cremes dela. Ela ainda hoje insiste em dizer que não.
E sempre me socorrendo, como se eu fosse um bichinho perdido.
Minha enfermeira em Cannes, na mais terrível crise de labirintite que um ser humano pode ter.
Desacreditando quando esqueci o cartão de embarque no toilette do aeroporto de Madrid, mas quites quando no desembarque tivemos que voltar para recuperar a bolsa dela que ficara no interior da aeronave...
Minha amiga de tantas histórias.
Minha amiga de tantos silêncios.
Minha amiga em tantas fotos.
Minha amiga em tantos e-mails.
Minha amiga em tantos recados.
Hoje minha amiga está fazendo uma prova, um vestibular, um desses perrengues que a vida nos aplica, assim de surpresa.
Ela vai tirar dez com louvor, é uma aluna aplicada.
Depois vamos comemorar essa vitória.
Besta. Ela é muito besta e por isso nos damos bem, eu acho, eu tenho certeza!

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O caso das bolsas

Diferente dos adultos as crianças e os adolescentes trocam todo o guarda-roupa por estação.
O verão chegou e nada mais serve. Fechamos os olhos, apertamos solidariamente os cartões dentro do bolso e vamos às compras.
Em um desses eventos levo minha primogênita a uma charmosa loja especializada em roupas para adolescentes – Just4me.
Compramos algumas peças e uma bolsa entra no radar das intenções.
Na hora de fechar a compra eu pergunto: não vai levar a bolsa?
A resposta é não.
Uma bolsa pequena, bonita, interessante para qualquer mulher, não apenas para as teens.
Passou.
Dias depois, volto à loja por uma bermuda e aproveito para comprar a bolsa. Para mim.
Ao chegar em casa: olha você comprou a bolsa!
- Comprei para mim, você tinha desistido...
- Que absurdo! Eu acho a bolsa, eu quero comprar a bolsa e você compra pra você?
- Está bem pode ficar, mas eu tinha pensado em usar amanhã no aniversário do... e domingo no aniversário da...
- Eu te empresto e pra trabalhar você pode usar umas duas vezes por semana, no máximo!
Fui ao aniversário. Ok.
Fui ao almoço. Ela contou a história pra muitas pessoas e pensei: não vai rolar.
Voltei à loja. Comprei outra, da mesma cor, mas outro modelo e... menor, outro tamanho, não são muitas unidades. Mas pensei: tranqüilo, eu troco com ela.
Em casa apresento-lhe a segunda opção: ah eu prefiro a minha mesmo, nessa daqui não cabem as minhas coisas...
Não rolou a troca.
No meio de tudo a minha caçula tem sua participação especial: é, comprou pra você, comprou pra ela, e pra mim nada! Eu queria aquela azul, com um laço!
Está bem, eu passo lá. Ai meu santo generoso provedor das futilidades imprescindíveis, abasteça minha conta corrente.
Não pude ir à loja, trabalho, almoço fora, preparação para festa da firma!
E quando a festa começa, uma das queridas amigas se aproxima sorridente e diz:
- Olha, comprei na loja dos adolescentes! E exibe a bolsa azul de laço!
O que será que eu digo lá em casa?


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A festa

Ele não gostava de festas e ficava amuado quando se sentia na obrigação de ir a uma delas.
Final de ano então, um horror.
O cabelo nunca estava em ordem.
Os poros da barba sempre inflamados em véspera de festa e, não raro, uma espinha ou outra resolvia aparecer.
A mãe sempre falava que era nervoso. Nervoso de ficar no meio de muitas outras pessoas.
Que não sabia para quem havia puxado tão tímido menino.
E ele não se atrevia a responder.
Não a uma mulher que não saía de casa a não ser para ir à missa e que nunca mais fora ao cinema desde que ficara viúva.
O fato é que não gostava de festas e no final do ano elas pipocavam.
Não festas que tivesse vontade de ir, onde encontraria amigos, não, dessas ele não sabia, não era convidado, não estava envolvido, não tinha amigos.
A não ser o Zé, igual aquela música que alguém escrevera inspirado nele, tamanha coincidência!
A roupa sempre parecia nova. E era mesmo, mas não era para parecer.
Não gostava de festas.
Naquela resolveu que não iria. Mas saiu arrumado, elegante, para orgulho da mãe.
Estacionou o carro em um canto escondido do shopping e sem olhar muito para os lados entrou no cinema na última sessão.
A chuva derrubava árvores e inundava rios lá fora.
A mãe protegida em casa, de olho na televisão.
Ele mergulhado na história do filme.
Levariam um tempo ainda até se reencontrarem e se abraçarem com alívio depois que a música de notícia extra estremeceu a sala...
O teto do clube onde a festa ocorria desabara e muitos feridos estavam sendo atendidos em vários hospitais da região.
O Rubens ia ter que contar para a mãe que não estava lá!

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ser igual, ser diferente

Para ser sempre a mesma eu preciso ser diferente.
E posso ser diferente fazendo pequenas coisas de outro jeito.
Estava chovendo e eu saí de guarda-chuva e sem galochas.
Diferente de quando eu tinha 17 anos, se anoitecia com chuva meu guarda-chuva vermelho me levava até a av. paulista e lá, assistíamos a um filme comendo pipoca.
Hoje meu guarda-chuva prata me levou à Fatto a Mano.
Falei das plásticas das atrizes com a manicure. Nunca falo sobre isso com elas, normalmente fico quieta, aproveitando esses preciosos minutos em que não posso fazer literalmente nada por ter as mãos atadas!
Pintei as unhas com uma cor fosca.
E fui almoçar sozinha. Para ser eu mesma, faço coisas diferentes.
Por isso, comi cuscuz de camarão com uma salada.
Acho que não posso mais dizer que não como camarão, que tem gosto de sabão em pó.
O risoto feito em nossa casa recentemente estava delicioso e eu desfrutei sem reclamar.
Portanto, comi algo que não tenho hábito de comer, pela segunda vez!
Para ser sempre a mesma eu preciso ser diferente.
Chove lá fora.
Tudo se acumula aqui dentro.
Tudo é espera e consideração.
Não comprei flores, mas um brinco de flor.
Para ser diferente eu preciso ser eu mesma mesmo que eu vá me descascando como as cebolas e descobrindo coisas novas.
O fosco das minhas unhas não apaga o brilho dos meus olhos, ainda que fiquem embaçados de vez em quando!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O santo de hoje

Todo dia um sonho.
Todo dia um anjo.
Todo dia um santo.
O santo de hoje é uma santa.
Santa Luzia.
Que nos protege os olhos.
Que nos acode em momentos de aflição.
Que me acompanha como sombra no nome.
Todo dia um sol.
Mesmo quando não vemos.
Todo dia uma lua.
Mesmo que ninguém lhe escreva uma poesia.
Todo dia uma chuva.
Mesmo que não se veja uma gota d água.
Não trago os olhos nas mãos,
Mas trago o coração preparado para ver além.
Às vezes vejo coisas que preferia não ver.
Ora é uma benção, ora... oração
...fazei que eu use da minha vista, somente para olhar o mundo e as pessoas com caridade e otimismo...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Obtusidade

Cansada dos obtusos.
Cansada da inutilidade.
Cansada da futilidade.
Cansada dos que geram problemas para ter algo o que fazer.
Cansada de tanta coisa boba quando tanta coisa efervescente, interessante, inteligente está acontecendo.
Cansada da minha teimosia em acreditar.
Cansada da minha mania de achar que depois do um vem o dois.
Uma vez uma pessoa teve paciência de me explicar que minhas palavras duras eram como pregos na madeira...você pode até retirar os pregos depois, mas o buraquinho ficou lá... Sim, podemos pedir desculpas, mas alguma coisa ficou lá. 
Levei um susto. Tento lembrar disso sempre, mas nem sempre funciona.
Quando acontece comigo vejo o monstro em que se transformam as pessoas que são assim.
Não quero mais ser assim.
Cansada dos obtusos.
Cansada dos intrusos.
Cansada de repetir-me.
Cansada de olhar para trás e ver um rastro sem forma e sem cor.
Cansada de adivinhar as mentiras, talvez fosse mais fácil acreditar nelas.
Cansada da estupidez: vocês vão descer pra baixo?
Eu podia ter respondido: mais? é impossível...
Mas a pobre garçonete não entenderia.
Cansada das ironias!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Coisas de todo dia

Quase todo dia eu vejo a vovó japonesa passear com a netinha em seu carrinho de bebê.
Hoje vi os pezinhos gordos, descalços, balançando sossegadamente e o cabelo negro preso com charme.
Quando chego ao trabalho o primeiro sorriso que recebo é do moço da limpeza. Um sorriso descompromissado, iluminado.
E os cães passeiam pelo bairro levando seus donos no outro lado da coleira.
No prédio, o mais simples da rua, no mesmo apartamento, uma janela exibe uma bandeira do Corinthians e a outra exibe uma bandeira do Palmeiras. Fico pensando que ali convivem duas pessoas que se gostam muito a ponto de suportar absurda diferença.
Na janela de outro apartamento um gato que não torce para time nenhum toma sol, no vão entre a vidraça e a tela protetora.
O frentista toma sol.
O segurança da escola de inglês espreita a rua.
Quase todo dia eu vejo toda essa gente que não me vê.
Passo apressada, atrasada para a reunião.
Passo cantando, acompanhando uma música no rádio que sempre me surpreende com uma canção esquecida.
Passo olhando os buracos da rua, o farol da esquina, o ponteiro do combustível.
Eu passo e eles não me vêem.
Eles passam e eu espero que tenham um destino certo, uma existência leve e que me deixem desfrutar da poesia escondida em suas rotinas.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Coisas que já escrevi

Gosto de escrever bilhetes, de rabiscar felicitações, de encontrar as palavras certas para as pessoas certas que em horas incertas fazem aniversário, mudam de cidade, vou recolhendo algumas, perdendo outras, mas a essência do que carrego pela vida não muda de forma nem de conteúdo.

[Vamos escrevendo a história de nossas vidas ao longo do ano.
Eu uso os aniversários como se fosse a pontuação, há anos em que são muitas exclamações, em outros tantas interrogações, ponto e vírgula, reticências, e até ponto final. Ele pode ser visto como final de uma sentença que vai permitir o início de um novo parágrafo! E a história continua. Parabéns.]

[Amigos são como as melhores coleções, poucos objetos, mas absolutamente imprescindíveis e importantes, com os quais se deve ter todo o cuidado e carinho do mundo! (ainda que de vez em quando levamos um susto e o coração dispara: é quando eles quase nos caem das mãos!)]

[Caixinha mágica

Modo de usar
Quando sentir tristeza, saudade, tédio
Recolha e guarde nessa caixinha, agite por
Uns segundos e abra bem devagar
E aproxime do rosto ou do coração
Sinta que tudo de ruim se foi e a alegria e a
Leveza tomarão conta de você (*)

(*) se não funcionar, lembre-se apenas que tem uma amiga meio bobinha, 
mas que te quer muito bem e que também atende telefonemas de pessoas saudosas!!]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Quebra-cabeça

São tantas as palavras disponíveis, mas como bichinhos assustados elas se escondem.
Ficam girando na minha cabeça, desencontradas, dançando sem ritmo, sem encaixe.
Espero sempre um pouco mais, espreitando e quando alguma relaxa eu tento começar uma frase.
Preciso começar um texto que conte como tudo começou.
Que realce as coisas alegres e pontue as coisas tristes muito rapidamente e nem foram tantas assim.
Preciso lembrar detalhes.
E depois preciso guardá-los num lugar protegido, só para mim.
E se eu pudesse acelerar o tempo e contemplar todos os resultados... touché na minha ansiedade.
E já saberia que tudo deu certo aqui, ali, para mim, para ela, para ele.
Menos cansada e menos aflita.
Com mais respostas do que perguntas.
Os anos pares me espreitam com coisas esquisitas desde o meu nascimento.
Alguns me surpreendem com o mais puro lirismo, outros com o mais cruel do ostracismo.
Preciso das palavras, mas elas não precisam de mim.
Preciso de um tempo de calmaria que não tem pressa de vir.
Se eu pudesse ir e vir no espaço e no tempo eu comporia um quebra-cabeça sem tantas peças.
Não posso perder nenhum delas. Não agora.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Cotidiano

Tem gente que nunca ganhou uma rosa.
Tem gente que nunca ganhou café na cama.
Tem gente que nunca andou descalço na chuva.
Tem gente que nunca viu o mar.
Tem gente que nunca colheu pitanga.
Tem gente que nunca desenhou um coração.
Tem gente que nunca cortou o dedo.
Tem gente que nunca nadou em rio.
Tem gente que nunca caçou passarinho.
Tem gente que nunca soltou pipa.
Tem gente que nunca viajou de trem.
Tem gente que nunca viu um pato nadar.
Tem gente que nunca jogou bolinha de gude.
Tem gente que nunca tomou sorvete.
Tem gente que nunca comeu os dois bicos do pão.
Tem gente que nunca quebrou um copo.
Tem gente que nunca usou havaianas.
Tem gente que nunca usou fantasia de carnaval.
Tem gente que nunca quebrou o braço.
Tem gente que nunca caiu da escada.
Tem gente que nunca viu um morceguinho dormir num arbusto de calçada, de um bairro movimentado de São Paulo, ao lado de uma van de cachorro quente, em pleno sol das treze horas.
Eu vi.
E até fotografei.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Compras

O que vai querer moça bonita?
Eu?
Um pouco de sossego.
Um pouco de compaixão.
Quero que as pessoas sejam felizes, assim me deixam em paz.
Mas, pensando bem, algumas podem ter um pneu furado na marginal, fará bem.
Também quero um pouco de alegria.
Mas não muita, se não fica parecendo aquela música, sabe aquela? Rir é bom, mas rir de tudo é desespero?
Então.
Quero também um pouco mais de horas para dormir e um pouco de mais horas para ler.
Pesa também um pouco de paciência.
Falei que não ia mais precisar, mas acabou toda a que eu tinha reservado. Está fresquinha?
Também quero um pouco de amor, estou devendo para algumas pessoas, tenho recebido mas não tenho dado o suficiente de volta, feio né?
Acho que é isso.
Tem alguma novidade?
Chegou alguma coisa diferente?
Economizei ironia, até sobrou um pouco, economizei sorriso amarelo, mas estão passando da validade, acho que vou descartar.
E você tá bem? Vendendo bem?
É, agora que vai chegando o Natal as pessoas compram muito paz, amor, carinho, compaixão, mas elas usam mesmo ou só compram por impulso? O que você acha?
É? Foi o que eu pensei.
Tchau, obrigada.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Altos e Baixos

Encontrou o pingo do i.
Ah, estava certo de que agora poderia se vingar.
Estava feliz, sorridente.
Preparava discursos, escrevia cartas rápidas e ferinas.
Encontrara, finalmente encontrara o pingo do i!
Preparou as coisas com uma alegria!
Distribuiu pertences.
Revisou todos os arquivos.
Arrumou os dados que eram necessários.
Ah, estava certo de que agora poderia respirar aliviado.
Chegar em casa e tomar uma cerveja sem culpa.
Atender ao telefone sem sobressaltos.
Deixar a caixa de email piscar sem atropelos.
Encontrara. Finalmente encontrara.
E, certo como dois e dois são quatro, todas as previsões estavam erradas.
Fora antes do previsto.
Mais surpreendente do que supusera.
E lá estava, claro como uma manhã de verão.
O pingo do i mais bold do que itálico.
Ah, estava certo de que agora poderia relaxar.
E era a melhor sensação que encontrara nos últimos dias e nessa sensação não caberia vingança.
Nem discursos, nem palavras duras.
Um pingo no i é uma tese inteira para quem entende as entrelinhas.
Partiu entre risos, acenos e um até logo, como quem vai voltar logo mais.
E foi melhor assim.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Diário Resgatado

01/02/05 07:33 cama nova para Valentina... ela ficou muito feliz, mas faz uma bagunça na hora de dormir! alcança tudo sobre a cômoda, ontem derrubou um copo com água, um esparramo!
ontem foi o primeiro dia de aula de Antonella no colégio novo, Divina Providência (espero que o nome faça jus)

o que ela mais gostou, nessa ordem:
da biblioteca
do playground
da classe e,
da cadela

a biblioteca me emocionou, gostar de livros, gostar de ler me salvou a vida inteira e o gosto dela pelos livros me alegra, me tranquiliza, me
anima, me dá esperanças

playground e classe, normal
a cadela mora na entrada do colégio e segundo ela, ontem ela não teve
oportunidade de passar a mão, mas hoje, com certeza, vai tentar!!!

quando eu disse que havia ficado com saudades dela, pensando nela lá
na escola, com gente que ainda não conhecia ela me disse, firme como
uma rocha:
- mãe, não precisa né, a escola é o escritório da criança...

mais uma lição

Valentina segue falando tudo o que guardou esse tempo todo, e me
emociono cada vez que descubro que ela sabe falar coisas que eu nem
imaginava e que articula e que pensa e que já "trama"

quer ir cedo para a cama (porque é nova) e tarda a dormir está cada vez mais loirinha e linda e brava que não sei se terei forças para enfrentar

uma coisa é certa: estou cercada de vida inteligente e isso me deixará
jovem para sempre

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Luta


E quando quero estar feliz, mas uma tristeza me invade, ocupa cada espaço desprevenido e não vai embora?
Fico atônita.
Penso em rabiscar um verso.
Depois quero ler um livro e quando já estou em casa isso é tão fácil.
Mas essa tristeza não escolhe lugar.
Estou entre amigos escolhendo o que comer no almoço e de repente, ela me agarra um pé.
Em outras, em uma loja nova, cercada de estímulos por todos os lados e de um corredor a outro, um vão de espelho me assusta e quem vejo? Eu? Não. A tristeza escondida em meus olhos, fazendo tudo para se mostrar.
E quando quero gritar que não posso mais carregá-la comigo e os sons todos se tornam muito mais alto que minha voz muda?
Quero ouvir uma música. Uma música qualquer. Quero cantar uma música.
Quero rezar uma reza, resgatar uma foto engraçada, chamar uma amiga pelo celular.
E nada faz passar.
A tristeza é cíclica? Ela vem e vai? Não fica lá nem cá para sempre?
E quando quero estar feliz, mas um suspiro profundo vem me dizer que apenas espere, que não faça força, que a quietude ajuda, que a serenidade repousa em algum canto do meu coração, mas que já já vem me acudir?
E quando fico atônita e penso em rabiscar um verso, mas a tristeza não deixa?
Apenas consulto o relógio e espero, um dia vai coincidir.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Decisão

Escreveu um bilhete apressado.
Letras atrapalhadas, frases mal formuladas.
Correu pela casa reunindo coisas.
Preparou uma mochila infeliz.
Tomou o resto de suco que encontrou na geladeira.
Experimentou um biscoito, murcho.
Cerrou as cortinas, fechou as janelas.
Olhou para a planta desolada no vaso.
Deixou no corredor, na esperança de água de chuva.
Pensou em desligar o relógio da luz.
Releu o bilhete. Pensou em desistir.
Pensou em escrever outro bilhete.
Não podia perder tempo.
Uma buzina lá fora.
Um choro de criança no andar de baixo.
Olhou o porta-retrato no aparador.
Aparando a incerteza.
Quando foi que decidiu?
Por que decidiu?
Onde achou a caneta e o papel para aquele bilhete?
A boca secou, o coração disparou.
Saiu, fechou a porta tão devagar, como nunca conseguiu.
O tempo nublado encobriu também a figura solitária.
Desapareceu na confusão da cidade.
Apesar de nublado não choveu.
A planta ainda agoniza no corredor.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Os meus e os nossos bebês


Isadora
Marina
Julia
Taís
Gustavo
Vittoria
Maria Eduarda
Felipe
Theo
Eduarda?
Nomes de bebês que me cercam.
Alguns já crescidos,
Mas nenhum de aniversário já anotado no calendário.
Outros que ainda nem vi.
Alguns em fotos de sorrisos banguelas.
Olhos que iluminam um futuro que vou desfrutar.
Alguns por chegar.
Aqui, lá e além mar.
Brotam como se flores fossem.
São um recado de que não preciso me preocupar, a vida segue seu curso.
De onde vim para onde vou.
Olho o rosto da minha mãe pequena, do alto dos seus oitenta anos e olho o rosto da minha caçula, do alto dos seus oito anos.
E minha moça, onze, que transformou minha existência.
Antonella, Valentina, não tenham medo da vida, ela escorre feito o riacho que se desvia dos obstáculos sem perder a graça dos movimentos.
Os bebês estão chegando.
Parabéns pra você.
Fada do Dente.
Papai Noel.
Papai do Céu, olhai por nós!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Poesia Velha

Vasculho papéis velhos atrás de uma poesia bonita que talvez eu tenha escrito em um momento inspirado.
Encontro duas respostas: ou nunca escrevi uma poesia bonita ou estou muito exigente e meu senso de hoje me faz mais crítica do que eu deveria ser.
Não encontro as rimas.
Não encontro as palavras finas.
Não encontro as dores de agora naquelas dores que tanto me fizeram chorar.
Ou eu era muito boba ou agora sou muito cética para entender tudo aquilo que marcou os papéis.
Tive uma máquina de datilografar. Por que não a conservei?
Medo do ataque das teclas ensandecidas e esquecidas.
Uma máquina nos enfrenta porque depois que nos entregamos aos seus registros, o que resta é rasgar o papel. Não se apaga como agora.
Teclas duras que exigem esforço e rapidez.
Mãos endurecidas.
Vasculho inutilmente papéis velhos.
No futuro hei de vasculhar arquivos.
Tão frágeis e apagáveis.
Apagáveis? Se não está segura uma tecla de busca.
O dicionário me olha inconformado.
Sou um bicho estranho abrindo esse livro pesado. Olham-me de rabo de olho.
De onde saiu essa?
Dias apagados.
Dias de chuva no final da primavera.
O verão espera lânguido a sua hora, enquanto eu vasculho os papéis.
Se encontrar, talvez tenha pudor de revelar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ritual

Não tenho um ritual de beleza.
Não descobri isso hoje, mas hoje isso me saltou como uma onda.
Perco amigos por piadas, mas não deixo que me percam, portanto, podem concluir que não tenho um ritual de beleza porque não tenho beleza.
Eu não me importo.
Gosto do banho e dos bons óleos pós-banho, é um processo só e economiza tempo.
Aliás, falando em tempo, ele me manda recados o tempo todo.
Uns fios de cabelo branco me acenam quando me penteio em frente ao espelho.
O desenho dos olhos quer escorregar cada vez mais em direção à boca.
As sardas quase sumiram ou foram encobertas por pele velha?
Não, que isso já é exagero, faço limpeza de pele.
E preciso das unhas sempre feitas. Os pés nas mãos dos podólogos.
O que não tenho é um ritual de beleza com um arsenal de cremes para tudo.
Mas uso protetor solar.
O que tenho é um ritual de coração.
Quando o tempo me olha complacente e me concede alguns minutos eu agarro uma das meninas e cubro de beijos.
Deito no sofá com uma delas no colo - que uma sempre me escapa - e peço uma história.
Olho seus desenhos, ouço histórias do dia a dia da escola.
Faço caretas. Disputo com elas o Enigma da Revista Recreio.
E se elas não estão sempre posso passear com o cachorro ou um jogar uma bolinha de papel para a gata.
Tenho um ritual de oração.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Novembros

Os novembros vão e vêm.
Uma de minhas amigas de adolescência, a Fátima, faz aniversário no dia 24.
Eu não a vejo há muitos novembros e tenho muita saudade.
Alguns novembros são de alegria, outros nem tanto.
Eu tenho pena dos meses de novembro.
Eles vivem entre a alegria do outubro, mês do dia de Nossa Senhora da Aparecida para os católicos, do dia das crianças, do dia dos professores e a euforia do mês de dezembro que dispensa apresentações: festas, presentes, alegria e esperança.
Os meses de novembro carregam o ônus da tristeza pelo dia dos mortos - aqui no Brasil - e de tempos em tempos pela dureza das eleições.
Vozes ásperas.
Os novembros vêm e vão. Como os cavalinhos do carrossel que não tem outra opção a não ser resignarem-se aos seus destinos certos, circulares.
Novembro tem trinta dias. Ele pensava ser mais feliz.
Em novembro aconteceu o episódio conhecido por Massacre de Jonestown, induzido por “Jim” Jones.
Em novembro morreu Zumbi dos Palmares, aos 40 anos.
Em novembro a cadela Laika entrou em órbita, lançada junto com o satélite Sputnik 2.
Laika não era seu nome e sim sua raça, ela se chamava Kudryavca e morreu horas após o lançamento devido ao estresse e ao superaquecimento do corpo.
Triste, muito triste.
É certo que coisas muito alegres acontecem, e dias interessantes, dia do designer, dia do músico, mas sempre entre coisas sofridas.
Os novembros vão e vêm e assim como as águas do mar eu respeito temerosa e o atravesso em equilíbrio.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aposta

Apostou no verde, mas deu roxo.
Jogou 10 e deu 11.
Nuna nada estava de acordo com o que pensava.
Pensava sim, tão forte que doía a mão.
Resposta: não.
Foi vivendo assim.
Levantando as 6h30 quando tinha sono para dormir até umas 8h00.
Comendo rápido aquela comida sem gosto dos kilos da vida, bebendo um suco sabor amarelo, porque qualquer sabor.
E tudo isso quando tencionava sentar-se e ser servido. Podia ser um alho&óleo, mas em prato bonito. Quente.
Um suco de amora. Não de polpa. Sonhava ver as frutinhas dançando antes da morte violenta no liquidificador.
Apostou no relógio, ganhou um par de meias.
Apostou no convite para a festa e passou a noite de sábado com a única cerveja esquecida na geladeira.
Foi vivendo assim.
Não ia desistir, vai que um dia a sorte resolve... melhor não apostar.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O moço do farol

Dia de muitos afazeres.
Um sol lindo.
Um cheiro de verão que se prepara para chegar.
Tudo ia bem.
Eu ia cantando no carro, na rua que desce com preguiça.
O ar condicionado gelando o espaço pequeno.
E ele estava lá.
Quando parei o carro no sinal vermelho não pude deixar de olhar para ele.
Ele deveria distribuir as balas e os chicletes nos retrovisores, mas estava sem forças.
Sentado no canteiro da árvore silenciosa e constrangida ele tomava um líquido verde de uma garrafa transparente.
Não estava bem.
Sentia uma dor que eu adivinhei e talvez apenas eu e mais ninguém.
Transpirava. Não era só o calor do meio dia.
Tinha dor.
Um moço. Um moço ainda. Braços fortes para vender coisas tão leves quanto balas e chicletes.
Melhor que bala de revólver, mas ele estava doente e eu não fiz nada além de acelerar o carro quando o farol abriu e pedir por ele.
Como saber se meu pedido foi atendido?
Certas coisas nunca se sabe.
Dores diferentes, algumas passam, outras apenas se retiram por um tempo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Não podia dormir sem rezar.
Mas sempre rezava com sono e por isso, tinha a impressão de que as preces valiam menos.
De manhã acordava disposta, mas aí não se lembrava de rezar, era tanta coisa pra ajeitar.
Conheceu a mulher loira, simpática, que lhe disse que rezava no trânsito, de manhã, enquanto ia para o trabalho.
Achou uma boa idéia, mas não era tão zen.
Logo na primeira tentativa alguns palavrões de trânsito se misturaram às preces e ponderou que era bem pior do que rezar com sono.
Comprou um santo e o instalou na mesinha de cabeceira.
Disseram-lhe que santo não funciona sem uma vela acesa, mas tinha medo.
Tanta gente morrendo em incêndios causados por vela.
O santo ficou lá, olhando para ela e para o relógio e colares que tirava a noite para dormir.
Foi então que ganhou o santinho com o cordão e achou que tudo se resolveria.
Não tirava mais do corpo a não ser por poucos minutos, durante o banho.
A amiga recomendou benzer. Ela não ia à missa. Então a outra ofereceu-se para fazer isso por ela.
Desconfiou.
Ficou de pensar.
Escondeu a medalha no sutiã e não se falou mais nisso.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Asa quebrada

Menina bonita quando chora parte o coração.
O sorriso vai embora, os olhos perdem o brilho.
Menina bonita quando fica doente
Aperta o coração da gente.
Eu quero trocar de lugar
Deixa doer aqui que já sei que vai passar
E eu faço mais força pra dor se cansar e me abandonar.
Menina bonita quando chora derruba orvalho
Menina bonita quando tem dor não quer saber de nada,
Nem mesmo do computador
O livro fica quietinho na mesinha de cabeceira
A luz tão baixa que a Etevalda quase pega no sono
Coruja preguiçosa, sempre na cadeira que se quer ocupar
Menina bonita quando chora parte o coração
Da mãe que está tão longe, mas que já vai voar para carinhar

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Calvin & Eu

Por que o papel higiênico acaba sempre na minha vez?
E a jarra de água na geladeira tem sempre menos de meio copo?
Por que o sabonete acaba na minha vez?
E, na minha vez, a máquina ou sistema param de funcionar na padaria.
Por que, quando não me lembro de onde conheço a pessoa, ela é sempre muito simpática e sempre vem falar comigo?
A fila em que estou com o carro não anda.
A moça do café não olha para mim.
Por que quando preciso falar urgente a pessoa desligou o celular? Se todas as pesquisas dizem que esse aparelhinho fica o tempo todo na mão das pessoas?
Por que quando escolho o modelo do sapato não tem meu número?
E a roupa não tem P? E o moço sempre diz: tem, mas acabou?
Por que quando quero A me oferecem B?
Por quê?
Calvin tem razão quando, em resposta ao pai que lhe diz que o mundo não é justo, responde:
- Eu sei, mas por que ele não pode ser injusto a meu favor?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Coruja

E hoje, o que mais posso fazer a não ser piar do lado de fora de um buraco feito no gramado, ao lado de um arbusto que posso chamar de quintal, se sou a mãe da menina que também adora contar histórias. Como essa, que pode ler aqui, mas que mais vale ler lá, no blog AntonellaNews. Novas janelas, novas palavras, amores velhos mas que não ficam amarelos e não acabam jamais!


Cachorro á vista!
Hoje eu estava lembrando da viagem que fiz para a praia. Fiquei numa pousada linda, e resolvi ver o mar. Mas quando eu voltei, para meu espanto, vi uma cena que parecia coisa de desenho animado: meu cachorro, Haku, NO TELHADO. Sim. O danado estava lá, andando com dificuldade sobre as placas do telhado da pousada. Aí pensei: "Nós devemos ter esquecido a janela do andar de cima aberto!". Isso porque a tal da pousada fornecia quartos com dois andares. Corremos, eu e minha família, para o bendito andar superior e o chamamos de volta. Ele voltou, pelo mesmo caminho que fez para ir. E adivinhe! Haku pulou na cama para saltar pela janela. Mas cada uma...http://antonellanews.blogspot.com

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Quintal

As frutas do meu quintal.
Tantos quintais. Dentes de menos, sardas de mais.
Mexerica. Pequenas e azedas.
Difícil descascar, gostoso sentir o maxilar se arrepiar do azedo.
Caldo escorrendo entre dedos compridos.
E amora.
O pé alto, tão forte, com frutas tão pequenas e delicadas.
Esparramadas no chão. Tingindo a terra de um vermelho de sangue.
Na camiseta? Para sempre.
Depois, manga e pitanga.
Pitangas debruçando na varanda, como quem quer entrar na cozinha para o chá.
Na casa branca, casa de boneca, abóbora que não é fruta, mas que cercava as bananeiras.
Laranjas.
As frutas do meu quintal.
Tantos quintais, nunca iguais.
Depois os quintais foram ficando na memória.
Saí do quintal, mas o quintal nunca saiu de mim.
E agora tudo de novo se renovando.
Não tem terra, mas tem vaso grande.
Hoje tenho no meu quintal jabuticabas que dividimos com os passarinhos.
Pitangas, vermelhas, de um doce azedo indescritível.
Goiaba, manga, limão.
E correndo entre tudo isso duas meninas, uma gata e um cão.
Um mundo inteiro num pedacinho de chão!  

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A reencarnação dos objetos

Algo está errado se reencarnar está associado à carne porque os objetos são coisas.
E reencarnação é o mesmo que Palingenesia – do grego palin que é igual à repetição, de novo, mais genes(e) que é igual a nascimento, portanto,  renascimentos sucessivos dos mesmos indivíduos. E aí pode não ser de carne.

E os objetos sempre carregam almas, eu sei, elas estão lá.
O galho que eu recolhi no interior da Bahia e que me acompanhou por toda a viagem - e depois comigo pelos cantos dos armários até que em uma mudança despedi-me dele com dor no coração do desapego - reencarnou no galho que minha caçula recolheu na beira da praia.
Ela o chamou de Rei Arthur e por todos os dias em que passamos entre sol e preguiça ela cuidou dele como quem cuida de um animalzinho.
Um galho tem alma.
As pedras que meu pai e eu recolhemos por nossos caminhos carregam muito do carinho que nos uniu.
As pedras não têm filhos.
As pedras não têm lágrimas.
As pedras não têm alma para quem não sabe olhar.

O Rei Arthur ainda não reencarnou em nenhum outro galho que tenha cruzado nosso caminho em um passeio ou viagem de férias. Pode ser na próxima vez.
E é a reencarnação porque não é qualquer galho.
Um galho nos salta aos olhos e nos fala ao coração.
Por desapego não podemos colecionar e porque não os colecionamos enfeitam nossa existência e assim vamos acreditando nas coisas que nos ensinam os nossos corações.
É uno.
Mas me vejo em meus iguais.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Desesperança

A saia rodada, o cabelo enrolado.
Dedos esticados e a mão sempre alerta.
Pegava sonhos em qualquer lugar.
E tinha olhos de um castanho raro.
Que olhavam muito mais do que queriam ver.
E tinha a pele aveludada.
Branca no inverno, menos branca no verão.
Mas branca.
Como branco era o sorriso. Fácil.
A saia rodada confundindo o medo.
O cabelo em espera sinuosa.
Sonhava em terceira pessoa, esperava sempre mais.
Os olhos castanhos não perderam o brilho,
Mas perderam o rumo quando o futuro chegou.
A pele aveludada perdeu o viço.
O sorriso não desapareceu, mas ficou menor.
Os sonhos em terceira pessoa ficaram pelo caminho.
O futuro chegou torto, de um jeito diferente.
A saia rodada ficou emoldurada na foto.
O cabelo enrolado em um coque.
Não há mais nenhum sonho em nenhum lugar.
E a vida caminha sem sair de seu trajeto.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Autor

Queria contar uma história bem longa, mas não tinha tempo.
Pensou em escrever um livro, com capítulos, escreveria aos poucos e assim poderia escrever tudo.
Levava bloco e caneta e anotava idéias.
Nunca deixou de anotar nada do que lhe parecesse bom para o livro.
O primeiro personagem, Eustáquio.
Quem era ele? Um marceneiro.
Ou talvez um eletricista.
Lembrou-se do moço que fora consertar o chuveiro.
Fazia pequenos consertos, mas também trabalhava na prefeitura com a fiação elétrica e também estudava. Fazia faculdade - engenharia elétrica - e pretendia trabalhar nas usinas hidrelétricas.
Não era um personagem, era um moço que tinha estado em sua casa. Com planos, com objetivos muito claros.
Deixou o Eustáquio de lado.
Não poderia escrever tanto sobre um único personagem sem que se envolvesse com outros.
Outra hora anotou que a mulher de Eustáquio poderia ser a Daniela.
Moça morena, trigueira, faceira. Hum, bonita demais?
Não. Elas existem, são assim mesmo. E são carinhosas.
As moças das revistas são diferentes.
E, seguramente, são mais tristes que a Daniela do Eustáquio porque se forem a uma festa e não saírem na revista da semana a depressão é grande.
Guardou o bloco. Tampou a caneta. O trem já estava quase chegando e ele tinha tanta coisa pra fazer no cartório.
O nome do primeiro bebê que registrou naquele dia... Eustáquio.
Levou um susto, levantou os olhos do computador e olhou para o pai que, meio sem graça, justificou:
- é, feio, esquisito, mas sabe como é, é o nome do meu sogro, morreu sem conhecer o menino, vamos chamá-lo de Neto
Apenas sorriu. Pensou em falar sobre o bloco, o sonho, o personagem, mas a fila estava grande e ele apenas finalizou o documento. 

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

E assim foi

Ele era alegre, mas de vez em quando ficava triste. Isso é normal. Acontece com todo mundo.
Ele não gostava muito do nome dele, mas também isso não era importante. Ele tinha muitos apelidos.
Na escola um, em casa outro, no trabalho um terceiro. Ele se divertia e estranhava quando, na sala do médico, alguém o chamava pelo nome.
Tinha também um sobrenome.
Tinha visto num filme ou lido em algum livro um personagem que dizia que era melhor ter um nome comum. Para os que têm nome comum nunca há muita expectativa e por isso vivem melhor, mais para si.
Mesmo alegre ele foi ficando cada vez mais triste. Já não parecia tão normal, mas não sabia se acontecia com todo mundo ou só com ele. Não queria perguntar. Não tinha com quem conversar sobre isso.
Algumas pessoas observaram, algumas fizeram uma graça ou outra com esse estado de espírito, mas depois o deixaram em paz.
Ele já não tinha ânimo para o trabalho, mas não deixava de cumprir todos os compromissos.
Já não tinha mais vontade de ir ao jogo de futebol. Ficava trabalhando até mais tarde e depois escorregava para casa, torcendo para não ser visto pelos amigos.
Já não se ocupava em programar o final de semana. Preferia ver um pouco de TV, ficar quieto no quarto e só.
A mãe também não se importou.
Ela também tinha um nome bem comum.
Ele foi ficando cada vez mais triste. Um aperto no peito. Comprou uma camisa. Não melhorou.
Foi ao cinema. Filme bom, mas...
Folheou umas revistas. Deitou e não conseguiu dormir.
As costas reclamaram de tanto descanso. Pensou nos comprimidos que a mãe tomava para dormir.
Resolveu tomar um.
Demorou pra fazer efeito, tomou mais um, e outro e mais outro, tomou quase o vidro todo.
Deitou e dormiu para sempre.
Foi assim que ele morreu, o Adamastor.
De uma tristeza que não se identificou.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E foi assim

Ela não gostava de seu nome, mas ninguém precisava saber disso.
Quando se apresentava ela o dizia em alto e bom som, com firmeza, por isso ninguém suspeitava.
Ela não gostava de ficar sozinha.
Estava sempre agarrada à saia da mãe quando era bem pequena e quando foi crescendo foi se cercando de primos, primas, irmãos, amigos.
Depois namorou e casou cedo.
Desse primeiro casamento teve uma filha.
Por que não gostava de ficar sozinha, depois que se separou logo arrumou um namorado.
E depois outro, mesmo ainda tendo o primeiro.
Não gostava mesmo de ficar sozinha e não gostava de seu nome.
Um dia, ela estava sozinha no carro, mesmo não gostando de ficar sozinha.
Voltava não se sabe de onde, talvez de uma reunião, talvez de uma conversa animada com a mãe, talvez de um encontro romântico, talvez de uma reunião na escola da filha. Não se sabe.
Não gostava de ficar sozinha, mas nem por isso compartilhava tudo o que andava fazendo.
Só se sabe que um dia, quer dizer uma noite, ela chegou sozinha de carro.
Esses detalhes foram contados pelo Seu José. Ele viu quase tudo e não pode fazer quase nada, a não ser lamentar.
Pois então, ela chegou sozinha de carro e enquanto esperava o portão abrir o sujeito apontou a arma e pediu o carro.
Ela nem abriu o vidro, o portão acabou de abrir e ela entrou de uma vez. Estacionou.
O Seu José ficou encolhidinho na cabine, ia chamar a polícia, mas não viu mais o sujeito, esperou um pouco até tudo se acalmar e ia interfonar para ela antes de qualquer coisa.
Ela também deve ter esperado um pouco no carro.
Depois deve ter descido devagar porque para alcançar o elevador era preciso passar em frente ao portão.
Andou com firmeza, pensando que o susto tinha passado, mas não!
O sujeito estava lá, agachado, bufafa de raiva e não hesitou em atirar.
Foi assim que ela morreu, a Quitéria.
Ela não gostava de ficar sozinha, mas não ficou. Deixou outros para trás. Muitos outros.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Notícia

Recebeu a notícia como quem já sabia e se comportou bem.
Por um tempo que pareceu interminável manteve um sorriso leve no rosto.
Depois desabou e chorou tudo o que estava acumulado.
Depois as horas foram escorrendo pelos relógios e o coração acertou o compasso.

Recebeu a notícia com a surpresa dos que vivem em outro mundo.
Por um tempo que pareceu interminável apertou as mãos, balançou os pés, escancarou um sorriso.
Depois gritou de alegria e rodopiou como se alguém lhe tivesse dado corda.
Depois as horas foram escorrendo pelos relógios e o coração acertou o compasso.

Entre o riso e o choro, extremos de calmaria.
Entre o medo e a alegria, um coração que comanda o fígado.
Entre os dedos que apertam marcando as palmas das mãos com unhas fortes, anéis inquebráveis.
Depois as horas foram escorrendo e ficaram fotografias em máquinas digitais.
Não há mais papel.
Não há mais nada entre os extremos a não ser uma espera que não antecipa.
Rabiscou em um pedaço de papel o trecho da velha canção... nem um santo tem pena de mim...
E riu de si mesmo enquanto as horas escorriam.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Più Mentali

Pensei em tudo e em nada.
Queria só encontrar o gênio da lâmpada, pedir 3 coisas simples.
3 coisas humildes.
O ar é pesado.
O tom é duro.
A mensagem não é clara.
Para os outros ou para mim?
O barulho irrita. O vento artificial do ar condicionado atrapalha.
O riso foge pelos dedos das mãos.
Se tudo depende de mim, como mudar isso?
Se há um bloqueio, pode ser mais mental que físico?
Fiquei pensando na linda foto que recebi da minha amiga querida.
Que vive longe e perto.
Pensei em tudo e em nada.
Eu gostava de mudar o mundo. Nem que fosse o das formigas.
Impedir a água de destruir o formigueiro. Deixar as folhas mais perto.
Tornar-me tão pequenina e forte como uma delas.
Mas isso é para quando eu estiver pensando com mais clareza.
Por enquanto, vou olhar de novo para a foto e enxergar-me ali, enquanto não encontro o gênio.
Alguém sabe onde se esconde?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Anhanguera

Anhanguera, apelido de Bartolomeu Bueno da Silva, bandeirante que ameaçou os índios dizendo que iria colocar fogo na água deles se não lhe entregassem o ouro que tinham.
Anhanguera, espírito maligno, diabo velho.
A Rodovia se recente desse nome. Corre quase paralela à Rodovia dos Bandeirantes. Esse nome sim, justa homenagem.
E ela sabe também que não é a minha preferida, que quando por ali estou é porque a Bandeirantes sofreu algum contratempo, obras ou acidentes que retardam a viagem.
E me olha de lado, estreita as pistas, faz brotar caminhões e ônibus e carros mais acelerados do que indicam as placas.
E se curva, sinuosidades sem sensualidade, assustadoras.
E enquanto me assusta, me afronta, exibindo suas margens verdejantes de uma beleza que não posso admirar.
Atenção redobrada que tensiona as mãos. 
Anhanguera.
Ela se recente do apelido e atropela os incautos.
Abre uma faixa extra como quem vai receber bem e de repente se dobra em curva e se recolhe em sua estreiteza.
Escancara sua mágoa.
Separa ir e vir em muro duro, baixo, carrancudo.
A Anhanguera tem mágoas que não posso descrever.
Acumula histórias que não sei narrar.
Vou insistir na conquista.
Vou desacelerar.
Vou olhar os morros.
Vou encontrar uma árvore magnífica para fotografar.
Como bandeirante vou desbravar sem pedir nada em troca, a não ser, que me deixe passar!
Carregamos nossos nomes, ela precisa aprender que isso não pode nos martirizar.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Um Santo de Confiança

Era preciso um Santo de confiança que tirasse aquele homem dos braços da bebida.
Era preciso um Anjinho novo que ficasse o tempo todo zelando por aquele bebe.
Era preciso um Amor grande demais para atravessar todas as impurezas, todas as imperfeições e olhar o feio atrás do bonito que se esconde e descobrir.
Descobrir lágrimas secas nos olhos azuis.
Descobrir palavras doces na boca sem riso daquele que sabe que cometeu o erro.
Descobrir abraços nas mãos cerradas dentro dos bolsos.
Era preciso um Santo de confiança que desse conforto à mãe que tem medo do filho sem rumo.
Era preciso um Anjinho que desse forças àquele bebe que luta em silêncio.
Era preciso um Amor grande demais para atravessar tempos de incertezas.
Em cada casa um caso.
Em cada caso um drama.
Em cada drama uma trama que cresceu em um jardim distante.
Em cada trama uma rama que pode florescer.
Outras farão o trabalho mais duro ao se agarrar a terra e sugar tudo o que for possível e se agarrar insanamente para não ser arrancada com a ventania.
Em cada ventania um Santo.
Em cada Santo um Anjo aprendendo o Amor.
Em cada Amor uma vida de confiança zelando para corrigir as imperfeições.
Descobrir o bonito no feio enquanto tudo está escuro.
A grandeza da alma na palma da mão de quem levanta o próximo, em silêncio.
Um Santo de confiança.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Palma da Mão

Sigo as linhas das palmas das minhas mãos.
Não me dizem nada. De onde vem, para onde vão.
Não começam, aparecem.
Não terminam, são interrompidas.
Cruzam-se desordenadamente. Sobrepõem-se inusitadamente.
A cigana espanhola olhou para elas espantada e não quis me dizer nada.
Porque não paguei. Só por isso.
Andavam com rosas nas mãos queimadas de sol e agarrando as nossas com sofreguidão.
Cariño...
Gostava de ouvir. Mas não de acreditar.
Gostava de traçar as rotas eu mesma, como o moderno sistema touch... puxar para cá, ajustar para lá.
São profundas, rascunhadas, com serifas, se é que se pode assim descrever traços incertos.
Vento no deserto que desenha linhas finas na areia.
Que mudam de lugar, que mudam com o vento, que redesenham o caminho.
Um caminho que nunca leva a lugar nenhum.
Procuro um camelo entre as linhas traçadas do meu deserto.
Água fresca. Um lugar de chegada.
O que há no final do arco-íris eu já sei.
Não me interessa. Um tesouro de ouro que não paga nada daquilo que quero.
Quero chegar ao final das mal traçadas linhas da palma da minha mão.
Ora direita, ora esquerda, mas mãos minhas, que seguram minha cabeça com carinho em momentos de aflição.
Sigo as linhas das palmas das minhas mãos.
Quem quiser me seguir, trilhas por descobrir.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Saia de Café

Limpava as saias do cafezal.
Não por prazer, por obrigação.
Tinha nascido por ali.Crescido pelos sítios da redondeza.
Com pai e mãe que também trabalhavam na roça.
Tinha orgulho daquele cafezal. Cuidava sozinho dele e tinham as saias mais bonitas da região.
Carregado.
Gostava de comer a frutinha vermelha do café.
Gostava de descansar, logo após o almoço, embaixo de uma das saias.
Chegava a sonhar depois que esvaziava a marmita que a mãe preparava ainda de madrugada.
Gostava de tudo isso, mas tinha sonhos de ir para a cidade grande.
Trabalhar em alguma coisa que entrasse as oito, que saísse para almoçar e voltasse à tarde.
Para um quarto de pensão, com televisão.
Usar roupa sempre limpa.
Comer um prato feito no bar da esquina.
Sonhava com isso. Quando contava para um ou outro amigo, nenhuma reposta de incentivo.
Todo mundo estranhava.
O único que dava uma força era o Tonico. Mas o Tonico achava esse sonho pequeno demais.
Ir para a cidade? Sim! Mas para a cidade grande, a maior de todas, São Paulo.
Trabalhar? Sim! Mas trabalhar no Banco do Brasil ou nos Correios ou na Caixa Econômica!
E usar roupas limpas? Sim senhor, camisas brancas, gravatas, sapatos engraxados!
Morar em pensão... Imagina. Primeiro alugar um apto, pequeno, mas bem localizado e depois comprar!
Era sonho demais pra ele, o Tonico sempre exagerando!
A mãe não podia nem ouvir falar que já saia assoando o nariz e enxugando os olhos.
O pai balançava a cabeça. Queria concordar, mas tinha medo da mãe.
O silêncio que mora embaixo de uma saia de café é cúmplice de toda dúvida.
O Eustáquio sabia disso como ninguém, mas com ninguém podia dividir esse outro segredo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sala de reunião

Quando o sol entra de mansinho pela janela, deixando tudo amarelo, eu me lembro.
E quando vai escurecendo, o coração vai ficando apertado porque eu me lembro.
Dos primeiros passos. Das primeiras pegadas que foram ficando.
Da confiança que foi nascendo.
Como criança que se sente pronta para pedalar sem rodinhas.
A mesa comprida, cheia de cadeiras presunçosas enquanto vazias e depois humilhadas, pesadas, ocupadas, arrastadas em reuniões sem fim.
A parede azul.
O silêncio protegido pelos vidros grossos da janela anti-ruído.
Esperava com o coração na mão.
E enquanto esperava escrevi um poema a meu pai, que poderia tê-lo lido se eu tivesse mostrado, coisa que já não é mais possível.
A conversa tímida.
O sotaque do outro que tardei a identificar.
O olho ávido pelo sim, mas as mãos sempre se despedem com uma promessa.
Nada planejado, mas tudo iniciado.
Uma indicação.
Uma paixão.
Uma vontade de fazer.
Se eu fosse mais displicente me entregaria menos, sofreria menos, cresceria mais.
Não teria saudades, não me lembraria quando o sol entra de mansinho pela janela, deixando tudo amarelo.
O barulho do ar condicionado ocupando as paredes brancas.
As plantas são de verdade.
A verdade é que somos o que vamos escrevendo ao longo da vida, não importa em que papel.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Extratos de Biografia

Quando eu nasci, minha parteira foi minha avó materna, Amélia.
Nasci em casa e ela me levou para ser pesada no armazém.
4,5kg – quem pode garantir?

Quando eu tinha quatro anos o meu melhor amigo se chamava Diamantino, o nome do pai dele.
Eu o chamava de Nenê.
Nós roubávamos caixinhas de fósforos de nossas casas e, escondidinhos, riscávamos todos.
Quando acabavam ele me olhava e dizia:
- ih... acabou o carbureto!

Quando eu tinha uns 9, 10 anos, a minha melhor amiga se chamava Nilda. Ela tinha uma irmã caçula que se chamava Neucimara.
Tínhamos idades parecidas e nossas irmãs caçulas também. A minha se chama Laís.
Não tínhamos telefone. Eu escrevia bilhetes combinando encontros e brincadeiras e Laís levava.
Outras vezes eu recebia bilhetes trazidos por Neucimara.
Será que nos perdoaram por essa exploração?

Quando eu tinha 12 anos eu ganhei o concurso de redação da minha escola escrevendo sobre a história da cidade: Tupã.
Disputei a etapa seguinte com representantes de todas as escolas e, para essa etapa, a redação era escrita in loco. Minha mãe me levou até o local. Eu era a menorzinha de todos, em tamanho físico e em idade. Todos os participantes estavam quase entrando na faculdade! Não ganhei.

Quando eu tinha 17 anos eu me mudei para São Paulo, com a minha irmã Lúcia, que cuidava de mim como meu pai e mãe.
Era preciso sair da casca do ovo.
A saudade apertava muito o coração. Mas eu me mantive firme e chorava no banho.
O meu pai nunca mais chegou em casa assobiando porque eu não estava mais lá para responder ao assobio.
Até hoje eu assobio no banho!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Acabou-se

Não podia falar tudo o que queria porque fazia sofrer as pessoas.
Não podia comer tudo o que queria porque faltaria para outras pessoas.
Não podia estar sozinho o tempo que queria porque diziam dele que era solitário.
Não podia beber todos os dias porque falariam dele que precisava de tratamento.
E assim ia rabiscando em um caderno tudo o que não tinha feito naquele dia pensando nos outros.
Chamou-o diário de privações e esperava que quando morresse alguém pudesse divertir-se com aquilo.
Fora alguns que poderiam ficar ligeiramente chateados.
De vez em quando folheava para consultar velhas anotações.
E divertia-se também.

16 de agosto de 2008
De manhã não pude tomar suco de morango porque é o preferido da Eva e tinha muito pouco.
Fiquei olhando ela tomar e babar naquele copo de flor, aquele líquido vermelho e quase cremoso. Pensei em passar no supermercado, comprar um litro e tomar sozinho quando chegasse ao escritório, cedo, ainda sem ninguém.

Não fiz isso.
E não fiz isso porque tive que deixar a Ana Elisa no trabalho e ela não poderia saber. E o percurso todo seria modificado. E o horário todo seria modificado.

E assim seguia o dia 16 de agosto com algumas outras privações.
Tudo tão nonsense que só a ele cabia entender.
Aceitar a situação. Registrar para metabolizar a frustração, muitas vezes a raiva.
E foi folheando esse caderninho, o último de muitos, ouvindo música com o fone de ouvidos, que foi deixado à deriva quando o curto circuito começou e a tragédia toda se deu.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bicho de rua

Os bichos das ruas e das casas que ficam abertas para as calçadas são uns bichos dos quais não posso esquecer.
O gato branco na calçada, olhos tão verdes e cristalinos que cor como aquela não há de ter em nenhum pantone.
Cara de bravo, mas um encontro de olhar e lá vem ele, naquele rebolado, ronronado de quem sabe que vai ganhar carinho.
E depois da cabeça, pernas para o ar para ganhar um chamego na barriga.
Pelos duros de quem anda despreocupado pela vida, espreitando pombas e passantes.
As pombas...
Que despertam ânimos de extermínio nos mais exaltados. Nos que tem medo dos piolhos. Dos que não gostam do arrulhar, dos passinhos apressados buscando farelinhos.
E me encantam.
E me encantam as corujinhas que me ignoraram no estacionamento do supermercado.
Sábado quente, noitinha cheia de aleluias na luz do poste que caindo indefesas, nada mais do que refeição para as corujinhas.
Foto. E enquanto me aproximo para caprichar, a mulher ralha com a filha:
- credo, não olha, dá azar!
Os bichos que não posso cuidar.
Os bichos que cuidam de mim porque basta olhar para mudar o humor.
As andorinhas que nem se vê mais por aí.
O cachorrinho preto, que sim, tem casa, mas hoje de manhã, com o portão fechado, esperava resignado na calçada, já todo molhado da chuva.
E os bravos.
E os machucados.
E os perdidos.
Os bichos para mim são almas circulando por aí. Não me dizem muito bem a que vem, mas uma razão, e muito boa ah tem, oh se tem!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Trovão

Um barulhinho... Trovão?
E meu coração dispara.
Quer competir com o barulho do céu.
Fico feliz por alguma razão inexplicável.
Aguço os ouvidos esperando ouvir as primeiras gotas.
Fortes, marcadas.
Quando o vento é quem as traz, aparecem por todos os lados.
No telhado, nas vidraças, nas coisas deixadas pelo quintal.
Gosto.
Gosto da chuva. Gosto do vento. Gosto da tempestade.
E fico culpada temendo que alguém tenha a casa destelhada,
a varanda invadida pela água da enxurrada.
Mas por um momento deixo isso de lado.
Fui ao quintal, olhei tudo, guardei a bicicleta menor.
Abriguei-me.
Quando chove eu preciso estar de meias, mesmo que seja uma chuva de verão.
Quando era criança corria o quintal todo atrás de qualquer coisa que eu pudesse proteger.
Uma lata velha de tinta. Um tijolo. Um guardanapo no varal.
Proteger.
Depois aquecer os pés.
E sentar à janela de vidros transparentes e olhar tudo.
As gotas como lágrimas na plantinha do vaso.
Um barulhinho... Trovão?
Não, agora ainda não.
A previsão do tempo prometeu para o final da tarde, mas aí... ai do trânsito
E de mim, que me imputam a culpa por trazê-la, simplesmente por gostar e, não,
Não é bem assim!